A troika voltou a Portugal. Mudou de nome e de feições e em vez de vestir fatos cinzentos há quem diga que é uma mistura de Mary Poppins com Lara Croft. Chama-se agora Miss Inflação e, segundo parece, ainda não teve nenhuma reunião formal com o doutor Fernando Medina. Talvez porque o doutor António Costa negue a existência de Miss Inflação, que para ele é um fantasma que não atormenta os portugueses.

O certo é que Miss Inflação existe, não faz parte de um “reality-show” nem ganhou o Festival da Canção, e anda por aí à solta. Dou um pequeno exemplo. Na padaria onde vou comprar o pão, aquilo a que chamamos “bolinhas de mistura” custavam até há uns dias 20 cêntimos. Custam agora 25 cêntimos. Foi um aumento de 25%.

Talvez o doutor António Costa não repare em pormenores excêntricos como estes de quem come pão. Talvez o doutor Medina também não vá aos supermercados comprar repolhos ou produtos supérfluos como um shampoo. Se tivesse curiosidade veria que subiram, nalguns casos, acima desses 25%. Ou seja, para os rendimentos baixos e médios, a isto chama-se o caminho para a pobreza à velocidade de Speedy Gonzalez, uma alternativa silenciosa à dolorosa austeridade da Troika.

Para o doutor Costa não se deve tentar aumentar os rendimentos para não gerar mais inflação oficial, isto enquanto espera que o telefone toque desde Bruxelas para dar as ordens. É uma opção de vida e de exercício do poder. Não têm pão, comam bolos, parece ser a política oficial. O OE apresentado é, por isso, um iogurte com limitado prazo de validade. Quando se for provar, pode deitar-se para o lixo. Mas essa é a política desta nossa Liliput.

Em “Harry Potter e a Ordem da Fénix”, o Ministério da Magia era inspirado em Whitehall, o nome da avenida no centro de Londres onde ficam os ministérios. É lá que os trouxas e as pessoas normais habitam. São normais porque não fazem magia, apenas aplicam truques. Portugal é, neste momento, um beco sem saída onde Governo e oposição já não fazem magia: limitam-se a truques que vão entretendo o povo enquanto esperam que o destino resolva os problemas do país. Portugal está dividido e fragmentado. O problema é que a sucessão de truques cansa. A inflação vai ser uma cama de faquir. Vai doer.

Ser primeiro-ministro é fantástico quando tudo corre bem. Ser único e incontestável chefe do partido que governa permite fazer o que se quer. Ter boa imagem é o cúmulo da sorte e dispor de uma oposição mansa é quase uma bênção do céu. O caminho para a queda é, para um líder, muito mais duro e fatigante que o da ascensão. Já ser o líder do maior partido da oposição é, em tempos de maioria absoluta, a mesma coisa que atravessar o deserto do Sahara a pé. Pode sucumbir-se à sede, antes de chegar a um oásis. O grande problema do PSD é que não tem um líder. Ou melhor, tem uma aparência de líder, o doutor Rui Rio, que está sentado no Parlamento mas não faz oposição, não move o dedo mindinho para que a sua substituição se apresse, espreguiça-se.

O PSD neste momento não existe: está a fazer uma sesta. E era agora que era preciso começar a falar destes irritantes problemas que vão trazer a pobreza ao país. O perigo está no horizonte: acreditávamos que, com a pandemia, regressaria a época dos políticos chatos (Biden, Draghi) e que a gestão se imporia ao receitário populista de Le Pen ou Ventura. Putin virou a mesa de jogo. A inflação veio assombrar as certezas. Como se viu nas eleições francesas, o medo e a crise económica, são o cavalo alado da extrema-direita.

Cersei Lannister, que sempre soube como um político deve actuar na grande roleta russa do poder, disse-nos: “Quando se joga ao jogo dos tronos só se pode ganhar ou morrer. Não há pontos intermédios”. A rainha dos Sete Reinos de Westeros sabia tudo sobre a moralidade e a imoralidade do poder e da ambição para o conquistar.

Não sendo um novato nos labirintos do poder, Rui Rio pareceu, no início da sua liderança, um político que negava o movimento. Parecia que se contentava em ocupar o espaço. E que a melhor opção em termos de decisões era, ou não tomar nenhuma, ou tomar alguma que irritasse os baronetes do partido. O seu destino trágico estava traçado. Só que, como recorda Cersei, para se alcançar o poder há que arriscar: ou se ganha ou se morre em batalha. O PSD tornou-se uma Bela Adormecida.

Tudo pode alterar-se. E o PSD vive o seu momento Júlio César: ou atravessa agora o Rubicão ou vai atolar-se. Quer o doutor Luís Montenegro ou o doutor Jorge Moreira da Silva querem abanar o chaparro sob o qual dorme o doutor Rui Rio. Antes, claro, que o monólogo do pica-pau do doutor André Ventura faça mais mossa num PSD que é central, seja mais ou centro ou à direita, no sistema democrático. E que será fundamental como contraponto a um governo que tem maioria absoluta mas que pode dissolver-se como o do doutor Sócrates porque o futuro é imprevisível.

Há um clima perfeito para uma alta densidade dramática, porque as sequelas desta crise não serão cicatrizados pelo PRR. A globalização dos preços baratos dissolveu-se, os blocos vão cristalizar-se. Se o doutor Macron não cair, ainda haverá alguma UE. Mas que se fará à Alemanha, depois do erro colossal que a doutora Merkel cometeu ao arrastar a Europa para o seu jogo pessoal sobre o fornecimento de gás russo? Será fustigada como fez ao mais fracos na crise anterior, deixando países como a Grécia e Portugal na penúria em nome do pagamento da “culpa”? Irá isso agora acontecer à Alemanha? Ou todos são iguais mas alguns são mais iguais do que os outros?

Vivemos um tempo de dúvidas. Não por acaso comemora-se este ano o centenário de “Nosferatu” de F. W. Murnau, a adaptação livre de “Drácula” de Bram Stoker, um das obras mais belas e estranhas da sétima arte. Entre a luz e as trevas, tinha como subtítulo “uma sinfonia do horror”. E este horror pode estar à nossa porta, apesar de uma maioria absoluta que parece cantar no meio da chuva. E da tempestade ameaçadora que se vê no horizonte.

 

O exemplo de Olivetti

“A fábrica não pode olhar apenas para o índice de lucro. Deve distribuir riqueza, cultura, serviços, democracia. Acho que a fábrica é para o homem, não o homem para a fábrica. As divisões entre capital e trabalho, indústria e agricultura, produção e cultura devem ser superadas. Às vezes, quando trabalho até tarde, vejo as luzes dos trabalhadores que trabalham em turno duplo, dos funcionários, dos engenheiros, e quero ir fazer uma saudação cheia de gratidão”, dizia Adriano Olivetti, nome cimeiro do empresariado italiano de sempre.

Eram outros tempos em que alguns defendiam a ideia de comunidade no local de trabalho. E a vida na fábrica da Olivetti era diferente de qualquer outra fábrica italiana, com uma organização do trabalho que incluía uma ideia de felicidade colectiva que automaticamente criava eficiência e entusiasmo nos trabalhadores.

Adriano Olivetti criou um sistema completo de serviços sociais para os trabalhadores, que incluía bairros residenciais, clínicas médicas, creches, cantina, biblioteca e cinema gratuitos. A empresa também acolheu artistas, escritores, designers e poetas, pois acreditava-se que a fábrica também precisava de pessoas capazes de enriquecer o trabalho com criatividade e sensibilidade. Tudo isso levou a um aumento significativo na produtividade e na qualidade do trabalho.

Na base de tudo está a ideia de comunidade, definida pela Olivetti como o único caminho a seguir para superar a separação entre indústria e agricultura, entre produção e cultura. Adriano Olivetti considerava fundamental qualquer tipo de trabalho, a começar pelo do trabalhador, afirmando muitas vezes que: “o trabalho deveria ser uma grande alegria e ainda é um tormento, tormento para muitos não o ter, o tormento de fazer um trabalho que não serve ou não serve a um propósito nobre”. Foi uma revolução entre 1930 e 1960.

É tendo em conta isso que se pode ver uma das boas exposições deste ano, entre nós: “Universo Olivetti, Comunidade como Utopia Concreta”, na Central Tejo do Maat, organizada pelo Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, sob a égide da Embaixada de Itália. Para conhecer o mundo de um dos grandes empresários italianos do século XX: Adriano Olivetti.

 

Dúvidas eternas

No mundo da música popular é cada vez mais visível que o velho ideal de grupos que se vão forjando com o tempo foi hoje substituído pelo êxito viral, que faz com que nomes desconhecidos irrompam como relâmpagos. Muitos deles são depois acarinhados, mas muito poucos são projectos sólidos.

Não foi o que sucedeu no ano passado com “Chaise Longue” das Wet Leg, um tema indie de um duo da ilha de Wight (famosa pelos festivais que ali decorreram entre 1968 e 1970). No seu álbum estreia (“Wet Leg”, CD Domino 2022) as Wet Leg afastam-se um pouco da ousadia desse tema e optam por um estilo mais convencional, embora não afastem a subtileza que ali já mostravam. Talvez a produção de Dan Carey (que trabalhou com os excelentes Fontaine DC) tenha trazido para este disco uma atmosfera muito própria do universo “indie” típico da década de 1990. Ou talvez tenha sido esse o objectivo de Hester Chambers e Rhian Teasdale, a dupla que se esconde por detrás do nome Wet Leg.

Encontramos aqui muito da angústia e ansiedade destes tempos de dúvidas eternas, mas isso é feito através de canções que são algumas vezes sonhadoras, outras exuberantes, mas que acabam por gerar um prazer muito grande para quem as descobre. Talvez alguns dos temas do disco sejam aqueles que mais se aproximam destes tempos inóspitos (“Being in Love” que insinua uma ideia de paixão como instabilidade mental, ou “Too Late Now”, um olhar crítico sobre as oportiunidades que passam à nossa frente sem se deterem).

No fundo, as Wet Leg reflectem sobre a vida de quem está a meio da segunda década de vida e vislumbra apenas uma neblina sem consistência à sua frente. É muito interessante “Angelica”, devido às guitarras cortantes que nos conduzem a história de uma jovem que se sente miserável durante uma esta. Há conexões com o passado da ilha onde as Wet Leg vivem já que “I don’t wanna go Out” vive num universo psicadélico e mesmo com o período inicial do punk britânico surge no devastadora “Supermarket”. Este é um disco irónico e de uma subtileza muito forte.

 

Os esquecidos de Xangai

Durante muitos anos, Xangai esteve parcialmente sob tutela estrangeira, repartida em zonas de influência – a concessão francesa e a internacional que conviviam com a cidade chinesa – e isso foi muito mais visível durante o período da guerra civil entre o Kuomitang e o Partido Comunista, com a interferência forte do exército japonês, que já iniciara a sua própria guerra mundial.

Durante a década de 1920 foi uma cidade aberta ao crime organizado, entre a incandescência da noite repleta de casas de divertimento, hotéis e arranha-céus. Era um lugar perfeito para os negócios de importantes empresários estrangeiros – “taipans” –, onde entretenimento e crime se confundiam, quais filmes de Hollywood e filmes chineses modernos. Até 1937, quando se deu o choque frontal entre as tropas chinesas e japonesas na ponte Marco Polo, cada um tratava dos seus interesses.

Xangai tinha tudo para atrair cidadãos de todas as nacionalidades, incluindo de origem portuguesa. Muitos deles fixaram-se ali desde meados do século XIX e chegaram a constituir uma das suas maiores comunidades, conforme nos conta António Caeiro neste livro onde, através de pequenas histórias (que muitas vezes se cruzam, sobretudo devido à identidade dos seus intérpretes), nos fala dessas pessoas, muitas de sangue português cruzado com chinês, que, ao contrário do que sucedeu com os retornados de África, não tinham onde regressar, até porque muitos deles nem sequer falavam português.

Eram membros de um império perdido, esquecido por Lisboa e que em muitos casos mantinham apenas ligações a Macau e a cruzamentos de sangue que se tinham estabelecido ao longo de muito tempo. Eram “filhos de Macau” ou “euroasiáticos” (como vemos ainda em locais como a Malásia ou Singapura). E que Portugal sempre ignorou olimpicamente.

Escreve o autor: “Os portugueses de Xangai eram ‘uma comunidade com grande plasticidade’, salienta o historiador Alfredo Gomes Dias. Embora não conhecessem Portugal, ‘assumiam a sua herança, nomeadamente religiosa’. Por outro lado, ‘o que caracteriza o seu quotidiano é o hibridismo entre o mundo asiático e o mundo europeu”.

Em Xangai estabeleceram-se e observaram as profundas transformações por que passou a China durante tantas décadas. “Exceptuando os refugiados russos (fugidos à revolução comunista de 1917, a maioria dos europeus que foram para Xangai não tencionava viver lá toda a vida”; para António Jorge da Silva, “os portugueses, porém, ‘viam-na como a sua casa’. Era lá que se casavam, constituíam família e educavam os filhos. Em meados dos anos 30, quase um terço dos 622 alunos do St Francis Xavier College – uma das escolas internacionais da cidade – eram portugueses”.

Depois, ao longo das páginas, lembra episódios pessoais de quem passou por Xangai ou lá teve o seus familiares, como o antigo ministro Roberto Carneiro. O pai, Art Carneiro, era um nome consolidado no mundo das orquestras e uma estrela quando Xangai era a terra do jazz e da dança nas décadas de 1920 e 1930.

Quando os comunistas tomaram o poder em Xangai, os portugueses também procuraram sair da cidade. Eram outros tempos. Poucos vieram para Portugal. Alguns escolheram Macau, mas era um pequeno território para quem vivera numa grande metrópole, e assim esses portugueses e macaenses dividiram-se pelo mundo. Mas como diz Felipe Nery: “como os Incas e os Maias, a nossa raça pode um dia diluir-se no vasto caldeirão, mas seremos sempre recordados como ‘filhos de Macau’”. Uma profecia que ganha neste livro um ar de certeza.

Os retornados de Xangai, António Caeiro, Tinta  da China, 207 páginas, 2022

 

A energia é um dos temas do momento. Em 1924, a publicidade na “Ilustração Portuguesa” contava outra história. Com humor.