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O adeus alemão de Angela I, rainha da Europa

Depois das crises de crescimento da CEE, das reservas de De Gaulle face ao Reino Unido, dos sucessivos alargamentos, da unificação das duas Alemanhas e do Brexit, a União Europeia ganhou densidade e Angela Merkel foi de algum modo a sua primeira rainha.
25 Setembro 2021, 09h00

Angela Merkel surgiu tímida pela mão do poderoso chanceler alemão Helmut Kohl no meio de um partido até aí marcado pela presença de grandes políticos europeus – Konrad Adenauer e Kurt Georg Kiesinger são personalidades que inscreveram o seu nome nos compêndios da História da Europa – e sai com a imagem de ter sido uma espécie de primeira rainha da União Europeia na sua fase de consolidação.

Doutora em Química Quântica, e não economista, advogada ou engenheira, como era suporto, Angela Doroteia Kasner abandona a chancelaria deixando a Alemanha no topo da Europa, um lugar que Adenauer nunca imaginou nem nos seus sonhos mais românticos e Kiesinger quis mas sabia que não alcançaria. Alcançou-o Merkel, muito ajudada por Kohl, mas aquela que está prestes a tornar-se ex-chanceler da Alemanha rapidamente deixou para trás (alguns preferem dizer que se livrou) da herança do velho senador. Kohl será sempre o chanceler da reunificação – que a União, toda a União, pagou – mas Merkel será a chanceler que restituiu à Alemanha o seu lugar de liderança.

Os críticos preferem dizer que Angela Merkel foi, para o melhor mas também para o pior, quem ressuscitou a poderosa Prússia de Otto von Bismarck e com isso submeteu a Europa a uma visão espartilhada, economicista e pouco ágil da Europa. E prova disso, dizem, foi a postura germânica durante o pior da crise que assolou a Europa a partir de 2008 – com graves e difíceis de esquecer repercussões nos países do sul, Portugal incluído.

Mas, mesmo nessa altura Merkel mostrou ter aprendido com os erros e emendou a mão: depois da crise, a chanceler nasceu para outro período totalmente diferente e que acabaria por ser aquele que ficará na retira e na memória dos europeus. Esqueceu o que de pior tinha a austeridade, estabeleceu metas mais ambiciosas para o investimento produtivo e apoiou o plano de emergência que o italiano Mario Draghi, na altura governador do Banco Central Europeu, engendrou para salvar os países que gastavam demasiado dinheiro em vinho e mulheres e, já agora, todos os outros.

Essa outra Angela Merkel que tinha cada vez menos a ver com a jovem dos primeiros tempos mostrou-se mais ainda quando a Europa – como que distraída até então – caiu de súbito na crise dos refugiados, em 2016. Contra uma parte substancial da Europa (quase todos os países de Leste incluídos) e contra uma parte não despicienda do seu próprio partido (já para não nomear os circunspectos parceiros bávaros da CSU), a chanceler impôs uma opção humanista para gerir a crise perante a outra opção, a do orgulho bafiento de museu. Não foi totalmente bem sucedida – o negócios entre a União e a Turquia, uma coisa que envergonhará todos os envolvidos por muitas décadas – mas contribuiu para explicar a uma Europa assarapantada que o velho e civilizado continente tinha obrigações – precisamente por ser velho e civilizado, ou pelo menos se queria continuar a parece-lo – que não podiam ser vendidas por uns cêntimos de segurança.

Dizem que, com esta sua postura, Merkel calou, lá para os espaços mais recônditos da vergonha, as tentações extremistas que por esses dias assolavam a Europa e faziam perigar o humanismo que afinal é um dos alicerces do continente.

Não é por acaso que a sua partida deixa atrás de si um coro quase unânime dos encómios mais diversos, dos votos de boa reforma e das dúvidas sobre o que se seguirá, tanto na Alemanha como na Europa. A Angela Merkel que debutou no dia 18 de setembro de 2005 (quando ganhou as suas primeiras eleições) e aquela que a 26 de setembro próximo, quando finalmente expirar o prazo de validade da sua categoria de chanceler, vai descansar para um lado qualquer são duas pessoas diferentes. E se sobre a primeira havia as mais fundamentadas dúvidas, sobre a segunda há as não menos fundamentadas certezas.

Quem a substituir terá que sentir na carne as mesmas dores de crescimento que a chanceler terá sentido em 2005 – só não se sabe se será da mesma fibra o homem ou a mulher que a vai substituir. Aos 67 anos – recorde-se, para servir de comparação, que Joe Biden tem 79 – Merkel não dá mostras de pretender ter nem uma outra vida política, nem de se preparar para inaugurar uma espécie de magistratura de influência, como aconteceu com o social-democrata Gerhard Schroder, que a antecedeu, e que caiu na tentação do dinheiro russo.

Seja como for, para todos os efeitos, Angela Merkel ganhou o direito a um capítulo a si dedicado nos compêndios de História da Europa que vierem a ser escrito nas próximas décadas.

 

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