Há notícias que de tão incríveis (pouco críveis…) nos indignam ao ponto de se resistir a crê-las. Foi o caso de uma senhora, eleita para a Assembleia da República pelo povo pela Região Autónoma da Madeira (RAM), contrariar a evidência estatística (mais recente, mas que vem confirmar a estatística de anos anteriores) da taxa de pobreza e de risco de pobreza nesta região, argumentando que a pobreza, a existir, era por “miséria de cabeça”, como “consequência do abuso de álcool e de drogas”. Isto, dito na conferência promovida pela Cáritas Diocesana do Funchal para assinalar o Dia Mundial dos Pobres. Ocorreram-me várias citações e até trechos literários a propósito: quem não se lembra da Sra. Jonet, ter dito que “os pobres têm tendência a gastar o dinheiro mal gasto” e “que não se podia comer bifes todos os dias”? Já dizia Brecht: “Para quem tem uma boa posição social, falar de comida é coisa baixa. É compreensível: eles já comeram”.
Temos, entre nós, incluindo – o que é mais preocupante – responsáveis governativos e outros eleitos por sufrágio do povo – gente que do alto do seu privilégio e sobranceria social condenam, qual inquisição moral, os que nasceram ou se tornaram pobres (Alerta: a pobreza, conforme as políticas vigentes pode ser condição passível de atingir qualquer um … – talvez se esteja a tempo de se deixar de ser tão sobranceiro ou pedante perante o Outro Humano igual a nós…). São as denominadas Donas Abastanças (que também as há no masculino) que Manuel da Fonseca tão bem descreveu no seu poema com o mesmo nome, sobre a “Esposa do comendador /Senhor da alta finança” que, porém, acode às famílias necessitadas, “pouco a uns a outros nada/que dar a todos não se pode”, como se o “bem da bolsa lhe saísse”, fazendo, na verdade, “mais e mais pobres” com esta “estranha caridade/feita com o dinheiro do povo”. E mais há a anotar em trechos literários que passariam por O`Neill no seu poema de “Porta em Porta” ou por António Lobo Antunes no seu texto “Os pobrezinhos” que para além de serem obviamente pobres deviam manter-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam, mas passemos a factos:
– O acesso à habitação na RAM está cada vez mais longe do alcance da esmagadora maioria da população, classe média incluída, “com novos indicadores a apontarem que a taxa de esforço para adquirir casa própria no Funchal, para o cidadão comum, está fixada por estas alturas nos 105%”, de acordo com notícias recentes. E ainda neste ponto, é atentar ao crescente número de despejos por aumentos brutais do aluguer de casas e demais especulação imobiliária, e pelos baixos salários que aufere uma grande fatia populacional;
– O nível de vida e a inflação não se fazem acompanhar pelos míseros aumentos salariais; só os funcionários públicos (e não são o pior exemplo, eu sei) têm diminuído o seu poder de compra desde 2008 em mais de 11%;
– O desemprego é elevado e a empregabilidade é precária e pauta-se por baixos salários;
– As pensões e reformas podem assumir valores que nem aos 300 euros chegam (quem se voluntaria para, mesmo que só a nível experimental, viver um mês com este rendimento?);
– As famílias monoparentais são em número crescente a baixa escolaridade é uma lamentável realidade na RAM (onde o abandono escolar é dos mais altos do país);
– O crescente afluxo de emigrantes entre nós não devidamente amparados e protegidos socialmente, pelo contrário, são explorados e tratados indignamente;
– A falta de resposta à saúde mental na região (sem recursos humanos e os que existem são de difícil acesso por serem escassos ou por serem inacessíveis financeiramente a uma grande parte da população);
– Dados do relatório “Portugal, Balanço Social 2023”: “A taxa de pobreza está quase 10 pontos percentuais acima da média nacional na Madeira, a região com maior taxa de pobreza em Portugal”.
Em suma, o que tem faltado é um conjunto de políticas públicas de prevenção e combate à pobreza; mas tem sobejado a pobreza de espírito de tantos que veem na “caridadezinha” a via de combate à pobreza na RAM.
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