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O admirável mundo novo da Ketamina

Estão a surgir por todo o o mundo clínicas especializadas no tratamento de problemas de saúde mental que se singularizam pela utilização de ketamina, uma droga alucinógenia usada para fins recreativos mas que, em doses medicamente controladas, faz o que os anti-depressivos não conseguem. Em Lisboa, chama-se The Clinic Of Change. Tem gestores e empresários em tratamento por burnout, entre outras patologias.
4 Outubro 2024, 09h56

A venda de medicamentos baseados em drogas psicadélicas que ajudam a tratar depressões e outras doenças do foro psicológico atingirá os quatro mil milhões de euros nos próximos cinco anos e está a gerar um interesses crescente entre os investidores. Há um pouco de tudo nas bancadas dos laboratórios das dezenas de start-up biotecnológicas que investigam neste campo da saúde mental à procura de um novo blockbuster. O efeito dominó deste investimento vai reflectir-se nos produtos que vão tornar-se cada vez mais visíveis no mercado ao longo dos próximos anos e também no número de pacientes em tratamento.

MDMA, ketamina, 5-MeO-DMT — uma secreção alucinógena encontrada num sapo do deserto — algumas espécies de cogumelos, além de outras substâncias, estão a ser estudadas e testadas intensamente. Aquilo que se julgava ser apenas uma relíquia dos anos 60 do século passado ligada ao movimento hippy e que hoje estava de certa forma confinada aos consumidores recreativos e aos adeptos da microdosagem — o consumo de pequeníssimas doses, entre 10 a 20 micro gramas de LSD, para estimular a criatividade —, saltou das margens e da ilegalidade para entrar de rompante nos consultórios médicos com o estatuto de medicamento.
Lisboa não tem nenhuma start-up a fazer investigação neste domínio tão sensível, mas há pouco mais de um ano, em julho de 2023, este marasmo foi quebrado com a abertura de uma clínica no Saldanha — aprovada por todos os reguladores nacionais — onde a ketamina é usada para tratar pessoas que sofrem de depressão prolongada e diversos problemas graves de saúde mental. O que é extraordinário neste movimento que começa a chegar a Portugal é que até fundos de investimento com origem em países onde vigoram duríssimas leis penais para combater o consumo recreativo de drogas — por exemplo, Singapura — estão a aplicar cada vez mais capital neste admirável mundo novo.

A explicação para esta corrida ao ouro químico é a mais evidente de todas quando o assunto é dinheiro: a doença mental passou de embaraço pestilento a mercado muitíssimo rentável e apetitoso. As patologias do foro psiquiátrico estão em casa do vizinho do lado, afectam o colega com quem trabalhamos ou estão mesmo dentro da nossa própria casa.

Na verdade, a doença mental tem o dom da ubiquidade e é genuinamente democrática — não distingue género ou classe socioeconómica, idade ou profissão. O intenso sofrimento que causa deixou, por isso, de ser um segredo embaraçoso que todos escondiam e ninguém assumia e que, precisamente por isso, poucos resolviam tratar com médicos e especialistas, despertando para a realidade apenas quando a doença já criara raízes com terríveis consequências.

Nos antípodas do faz de conta e preconceito
Entretanto, a depressão saiu a correr do armário e passou a ser um naturalíssimo assunto de conversa. Na realidade, transformou-se em mais uma espécie de moda. Para algumas pessoas, espantosamente serve até de alavanca de afirmação pessoal ou é mais um mundano assunto de conversa de escritório ou café.

As notícias publicadas pelos jornais, as reportagens televisivas e radiofónicas reflectem esta súbita multiplicação de casos, como se estivéssemos perante uma pandemia de doença mental. Naturalmente, nem tudo o que se lê, ouve ou vê é rigoroso, há muita especulação e demasiadas generalizações, mas isso não significa que se trata de uma miragem temporária — o problema existe, tem escala e a sua gravidade não pode ser questionada.

Médicos, advogados, contabilistas, atletas de alta competição, gestores e empresários, ninguém está imune à depressão. As razões estão intrinsecamente ligadas ao nosso modo vida: pressão, seja de que espécie for, longas horas laborais, a ligação constante incentivada pelo telemóvel, além da intensa competição profissional… são, genericamente, os problemas comuns relatados por cada vez mais pessoas — sem esquecer as causa biológicas ou as que estão relacionadas com experiências traumáticas.

A depressão, mais ou menos grave, o alcoolismo e a toxicodependência — mesmo em pessoas até certa altura profissionalmente funcionais — têm ganho cada vez mais expressão e tornaram-se num grave problema de saúde pública. O que não falta são doentes, o que significa que o mercado global de antidepressivos vale quase 20 mil milhões de euros todos os anos. Em Portugal vendem-se 33 mil embalagens por dia, o que significa que num ano são prescritas 12 milhões de caixas, o que equivale a mais de uma caixa por habitante, embora a distribuição per capita não seja esta — ainda assim, é obviamente uma enormidade.

Com esta generalização de antidepressivos, como está, então, a saúde mental dos portugueses? Se estas vendas forem levadas à letra, o diagnóstico é claro como a água: estamos no fundo do poço, o que talvez seja um enorme exagero. Se olharmos para este excesso de consumo como algum distanciamento, percebemos então que talvez haja um problema atrás do problema – além do excesso de prescrição e consumo, muitas vezes sem receita médica, sobressai a incapacidade dos antidepressivos convencionais conseguirem resolver parcial ou totalmente a doença que é suposto tratarem. Obtêm resultados, claro, a evidência clínica demonstra-o cabalmente, mas há patologias que ainda assim permanecem fora do seu alcance químico. É precisamente aqui que entra o trabalho desenvolvido pela The Clinic of Change.

Lançada por um grupo de sócios onde se destaca o ex-presidente da Associação Nacional de Farmácias, Paulo Duarte, e a psicóloga clínica Carla Mariz, além de realizar sessões de psicoterapia convencionais, esta equipa médica aumentou o arsenal de combate: à psicoterapia juntou-lhe a ketamina, conseguindo, através desta combinação, uma taxa de cura elevada entre os doentes com depressão resistente, isto é, que não respondem a outro tipo de tratamento.

A ketamina, usada em doses muito reduzidas, não é contudo um tratamento generalizável, tem contra-indicações e é dirigida a um grupo de doentes muito específico: pessoas com depressões que se arrastam há muito sem que os antidepressivos surtam efeito. Não são casos em fim de linha, são situações extremas que podem exigir uma abordagem médica diferenciada capaz de romper este ciclo vicioso.

Do consumo recreativo ao uso médico, o que mudou?
A ketamina – ou cetamina – foi descoberta em 1962 e consta da lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde. Usada como analgésico desde os anos 60 em ambiente hospitalar, por exemplo na área da pediatria cirúrgica, os efeitos estão longamente documentados, não falta literatura científica sobre o tema. Mais conhecida, no entanto, é a utilização recreativa desta droga, embora o seu consumo provoque resultados e uma experiência muito diferentes daquela que é obtida pela via médica.
Em primeiro lugar, a grande diferença é a dosagem, infinitamente maior e descontrolada quando usada como estupefaciente – o protocolo usado pela Clinic of Change segue os parâmetros definidos internacionalmente. Em segundo lugar, a assistência médica permanente durante as sessões – ao todo, seis –, o que implica a realização de exames e uma vigilância minuciosa. Finalmente, há uma lista de contra-indicações que, entre outras linhas vermelhas, exclui, por exemplo, doentes que tomem antipsicóticos. A ideia central é reduzir todos os riscos, o que tem sido conseguido durante este primeiro ano de vida, e que repete a experiência internacional.

Os fundadores e os terapeutas da clínica portuguesa têm consciência de que estão, de certa forma, a ser pioneiros e a desbravar terreno em Portugal. A ketamina já foi usada para fins terapêuticos em pacientes acompanhados no hospital Júlio de Matos, embora em moldes diferentes, mas o caminho da credibilidade demora a ser percorrido, apesar de o lastro internacional e o passa-palavra entre psicólogos e psiquiatras – que remetem doentes seus para a clínica do Saldanha – acelerarem este movimento.

Foi precisamente essa a razão, o selo de qualidade internacional, que levou a Clinic of Change a associar-se à Awakn Life Sciences, que tem clínicas licenciadas em Londres, Nova Iorque, Los Angeles, Toronto e Oslo, mantendo protocolos de investigação com o Imperial College, a Universidade de Exeter, ambas no Reino Unido, e também com o serviço nacional de saúde britânico (NHS). Em Portugal, a ligação à academia também está a ser desenvolvida através do ISPA, bem como com a Ordem dos Psicólogos.

Falta então o essencial. Quais os efeitos da ketamina no cérebro? Qual a luz que esta droga acende e que, apagada, deixa as pessoas na escuridão sem resposta para a inquietação, medo e paralisia que as domina e que, por vezes, provoca uma cadeia de perturbações incapacitantes. A psicóloga Carla Mariz explica: “A ketamina aumenta a neuroplasticidade. Ao contrário dos antidepressivos, que demoram tempo a ter efeito no doente, a ketamina actua imediatamente, ilumina acontecimentos e experiências que estavam escondidas e esquecidas, o que potencialmente pode oferecer novas respostas para traumas e problemas que se arrastavam há demasiado tempo.” Dito de outra maneira, a ketamina liberta o cérebro que se encontra encalhado em determinadas associações de ideias e factos passados. Ou seja, abre novas vias e soluções, cria novas interpretações, ajuda a sarar a ferida. O consumo recreativo, porque descontrolado, inunda o cérebro de estímulos, abre demasiado as comportas e o resultado não tem nada de terapêutico, embora possa gerar prazer e bem-estar.

Para uma pessoa que sofra de um trauma ou que esteja em genuíno burnout – e, por isso, tenha hábitos e dinâmicas autodestrutivas, como o consumo descontrolado de álcool, drogas, comida e até sexo – o que a ketamina consegue, apoiada pela psicoterapia que se lhe segue (a pscicoterapia é fundamental para verbalizar e fechar o processo, diz Carla Mariz) é iniciar um novo ciclo livre de dinâmicas tóxicas. A substância induz uma espécie de estado de transe e sedação, como se a pessoa, embora consciente, deixasse por momentos o seu corpo e iniciasse uma viagem interior.

O acto de contar a história traumática que viveu e os problemas que sofre não altera a reacção fisiológica e hormonal automática do doente, o seu corpo continua hipervigilante, preparado para ser atacado a qualquer instante. Ora bem, o que a ketamina ajuda a encontrar são novas respostas que estavam perdidas e que ajudam o corpo e a própria mente a perceber que o perigo foi ultrapassado e que é possível e bom viver no presente. Tudo isto acontece deitado num sofá e com auscultadores que ajudam a levar a viagem a bom porto.

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