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Julgamento do processo principal do BES volta a revisitar o maior escândalo financeiro do século

Ricardo Salgado, histórico presidente do BES, vai a julgamento por 62 crimes no âmbito do mega-processo “Universo Espírito Santo”. Passaram mais de 10 anos após a queda do BES em agosto de 2014 e não se sabe quantos anos durará o julgamento. Pelo caminho já morreram três importantes testemunhas, António Ricciardi (cujo testemunho gravado vai ser transmitido), José Manuel Espírito Santo e José Castella.
15 Outubro 2024, 07h30

O julgamento do processo principal do BES, caso Universo Espírito Santo, começa esta terça-feira, no Campus da Justiça em Lisboa, mais de 10 anos depois da queda do banco historicamente liderado por Ricardo Salgado, e que ocorreu no dia 3 de Agosto de 2014 com a aplicação pelo Banco de Portugal de uma medida de resolução e consequente criação de um “banco mau” e de um “banco bom”, o Novobanco.

O megaprocesso tem 18 arguidos, 733 testemunhas, 135 assistentes e mais de 300 crimes, e parte de uma acusação do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) com mais de quatro mil páginas que defende a tese que Ricardo Salgado foi o arquiteto de um plano deliberado (que começou em 2009) para esconder a falência do Grupo Espírito Santo.

Esta segunda-feira ficou a saber-se que o tribunal rejeitou o pedido da defesa de Ricardo Salgado para extinguir ou suspender o processo criminal contra o ex-presidente do Banco Espírito Santo devido ao diagnóstico de Alzheimer, alegando que este mantém os direitos de defesa.

“Independentemente das conclusões alcançadas em sede pericial, deve o procedimento criminal quanto ao arguido Ricardo Salgado prosseguir, pelo que se indefere o requerido”, segundo o despacho da juíza Helena Susano, a que a Lusa teve acesso.

De acordo com o despacho, o coletivo de juízes entende que “a aptidão mental não é um requisito para a prestação de declarações pelo arguido”, sublinhando, por isso que, “não pode constituir fundamento para extinguir o processo criminal” contra o ex-banqueiro.

Assim, Ricardo Salgado, histórico presidente do Banco Espírito Santo, vai a julgamento por 62 crimes no âmbito do mega-processo “Universo Espírito Santo”, entre os quais associação criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada e branqueamento.

As duas primeiras sessões marcadas para esta terça e quarta-feira servirão para os advogados dos 24 arguidos (17 arguidos individuais e sete arguidos coletivos) darem as primeiras explicações. Só na quinta-feira será ouvida a primeira testemunha.

Ora, segundo o Observador, o Comandante António Ricciardi que morreu em 2022, será a primeira testemunha do julgamento do GES. Como? A pedido do Ministério Público, a juíza que lidera o coletivo de juízes que vai julgar o principal processo do caso Universo Espírito Santo (sendo que há mais seis acusações deduzidas relativas ao caso BES) autorizou que fosse transmitida, na íntegra, a gravação do depoimento que António Ricciardi prestou em 2015, quando tinha 95 anos, e onde garantiu que Ricardo Salgado era o único que sabia da falsificação das contas e do saco azul, relata o Observador.

O Comandante Ricciardi, pai de José Maria Ricciardi, era presidente não executivo da Espírito Santo Internacional e administrador de outras sociedades do GES (Espírito Santo Control, Espírito Santo Services e a Espírito Santo Finantial Group) e liderava o Conselho Superior Espírito Santo, onde os cinco ramos da família Espírito Santo se reuniam regularmente na Rua de São Bernardo à Lapa.

Segundo o relato, reproduzido pelo Observador, António Ricciardi, confrontado com a sua assinatura em vários documentos, explicou ao procurador José Ranito que eram papéis lhe eram colocados à frente por José Castella, ex-controller do GES muito próximo de Ricardo Salgado, e que foi constituído arguido em 2015 (mas que já morreu em 2020).

O Comandante Ricciardi disse que assinava os documentos pela confiança que tinha em José Castella e por saber que tudo tinha sido autorizado antes por Ricardo Salgado. Para além de contar que José Castella reunia todos os dias com Ricardo Salgado na sede do BES, na Avenida da Liberdade, para receber instruções e documentação das mãos do ex-CEO do BES que lhe eram entregues a si e a Manuel Fernando Espírito Santo, presidente da Rio Forte.

A falsificação das contas da holding ESI (Espírito Santo International) é o vértice de toda trama, e,  tendo em conta a estrutura em cascata das sociedades dos Espírito Santo, contaminou todas as outras abaixo de si.

O que está no centro do julgamento é que Ricardo Salgado criou um plano para captar liquidez junto de clientes institucionais e particulares do BES e de outras instituições de crédito do Grupo Espírito Santo para financiar os buracos da ESI, a principal holding do grupo, e de outras sociedades do grupo.

A primeira fase do plano do célebre banqueiro foi ordenar a falsificação da contabilidade da ESI para esconder a falência técnica da empresa com sede no Luxemburgo. Para tal, recorreu a José Castella (controller do GES que morreu em fevereiro de 2020) e a Francisco Machado da Cruz (o famoso comissaire aux comptes do GES). Mas não terão sido os únicos.

Isto significava que a dívida da ESI, emitida e espalhada nos clientes das várias sociedades do grupo por esse mundo fora, era superior à declarada.

Em novembro de 2013, numa reunião do Conselho Superior do GES, Ricardo Salgado anunciou aos restantes membros da família Espírito Santo que havia um buraco nas contas da ESI e apontou as culpas a Machado da Cruz.

Mas o Comandante Ricciardi relatou em 2015 que Francisco Machado da Cruz aceitou falsificar as contas da ESI a pedido de Ricardo Salgado.

António Ricciardi entrou para a família Espírito Santo por via do seu casamento, em 1945, com Vera Maria Cohen de Espírito Santo Silva, filha do banqueiro Ricardo Espírito Santo e com quem teve sete filhos.

Ao longo deste mega-processo algumas das testemunhas importantes morreram. Para além de António Ricciardi, José Manuel Espírito Santo (ex-administrador do BES e acusado de oito crimes de burla qualificada e um crime de infidelidade) morreu em fevereiro de 2023 com 77 anos e José Castela (ex-controller do GES e um dos principais arguidos deste caso) morreu em março de 2020.

Ricardo Salgado, o banqueiro emblemático

A aura do trabalhador infatigável, que todos os dias chegava cedo e saía tarde do gabinete na Avenida da Liberdade acompanhava a áurea intocável de Ricardo Salgado, que os jornais chamavam de o Dono Disto Tudo.

Casado e pai de três filhos, Ricardo Espírito Santo Silva Salgado nasceu a 25 de junho de 1944. Embora seja natural de Cascais, onde vive atualmente, passou os primeiros anos da sua vida em Lisboa, na Lapa, onde morou. Estudou numa escola primária pública e, mais tarde, no Liceu Pedro Nunes. Em 1969, licenciou-se no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa e cumpriu o Serviço Militar na Marinha de Guerra Portuguesa, no Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval.

Ricardo Salgado estava predestinado a ser banqueiro na instituição da família e em 1972 entrou para a equipa do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), primeiro para assumir a direção do Gabinete de Estudos Económicos e mais tarde a Direção de Crédito, onde permaneceu até 1975, aquando da nacionalização do banco. Foi do outro lado do Atlântico que começou a ser desenhada a reprivatização do grupo nacionalizado pelo PREC. O ponto alto do grupo foi em 1975 com a criação de uma holding sediada no Luxemburgo, sociedade que em 1984 deu origem ao Espírito Santo Financial Group (ESFG). Será Mário Soares, em 1984, a incitar Manuel Ricardo Espírito Santo a voltar para o país para reconstruir o GES. O então primeiro-ministro decide apoiar a Família Espírito Santo e arranja-lhe o parceiro Crédit Agrícole (com a ajuda do Governo francês). É então com a abertura do Banco Internacional de Crédito (BIC), em Lisboa, no final de 1986 (que tinha também um núcleo duro de acionistas portugueses), que os Espírito Santo voltam a ser banqueiros em Portugal no pós-25 de abril. Antes mesmo das reprivatizações impedidas até à revisão constitucional de 1989. Ricardo Salgado deve a Manuel Ricardo Espírito Santo, seu tio, a presidência do BES, pois foi sob a liderança de Manuel Ricardo, que a família refez os negócios no estrangeiro (Luxemburgo, Reino Unido, Brasil, França, Estados Unidos e Suíça), organizando o grupo Espírito Santo, em 1976.

Ricardo Salgado era o timoneiro de uma família de banqueiros e que delegava nele cegamente a liderança do BES e do GES. Era o patriarca. Organizava os jantares de Natal da família e os encontros em Lausanne, onde pautava por ter os parentes unidos à sua volta. Movimentava-se no globo com o “à vontade” dos bem-amados, quer fosse em Lisboa, Madrid, Paris, São Paulo, Caracas, Miami ou Luanda. Relacionava-se com o então Rei Juan Carlos, com a Condessa de Paris, com os Rothschild, com os portugueses Champalimaud e Mello. Mas também com Hugo Chávez, Nicolás Maduro e Lula da Silva, e com os generais angolanos do regime de José Eduardo dos Santos.

Tudo parecia correr bem até que, o Banco de Portugal, na sequência do exercício transversal de revisão da imparidade da carteira de crédito (ETRICC) realizado em 2013, descobre “um inusitado acréscimo, de materialidade muito significativa, do passivo financeiro da ESI face à informação anteriormente refletida nas demonstrações financeiras dessa entidade, justificado por uma omissão contabilística dos valores em causa”.

De acordo com a informação disponibilizada, em 26 de novembro de 2013 pelo BES, os passivos financeiros da ESI ascenderiam, com referência a 30 de setembro de 2013, a 5,6 mil milhões de euros. “Este montante contrasta com a informação anteriormente disponível relativamente aos passivos financeiros da ESI, que ascenderiam, em 31 de dezembro de 2012 e 30 de junho de 2013, a 3,4 mil milhões de euros e 3,9 mil milhões de euros, respetivamente”, diz o Banco de Portugal.  Ou seja, contas falsas.

Mas isto era apenas o vértice de um castelo de cartas que não parou de ruir. Com uma rapidez alucinante e depois da aplicação ao BES pelo regulador do chamado ring-fencing dos riscos emergentes do ramo não financeiro do GES, desencadearam-se uma série de operações alucinantes e impensáveis. Das quais a mais aparatosa é contratação de um figurante para se fazer passar por representante da PDVSA (Petróleos da Venezuela) e autorizar o acesso aos saldos bancários dos venezuelanos para comprar dívida da Rioforte. Foi “recrutado” José Trinidad Márquez, que assumiu a identidade de Domingos Galan Macias, cidadão espanhol, porteiro de profissão, e que “interveio em todo o processo” apresentando-se como representante da PDVSA.

Já com a ESI em dificuldades financeiras, Ricardo Salgado montou um esquema para ter acesso a fundos da PDVSA depositados no BES, que seriam aplicados em obrigações da Rioforte, ficcionando para isso um concurso lançado pelo grupo petrolífero venezuelano para a gestão de um fundo de ativos e de uma carteira de investimentos no valor acima de 3,5 mil milhões.

O domingo dia 13 de julho de 2014, quando tinha 70 anos, foi o seu último dia como presidente do BES cuja presidência assumiu em 1991, após a reprivatização.

O GES crescera afinal à custa de dívida colocada nos clientes do BES. Dívida essa que em parte estava oculta do balanço da Espírito Santo International e que foi descoberta pelo Banco de Portugal, então liderado por Carlos Costa,

Agora, com Alzheimer, Ricardo Salgado vai ser julgado em Tribunal.

 

 

 

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