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Luis Sepúlveda: “Instituiu-se a ideia mesquinha de uma Europa como fortaleza”

O escritor chileno pagou caro pelas opções políticas que fez. A prisão e o exílio marcaram a sua vida, que sempre obedeceu a uma firme convicção: “ter a consciência tranquila é das melhores coisas que podemos sentir quando nos vemos ao espelho”. Luis Sepúlveda morreu esta manhã, mas as suas palavras continuam a fazer-se ouvir. Como aquelas que partilhou com o Jornal Económico em julho de 2017.
Cristina Bernardo
16 Abril 2020, 15h01

Entrevista publicada originalmente no caderno Et Cetera do Jornal Económico a 28 de julho de 2017. O JE volta a publicar esta entrevista a 16 de abril de 2020, no dia da morte do autor chileno devido à Covid-19.

O jovem que nasceu em Ovalle, Chile, em 1949, começou por estudar produção teatral na Universidade Nacional. Em 1969, recebeu uma bolsa de cinco anos para estudar em Moscovo. Ao fim de cinco meses foi expulso por mau comportamento e regressou a Santiago. Filiou-se no Partido Socialista e acreditou no novo Chile que Salvador Allende queria construir. Foi escolhido para integrar o GAP – Grupo de Amigos Pessoais do presidente, responsáveis pela sua segurança – e vive intensamente os 1.000 dias do governo Allende. É preso na sequência do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, fica detido dois anos e meio e, graças à ajuda da secção alemã da Amnistia Internacional, sai em liberdade condicional, ficando sob prisão domiciliária. Consegue fugir e, na clandestinidade, cria, com um amigo, um grupo de teatro, que se tornou no primeiro foco de resistência cultural à ditadura de Augusto Pinochet. É novamente detido e condenado a 28 anos de prisão por traição e subversão. A secção alemã da Amnistia Internacional volta a interceder por ele e a sentença é convertida em oito anos de exílio.

Em 1977, ruma à Suécia para ensinar literatura espanhola. O voo faz uma primeira escala em Buenos Aires. Foge e refugia-se no Uruguai. Como a maior parte dos seus amigos uruguaios e argentinos estão mortos ou presos, segue para São Paulo, no Brasil, e depois para o Paraguai. Visto como persona non grata pelo regime paraguaio, foge novamente, desta feita para o Equador. Volta a dedicar-se ao teatro e, mais tarde, integra uma expedição da Unesco para observar o impacto da colonização nos índios shuar, com quem viveu sete meses numa região remota da Amazónia. Em 1979 juntou-se à brigada internacional Simón Bolívar e foi combater a ditadura na Nicarágua. Após a vitória da revolução, Sepúlveda dedica-se ao jornalismo, atividade que manteve nos anos em que viveu em Hamburgo, na Alemanha. Começou aí o exílio europeu, até que, numa viagem a Espanha, mais concretamente às Astúrias, descobriu o lugar a que doravante passou a chamar casa: Gijón. As saudades de poder conversar na sua língua materna quando compra o jornal ou toma um café falaram mais alto. Isso e o espírito de resistência dos asturianos.

O rosto fechado não é sinal de sisudez, mas sim de atenção. Lucho – como a família e os amigos mais chegados o tratam – é um ouvinte atento. Um cidadão interessado e preocupado com o fim da social-democracia europeia. Lamenta que assim seja porque, embora continue a sentir-se comunista, simpatizou com essa ‘alternativa’. Não milita em nenhum partido político, mas ser de esquerda está-lhe no sangue e na forma como vê o mundo, que encontramos plasmada nos seus livros. Escreve quando está bem, porque não é “masoquista”. Não escreve para fazer terapia, mas sim para manter viva a memória.

Escrever é um ato político?
Como em tudo na vida, a escrita tem uma componente política muito forte. A escrita é acima de tudo um ato de resistência. Aliás, partilho da opinião de Guimarães Rosa quando diz que “narrar é resistir”. Sobretudo contra o esquecimento, por um lado, e contra a mentira da história oficial, por outro. A história oficial apenas conta a história dos vencedores, ao passo que a literatura conta a história dos vencidos, das pessoas comuns, daqueles que não aparecem nos livros, nos registos. É assim que vejo o ato de escrever e é por isso que gosto muito de escrever. E talvez por isso continuo a ter muitos leitores.

Pode dizer-se que a política é um ato de “amor”, no sentido de devoção, entrega a uma causa?
É um ato de amor mas, acima de tudo, é uma atitude ética. Quando temos uma atitude ética perante a vida, isso também se reflete na escrita. É uma questão de verticalidade.

Pagou um preço alto pelas opções políticas que fez, como a prisão e o exílio. Um dia afirmou que fez o que tinha que fazer porque “não há nada mais terrível do que ver-se ao espelho e não ver uma pessoa decente”. A paz da consciência é o mais importante?
Para mim e para muita gente é, sem dúvida, o mais importante. A maior satisfação que podemos ter é essa ‘pequena satisfação’ de nos levantarmos todos os dias de consciência tranquila. É das melhores coisas que podemos sentir quando nos vemos ao espelho: sou um tipo decente e quero continuar a sê-lo.

O que diz a sua consciência sobre a crise dos refugiados na Europa?
Custa-me muito assistir à hipocrisia da Europa, mais preocupada em fortalecer as suas fronteiras do que em cumprir os acordos internacionais que subscreveu, nomeadamente com a criação das Nações Unidas, que visa proteger as pessoas que saem dos seus países de origem por correrem perigo de vida. E isso obriga a comunidade internacional não a um ato de generosidade, mas de simples justiça e solidariedade: recebê-los e permitir que as suas vidas continuem! Pelo contrário, instituiu-se a ideia mesquinha de uma Europa como fortaleza, fechada sobre si mesma. Poucos países romperam com essa ideia… A Europa precisa de recuperar o conceito de solidariedade e espero que consiga fazê-lo. Estive recentemente na ilha de Lampedusa, em Itália, que tem recebido milhares e milhares de refugiados, e verifiquei que as pessoas de lá – que são pobres e teriam muitos motivos para repudiar toda esta gente e dizer “basta” – são exemplarmente solidários. A atitude do governo é muito diferente da atitude da população!

A Europa está desorientada?
Quando caiu o Muro de Berlim e se instituiu uma nova ordem mundial – que não foi uma ordem, mas sim uma desordem –, assistimos, aparentemente, ao fim das utopias, da alternativa ao capitalismo. Mas isso não significa que o capitalismo, como ideia, tenha triunfado, por ter demonstrado que é melhor que outros sistemas…

É o caso de “O fim da História e o último homem” de Fukuyama: a sua ideia de utopia liberal fracassou.
Exatamente, mas o problema é que passou muito tempo até que surgissem novas maneiras de pensar a utopia: as boas intenções e os discursos bonitos não bastam, é preciso transformar isso numa espécie de alavanca para a praxis social. Queremos governar, sim, mas o que queremos fazer concretamente, como queremos fazê-lo e por que razão queremos fazê-lo! Por ora, ainda estamos na primeira fase, ou seja, nos protestos e críticas. Falta dar o passo seguinte: somos capazes de governar e queremos fazer as coisas desta maneira!

Onde estão as esquerdas nessa demanda?
Uma parte da esquerda está concentrada numa busca que considero interessante e é composta essencialmente por gente jovem, que procura um caminho. Comete erros, é certo, mas continua a demandar um caminho. A restante esquerda mergulhou no conformismo e faz parte do establishment. Basta ver o que aconteceu com a social-democracia, que é a principal responsável pelo sonho alternativo mais bonito para a Europa, que é o Estado-Providência, o modelo social europeu. Apesar de ter muitas falhas na relação da Europa com o mundo, funcionava bem para a Europa. Mas quando foi afectado pelo aparecimento de economias emergentes como a Índia, China e Brasil, a social-democracia imediatamente cerrou fileiras com a parte mais reacionária da sociedade para defender-se dessa ameaça.

O crescimento ad aeternum não existe. O mundo ocidental teve de rever o seu paradigma.
Sim, mas o mais curioso é que se impôs uma linguagem encriptada que nem toda a gente compreende. O que significa ‘crescer’? O cidadão comum não sabe o que significa o crescimento da economia, porque muitas vezes explicam as coisas usando gráficos, dizendo que macroeconomicamente está tudo bem, mas a verdade é que os hospitais e as escolas têm menos dinheiro, os salários descem… Afinal, onde está o crescimento? O fracasso da social-democracia está naquilo que escondeu. No fundo, o sistema permitiu que um grupo que não chega a representar 5% da humanidade controle 99% da riqueza mundial. Igualmente grave é o facto de as grandes multinacionais, sobretudo na área da energia, armamento e alimentação, terem passado a ter mais poder que os Estados e a tomar decisões no âmbito da política, da economia e da cultura.

A sociedade civil, em geral, mergulhou na apatia? A não intervenção social e política deixa mais espaços a essas organizações.
Há coisas que estão a mudar. Vou falar no exemplo português. Quase todos os europeus olham com espanto para a solução governativa portuguesa. Quando foi anunciado um governo que reúne os socialistas, os comunistas e o Bloco de Esquerda, a direita apressou-se a dizer que era uma ‘geringonça’ e que não tinha futuro. A verdade é que puseram fim à austeridade excessiva. Não fizeram uma revolução, obviamente, mas permitiram que o cidadão comum recuperasse parte do seu rendimento e poder de compra. E o otimismo – já passou o pior, agora podemos respirar fundo. Ou seja, não chegou o ‘diabo’, como alguém dizia! [sorriso] E a Europa olha para isto preocupada, porque é um péssimo exemplo para os restantes países, e fá-lo para esconder algo: por que razão resultou esta ‘geringonça’? Porque devolveu ao Estado a capacidade de decidir. Fundamentalmente, foi isso que aconteceu. O Estado representa os cidadãos e cabe-lhe a si proteger os cidadãos e a estes fiscalizar o Estado. Numa altura em que na Europa o Estado cada vez era mais débil, cada vez cedia mais poder e soberania, apareceu um pequeno país que disse: “Basta, vamos recuperar as funções do Estado.” É por isso que os cidadãos portugueses se sentem apoiados. Mais. Recuperaram algo muito importante que é a auto-estima. Podem dizer “somos portugueses e não há mal nenhum nisso!”

Espanha é o país onde vive há muitos anos. Como vê a reeleição de Mariano Rajoy, apesar da corrupção que grassa no PP, e o que pensa das outras forças parlamentares?
Espanha é um caso ‘muito à parte’. A corrupção atingiu níveis absolutamente inimagináveis! Basta pensar no número de políticos do Partido Popular que estão detidos ou são alvo de processos judiciais… Em 2012, quando Rajoy tomou posse, foi aprovada uma amnistia fiscal para que os maiores defraudadores pudessem regularizar o seu dinheiro. A carga fiscal em Espanha é muito alta, mas o que se fez foi dizer aos defraudadores para trazerem o seu dinheiro de volta, que só iriam pagar um imposto de 10% quando o comum mortal paga 33%. Na prática, quando as grandes fortunas são regularizadas, pagam apenas 3%… Em junho, o Tribunal Constitucional disse que essa amnistia fiscal era ilegal e inconstitucional. Em qualquer país, o ministro das Finanças seria demitido. Houve consequências? Nada. Entretanto, descobriu-se que o procurador anticorrupção tinha uma sociedade offshore no Panamá – ilegal! Acabou por demitir-se na sequência de pressões, mas, uma vez mais, não houve consequências nem foi alvo de condenação.

A sociedade espanhola também sucumbiu à apatia?
Também tem a ver com o grande desconhecimento que os espanhóis têm da sua própria história. Vivem num estado de negação, não gostam de olhar para a sua história. Um escritor espanhol, Alfonso Mateo-Sagasta – que escreve muito bem, por sinal –, fala num dos seus livros sobre o início da bolha imobiliária em Espanha e dá o exemplo da transferência da corte de Sevilha para Madrid, pouco depois da descoberta da América. Os palácios em Sevilha foram vendidos ao preço da chuva porque todos queriam ir para Madrid, onde os preços dispararam, claro. Pouco tempo depois a corte mudou-se para Toledo e a situação repetiu-se. Todas as grandes fortunas espanholas nascem nesse período com base na especulação imobiliária. Ora, os espanhóis recusam-se a ver isso. Negam que há coisas que estão mal há muito, muito tempo. Em Espanha, não há um registo, um levantamento das propriedades da Igreja, por exemplo. Se uma pessoa morre e não tem herdeiros, quem herda é a Igreja.

Deixamos a Península Ibérica rumo à América. Como vê a administração Trump?
Trump surpreende-nos todos os dias com políticas diferentes ou tweets desconcertantes… Felizmente, os americanos começam gradualmente a levá-lo menos a sério. Ainda recentemente ouvi o senador republicano John McCain – que também já foi candidato presidencial – dizer que Trump é mais perigoso do que a Al Qaeda! [sorriso] Não descarto a possibilidade de a sociedade norte-americana, ou melhor, de a classe política, estar a ponderar o recurso ao impeachment…

Até agora, as instituições dos EUA deram provas de funcionar, nomeadamente os tribunais.
É verdade, estão a funcionar. E o setor menos ‘ultra’ dos republicanos também tem conseguido encontrar pontos de entendimento com os democratas para avançarem com um impeachment. Não agora, mas talvez dentro de um ano. Isto porque, se Trump sair, quem ocupa o lugar é o vice-presidente – que não é melhor do que ele! Muitos republicanos receiam perder votos se perderem Trump. Mas o mais importante no que respeita a Trump, é que está a desestabilizar algumas conquistas, como o Acordo de Paris para as alterações climáticas. Isso obrigou a Europa a reagir e é fundamental que a Europa tenha uma opinião política. Não pode continuar a depender das posições norte-americanas, incluindo ao nível da defesa e da segurança.

O que pensa do acordo de paz entre as FARC e o governo de Juan Manuel Santos, após décadas de conflito?
Era fundamental dar esse passo e a pressão exercida por Cuba foi muito importante, no sentido de obrigar as FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] a sentarem-se à mesa para dialogar. E fizeram-no num momento particularmente crítico, porque, embora o presidente Santos estivesse empenhado no diálogo, a verdade é que a Colômbia saíra pouco tempo antes da alçada do governo de Uribe, que deixou para cima de 30 mil desaparecidos, a maior parte camponeses… Um número impressionante! Chamavam-lhes “falsos positivos”, porque depois de os matarem vestiam-lhes os uniformes dos guerrilheiros e diziam que fora a guerrilha a assassiná-los. Quando o processo começou, houve outro aspeto que ganhou importância e que deve preocupar, e muito, os políticos da Colômbia e de toda a América Latina: o enorme peso dos fundamentalismos religiosos. Aquando do referendo para os colombianos se pronunciarem a favor, ou contra, o processo de paz, percebeu-se que o discurso mais reacionário provinha das inúmeras seitas religiosas existentes no país. São o mais anti-processo de paz que se possa imaginar!

Apesar de o processo de paz ter falhas, foi um passo importante para acabar com o conflito.
Sim, foi fundamental, porque conseguiu pôr fim a um conflito que se arrastava há demasiado tempo, há mais de 50 anos. O grande perigo do movimento guerrilheiro, da luta armada, é deixar de ser um meio para se tornar um fim em si mesmo. Ora, na Colômbia, já há muito que havia deixado de ser um meio, quer para o exército, quer para a guerrilha. Todos sabiam que era uma guerra que ninguém podia ganhar. Isso era claro!

Não podemos deixar de falar no Chile. O que aconteceu à esperança depositada em Michelle Bachelet?
Bachelet foi uma enorme esperança e uma enorme deceção. O que aconteceu foi que, desde 1990, ano em que terminou a ditadura, as pessoas que conseguiram que o ditador aceitasse negociar uma saída pacífica foram postas à margem das negociações propriamente ditas – aqueles que todos os dias lutaram contra a ditadura! Refiro-me aos companheiros do Partido Comunista, de uma organização armada chamada El Frente Patriótico Manuel Rodríguez (FPMR), do MIR [Movimento de Esquerda Revolucionária] e outros socialistas que não participaram nas negociações. Foram substituídos por políticos do centro-esquerda que tinham estado exilados na Europa e que a social-democracia espanhola escolhera como os homens que iam assegurar “a grande mudança no Chile”. Por trás estavam os interesses de multinacionais, como a Endesa, a Iberdrola, a Telefónica, e a direita chilena que enriqueceu com a ditadura de Pinochet. Fizeram um pacto para assegurar a transição do Chile para a democracia e, curiosamente, nesse mesmo pacto, esqueceram-se de algumas coisas, nomeadamente de mudar a Constituição. O que significa que a Constituição chilena ainda hoje é a mesma do tempo de Pinochet! Na maioria das constituições, o Artigo 1 diz: “Todos os homens são iguais perante a lei”. Na Constituição chilena, o Artigo 1 diz: “O modelo económico chileno é intocável”. Ora, o modelo económico que o país herdou é o da ditadura. Isso fez com que, durante os 27 anos de democracia no Chile, se instalasse uma apatia generalizada. A educação continua a ser privada… Uma geração sobrevive a isso, mas duas, três gerações não. O sistema de saúde é essencialmente privado. A primeira geração luta para que o sistema de saúde volte a ser público, a segunda geração luta menos e a terceira já não quer saber disso para nada. Só depois de 25 anos de democracia é que a contestação chegou.

Há dois anos os estudantes começaram a manifestar-se. Algo mudou entretanto?
O movimento dos estudantes recuperou alguns grandes temas para o debate público e voltou a discutir-se a necessidade de recuperar a educação e a saúde públicas, de mudar a Constituição. E um país que tinha baixos níveis de corrupção, comparando com outros países, descobriu que tinha a classe política mais corrupta de toda a história do Chile! E grosseiramente corruptos. Um exemplo: Pinochet ofereceu ao genro a presidência do conselho que regulava as empresas do Estado, que depois as vendeu. O Chile exportava cobre, têxtil, ferro, etc., e ele vendeu todas as empresas estatais e tornou-se milionário. É a 21ª maior fortuna do mundo, segundo a Forbes! Entretanto, veio a saber-se que, entre 1990 e 2017, uma corporação pagava elevadas somas aos políticos democratas-cristãos e socialistas, ou seja, a todos os que estão no governo, por conferências que nunca deram, auditorias que nunca fizeram e serviços que nunca prestaram. Todos os meses! Em troca de quê? De legislarem a favor dos interesses da ditadura. Por exemplo, em 2010, toda a água do Chile foi privatizada! Todos os rios, todos os lagos são privados. Nesse mesmo ano, privatizou-se o mar: cinco mil quilómetros de mar! Foram privatizados e entregues a cinco famílias… Até os glaciares da Terra do Fogo chilena foram privatizados!

As privatizações e a corrupção vão ser determinantes para o sentido de voto nas presidenciais de novembro?
Todas essas privatizações alimentam e agravam a corrupção. E se é verdade que as pessoas depositaram grande esperança no primeiro governo de Bachelet, também é verdade que defraudou as expectativas. Da segunda vez que foi eleita, voltou a gerar uma grande expectativa e, uma vez mais, defraudou. O problema não é ela. Conheço-a pessoalmente, e posso dizer que é boa pessoa. O problema é o partido político que tem por trás. São todos corruptos! O filho de Bachelet esteve envolvido num caso de corrupção extremamente grave e isso fez com que a imagem da Presidente sofresse um desgaste tremendo. Entretanto, surgiu uma nova força política – que se chama ‘El Frente Amplio’ –, formada por gente muito jovem, uma espécie de Bloco de Esquerda chileno, que pode obter uma boa votação nas eleições de novembro. O mais provável é que a direita ganhe, mas, pelo menos, haverá um controlo parlamentar mais apertado.

Esse movimento é essencialmente urbano ou tem força em todo o Chile?
A densidade demográfica do Chile é muito peculiar… Sim, é mais urbano, porque o movimento estudantil com mais força é urbano, mas também tem muita força nas províncias mais extremas, geograficamente falando: Patagónia, Terra do Fogo, deserto de Atacama. E é menos representativa nas regiões mais tradicionais, agrícolas. Mas tem grandes probabilidades de obter uma boa votação, tal como tem excelentes líderes. O problema é que esses líderes são demasiado jovens, ou seja, não podem sequer candidatar-se porque, no Chile, só podem candidatar-se à presidência pessoas com mais de 35 anos. Nessa nova fornada de jovens há um que admiro muito: Gabriel Boric. É da Patagónia profunda, de Punta Arenas, e apresentou-se nas últimas eleições como candidato a deputado. Não tinha nenhum partido a apoiá-lo, apenas um pequeno movimento chamado Esquerda Autónoma. Os analistas políticos diziam que não tinha qualquer hipótese de ser eleito. Diziam que era muito simpático, mas que não tinha expressão. Fez uma campanha política ao estilo de Allende. Aliás, Boric fez questão de dizer que se inspirou em Allende – que sempre foi senador pelas províncias da Patagónia – e fez a sua campanha com um grupo de amigos, umas vezes a cavalo, outras num autocarro ou a pé, e, nas eleições, ganhou a primeira maioria de todos os deputados a nível nacional. Isto foi um momento importantíssimo. É muito jovem, sociólogo de formação, muito culto e tem sempre uma expressão muito séria. Se tivesse 35 anos e fosse candidato nas presidenciais, acredito que haveria grandes mudanças no panorama político. Quem avança, neste caso, é Beatriz Sánchez, uma mulher muito inteligente, com um discurso muito sólido. Quero acreditar que vai conseguir um bom resultado.

Falou em Salvador Allende. Sei que se orgulha de ter feito parte do GAP (Grupo de Amigos Pessoais do presidente). Como era a relação entre Allende e os jovens que integravam esse grupo, e como eram escolhidos?
Era uma relação muito bonita, porque Allende era um homem que tinha uma grande humanidade. Um dia, o partido informou-nos que ia selecionar um grupo de jovens para escoltar o presidente e, quando me disseram que eu era um dos escolhidos… Bem, foi uma grande honra! [sorriso] Allende entendeu que tinha de ter gente que garantisse a sua segurança e queria que fossem militantes jovens, estudantes e trabalhadores. E, no caso dos estudantes, queria quadros políticos com inteligência política, que falassem outra língua e tivessem a mente desperta. E assim foi. Recebemos uma formação mínima da polícia para reagir em caso de ataque, como usar armas e essas coisas… Tínhamos um enorme respeito por Allende. Não só por ser o presidente, claro, mas também por se preocupar connosco. Tinha um carinho muito fraterno por todos nós. Na residência do presidente havia sempre oito companheiros da escolta que faziam o ‘turno da noite’ e, quando Allende dava o dia de trabalho por terminado, juntava-se a nós para tomar um chá e conversar.

Discutiam política? O futuro do Chile? Queria saber a vossa opinião?
Sim. Sempre que uma lei estava a ser discutida perguntava-nos o que pensávamos e nós dávamos a nossa opinião, claro. E sempre que ia ao Palácio presidencial distribuíamo-nos por três automóveis e ele divertia-se imenso, porque aí éramos nós quem assumia o comando. Ele nunca podia ir no mesmo carro. Umas vezes ia no do meio, outras no da retaguarda… e todos os dias mudávamos o trajeto e andávamos a alta velocidade. Às vezes, Allende gracejava dizendo que íamos acabar por gastar o Orçamento do Estado em multas por excesso de velocidade! [sorriso]

Para quem não privou de perto com Allende, a memória que deixa é a de estadista sério. Consta que tinha sentido de humor. É verdade?
É verdade, tinha um grande sentido de humor. Dou-lhe um exemplo. Uma casa onde ele por vezes passava o fim-de-semana, muito perto de Santiago e da cordilheira dos Andes, tinha uma sala onde se projetavam filmes. Como ele gostava muito de cinema italiano em geral, e do neorrealista em particular, um dia passaram um filme do Dino Risi, “Os Monstros”, com Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi. Gassman é o protagonista e faz de boxeur. A personagem é um tanto idiota e passa o tempo a dizer “estou tão feliz, tão feliz”, mesmo quando levava uns bons murros. Quando passeava pelo jardim, Allende punha-se a olhar para nós e fazia caretas e trejeitos iguais aos de Gassman e dizia-nos: “estou tão feliz!” Desatávamos todos às gargalhadas e a fazer as momices do filme… [riso]

No seu livro mais recente, “O fim da história”, lançado em junho, a sombra do passado deixa uma certa amargura, mas consegue arranca ao leitor alguns sorrisos com os pensamentos de Juan Belmonte. Convocou-o 20 anos depois de protagonizar “Nome de toureiro”. Era o único à altura deste desafio?
Quando escrevi “Nome de Toureiro”, decidi que o protagonista tinha que ter uma biografia e decidi atribuir-lhe parte da minha biografia. Somos parecidos em muitas coisas. [sorriso] Nascemos no mesmo ano, partilhamos o mesmo passado político… Na altura queria construir uma personagem forte e foi aí que ele começou a ganhar corpo. Fiz algumas perguntas a Belmonte. Gostarias de ter sido militante político na juventude? ‘Sim. Acho óptimo’. Gostarias de ter feito parte da guarda pessoal do presidente Allende? ‘Sim!’ Gostarias de ter-te metido em grandes sarilhos na Nicarágua, Bolívia? ‘Sim!’ Perfeito, disse eu. Em “Nome de Toureiro”, Belmonte e eu tínhamos uns 40 anos. Agora temos 67. E, a dada altura, dei por mim a pensar como estaria Belmonte… “O fim da história” nasce de um facto real. Em 2005, uma delegação de cossacos apresentou-se em La Moneda [palácio do governo], em Santiago do Chile, todos vestidos a rigor. Os chilenos pensaram que era uma comitiva do Teatro Bolshoi que estava de visita e ia saudar a presidente Bachelet. Nada disso. Era um assunto muito sério: iam pedir, ou melhor, comprar a libertação de um criminoso, [Miguel] Krassnoff. A presidente disse-lhes que isso não era possível, que no Chile as coisas não funcionam assim. Esse homem foi julgado com transparência e garantias legais, e foi condenado – a mais de mil anos de prisão – por violação de direitos humanos, assassinatos, tortura, etc. Jamais sairá em liberdade. E é aqui que acaba a parte real da história. Então, dei por mim no reino da conjetura: e se decidem enviar um grupo da Rússia para o libertar? Quem é a única pessoa que pode opor-se a tal missão? Tem de ser alguém que conheça muito bem a forma como esses tipos pensam e se movem, alguém que tenha passado pelas escolas militares soviéticas, que conheça as ‘leis’ da clandestinidade e saiba mover-se em silêncio. O único que encaixava neste perfil era Belmonte.

Neste livro há uma personagem que não é humana: Villa Grimaldi, o principal centro de tortura da ditadura de Pinochet. Li que tanto o Luis como a sua mulher, Carmen Yañez, conheceram o homem que a denunciou e, com isso, ditou a sua prisão em Villa Grimaldi. Pediu-lhes perdão e vocês concederam-lho. Como se lida com uma situação dessas? Como se perdoa a cobardia extrema?
Às vezes, a vida coloca-nos perante situações muito difíceis… Não perdoo os repressores, os que sabiam perfeitamente o que faziam, a repressão que exerciam, aqueles que chegaram ao ponto de ter prazer em reprimir. Mas tenho algum cuidado quando se trata de um companheiro que não resistiu, que não suportou a tortura. Todos os que passámos por isso sem trair, sem denunciar ninguém, sabemos que é muito duro e que houve gente que não resistiu… Nesses casos, que mais podemos fazer a não ser “percebo o que aconteceu e perdoo-te a tua fraqueza”. Faz parte da natureza humana. “Não és um exemplo moral, mas percebo que não tenhas suportado a dor, os maus-tratos, a tortura da tua mulher, do teu filho…”.

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