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Não, a inflação ainda não está a dar sinais de vida

É provável que as próximas dores de cabeça do BCE não sejam exatamente aquelas que muita gente antecipa. A questão poderá não ser “quando” retirar os estímulos, mas sim o que fazer mais para garantir que a doença japonesa não se instala na Europa.
9 Junho 2017, 06h00

A cobertura jornalística da inflação europeia é um caso cada vez mais sério de enviesamento noticioso. Todas as subidas, por pequenas e transitórias que sejam, têm destaque imediato e impulsionam dezenas de artigos acerca do “fim do dinheiro barato” e da “inversão de marcha do BCE”. As descidas, por sua vez, são recebidas com indiferença e morrem como notas de rodapé antes. Esta curiosa assimetria tem gerado uma das percepção mais erradas na maioria das pessoas: a ideia de que a inflação está praticamente em cima da meta do BCE (2%). E que uma subida das taxas de juro, por consequência, está mesmo aí ao virar da esquina.

Na verdade, a inflação não está hoje significativamente mais próxima da meta do BCE do que estava há seis meses, 12 meses, ou até dois anos atrás. Uma leitura rigorosa dos dados sugere que, apesar de a retoma económica estar cada vez mais firme na Zona Euro – o que, a prazo, deveria impulsionar a inflação – não há ainda sinais de que as pressões do mercado laboral estejam a exercer a influência esperada. No que diz respeito ao comportamento dos preços, os progressos têm sido quase nulos desde meados de 2015.

Consideremos, por exemplo, o comportamento da chamada ‘inflação subjacente’, uma medida da evolução dos preços que desconta as rubricas como os combustíveis ou bens alimentares. Esta exclusão permite-nos limpar da análise o ‘ruído’ introduzido pelos sobes e desces constantes dos itens mais voláteis e erráticos, produzindo assim uma medida mais fiável da inércia da inflação. No final da semana passada o Eurostat divulgou os dados relativos a Maio, e descobrimos que a inflação subjacente atingiu os 1%, menos 0,2 pontos percentuais do que no mês anterior.
Mais importante, este valor surge um mês depois de o Eurostat ter revelado uma subida da inflação subjacente para 1,2%, o valor mais alto desde 2013. Os dados de Abril podiam ter sido o primeiro prenúncio de uma subida sustentada da inflação, convergindo para a meta oficial do BCE; ou podiam ser apenas mais uma daquelas oscilações espúrias que as estatísticas macroeconómicas de curto prazo inevitavelmente produzem. O boletim de Maio do Eurostat sugere que a segunda explicação deve estar mais próxima da verdade do que a primeira (ver infografia à direita).

Pode a Europa ser um Japão 2.0?

A anemia dos preços contraste com a recuperação sólida da economia europeia. Desde 2013, a economia da Zona Euro já cresceu mais de 5% em termos acumulados e a taxa de desemprego caiu de 12 para 9,3% da população activa. Dada a relação habitual entre a taxa de desemprego mercado de trabalho e as oscilações dos preços, seria de esperar uma inflação bem mais alta do que aquela que o Eurostat tem vindo a revelar. Mas, por razões ainda mal compreendidas, as relações estatísticas entre variáveis macroeconómicas que se verificaram durante décadas parecem agora estar a perder validade. Não por acaso, as previsões oficiais para a inflação têm sistematicamente falhado ao alvo, projectando subidas muito superiores àquilo que na prática se verifica.

É possível que isto resulte apenas de algum desfasamento temporal entre o momento em que o mercado laboral ganha vigor e o período em a confiança renovada dos trabalhadores os impele a exigir aumentos salariais mais altos – que por sua vez contaminam a formação de preços e acabam por estimular a inflação. A crise dos últimos anos foi uma das mais profundas desde a Grande Depressão e não é de excluir que estes efeitos demorem agora mais tempo a fazer-se sentir.

Mas há outra explicação igualmente plausível (e menos benigna) para o comportamento da inflação. Numa singela caixa de texto publicada nas Previsões de Primavera da Comissão Europeia, os economistas do órgão de Bruxelas compararam números, usaram alguma econometria e concluíram que há algo a mudar na forma como os europeus negoceiam salários. Segundo o estudo, os anos recentes de inflação baixa parecem ter-se cristalizado como um ‘novo normal’ na cabeça dos patrões e trabalhadores: os primeiros são mais relutantes a oferecer salários mais altos, porque não contam subir muito os seus preços no futuro; e os segundos ficam satisfeitos com aumentos modestos, porque também sabem que a erosão de poder de compra provocada pela inflação será escassa.

Este fenómeno tem um nome: desancoragem das expectativas. No caso, significa que os agentes económicos se habituaram a uma inflação baixa e já negoceiam salários e preços com base nesse cenário. Isto faz com que a inflação baixa se transforme num processo que se alimenta a si mesmo: preços baixos reduzem a pressão para aumentos salariais, que por sua vez permitem às empresas subir pouco os preços. O que, por sua vez, reforça a convicção das empresas e trabalhadores de que esta situação se vai manter perpetuar.

Esta hipótese não é uma ideia meramente académica. Nos anos 90, o Japão passou por uma grave crise económica, durante a qual a inflação caiu de uns “típicos” 1,5-3% para 0%. Desde então o Banco Central Japonês já fez de tudo um pouco para colocar a inflação nos eixos, mas até agora – e já lá vão mais de duas décadas a tentar – pouco aconteceu.

Se a Zona Euro estiver na mesma situação, então é provável que as próximas dores de cabeça do BCE não sejam exactamente aquelas que muita gente antecipa. A questão não será “quando” retirar os estímulos, mas sim o que fazer mais para garantir que a doença japonesa não se instala na Europa.

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