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Morreu Filipe Guerra, o tradutor que fez pontes entre as línguas russa e portuguesa

As funções editoriais e de revisão literária fizeram parte do seu percurso, mas terá sido a tradução literária, mais concretamente de grandes autores russos, que inscreveu o seu nome na pedra. Sempre em parceria com Nina Guerra, sua companheira na vida e no trabalho.
7 Julho 2025, 17h31

Filipe Guerra, tradutor de poetas e grandes autores russos, antes de abraçar esse mister começou por trilhar o curso de Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, rumando depois à capital francesa, onde estudou linguística na Université Paris VIII (Vincennes).

Em 1975, de novo em Portugal, integrou a direção da Cooperativa Livreira Esteiros e, entre 1979 e 1982, dedicou-se à escrita e realização programas radiofónicos semanais sobre livros na rádio (RDP1 e Antena 2). Colaborou em jornais e revistas literárias, escrevendo artigos, e abraçou a tradução literária em Moscovo (Editorial Progresso) nos anos 1986-1989. Seguiu-se a Editorial Caminho, onde além da tradução também exerceu funções editoriais e de revisão literária, de 1989 a 1991.

Filipe Guerra fez da tradução literária “a menina dos seus olhos”. Individualmente, tem mais de 40 títulos traduzidos, do francês, do espanhol e do italiano, mas a marca indelével que deixa no universo da tradução literária são os frutos da formidável parceria com Nina Guerra – companheira de vida e de ofício.

Conheceram-se em meados da década de 1980 em Moscovo, onde Filipe trabalhou como tradutor literário e corretor na Editora Progresso de línguas estrangeiras. Em 1990 Nina fixou-se em Portugal e, seis anos depois, em 1996, conhecemos o primeiro fruto do extraordinário trabalho desta dupla, Guarda Minha Fala para Sempre, poemas de Óssip Mandelstam, publicado em 1996 pela Assírio & Alvim.

Desde então, seguiram imparáveis, dando a conhecer aos leitores portugueses as principais pérolas da literatura russa em traduções criteriosas e premiadas: de Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov a Gógol, Andrei Béli, Bulgákov e Stanislávski, entre outros. Saliente-se, a título de exemplo, o Grande Prémio de Tradução Literária da Associação Portuguesa de Tradutores/Pen Clube, em 2002, juntamente com Nina Guerra, pelas traduções das obras de Dostoiévski e Tchékhov; ou o prémio especial do júri da revista LER/Booktailors pelas suas traduções literárias, em 2012.

O estudo prévio, a pesquisa e a preparação para essa odisseia que é traduzir textos literários não o assustavam. Numa entrevista de 2023 à Bertrand Livreiros, à pergunta quais os títulos de Tolstói e Dostoiévski mais desafiantes para traduzir e porquê, respondeu que “em geral, Tolstói é mais acessível a uma tradução do que Doistoiévski. Mas Guerra e Paz e Anna Karénina foram um desafio enorme, principalmente por causa do estudo prévio que exigiram. Cada livro de Dostoiévski foi um desafio, mas destaco Demónios”. Recorde-se que, em outubro de 2022, a Editorial Presença deu início ao relançamento da coleção «Obras de Lev Tolstói», publicando Guerra e Paz, uma das grandes obras da literatura universal, em dois volumes. Seguiu-se Anna Karénina e Ressurreição, no início de 2023.

De referir ainda que o pioneirismo da abordagem da dupla Nina/Filipe trouxe virtuosas traduções aos leitores de língua portuguesa, uma vez que as anteriores – de obras já vertidas para o português – não eram feitas a partir da língua original, mas sim, na maioria das  vezes do francês (essencialmente) e do inglês.

A metodologia de trabalho que adotaram diz muito, também, da relação que mantinham com as línguas de partida e de chegada. “A Nina é a tradutora principal e faz uma versão prévia o mais próxima possível do russo; faz também o trabalho de investigação, através de fontes russas, um trabalho em que também colaboro”, explicou Filipe Roque na referida entrevista. “O rascunho passa para as minhas mãos, Filipe, que lhe dá a forma portuguesa, mas não definitiva. A minha versão volta para a Nina que, por sua vez, a emenda ou altera. Uma última leitura é feita em conjunto, sempre com o texto russo presente, até à tradução definitiva”.

São mais de 70 as obras traduzidas em conjunto. Um legado que perdurará enquanto a liberdade intelectual for exercida e a curiosidade pela literatura russa não esmorecer. Por todas as razões, mas invocamos aquelas que Filipe Guerra então frisou, referindo-se a Dostoiévski e Tolstói. “Estes dois clássicos russos influenciaram a literatura e também as mentalidades literárias de toda a narrativa (sobretudo do romance) mundial do século XX, e da sua continuação no século XXI. Os livros destes dois autores, como obras artísticas, continuam atuais: são a fonte, a nascente ainda viva do que se escreve nos dias de hoje”.

Morreu aos 77 anos, longe dos holofotes. Que sempre afastou – da sua vida pessoal e profissional.

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