Durante praticamente 70 anos – quase tantos quantos os que passaram desde os alvores do projeto europeu até aos nossos dias – o projeto europeu que teve o seu início com as três Comunidades Europeias e se prolongou na atual União Europeia, assentou as suas bases num entendimento, mais ou menos explícito, entre duas das mais importantes famílias políticas europeias: o socialismo democrático europeu (e, por extensão, os seus aparentados sociais-democratas) e os democratas-cristãos, ambas maioritariamente chamadas à reconstrução dos diferentes Estados europeus depois da segunda guerra mundial.
Esse consenso europeu manifestou-se de diferentes formas, com particular ênfase para a composição das várias instituições europeias, desde as que beneficiam de uma legitimidade democrática direta às que usufruem de uma legitimidade democrática indireta.
Em primeiro lugar e desde logo, no Parlamento Europeu. Quer quando os seus membros eram eleitos pelo Parlamentos nacionais, quer quando passaram a ser eleitos por sufrágio direto, secreto e universal pelos cidadãos dos Estados membros, as referidas famílias políticas europeias tiveram sempre uma representatividade significativa no Parlamento de Estrasburgo. Por regra, cerca de três quartos da câmara parlamentar europeia aparecia-nos vinculada ou aos democratas-cristãos do Partido Popular Europeu (e da sua antecessora União Europeia das Democracias-Cristãs) e aos socialistas (e aparentados) do Partido Socialista Europeu.
Em segundo lugar, no âmbito do Conselho de Ministros europeu – e, por extensão, do Conselho Europeu – sendo os seus membros oriundos ou membros dos diferentes governos nacionais, eram as referidas famílias políticas europeias quem ditava cartas e assumia o controle quase completo da instituição.
Como consequência da composição partidária de ambas as instituições referidas, em terceiro lugar, a Comissão Europeia que, funcionalmente e em momentos diferentes, dependia de ambas, refletia esse mesmo predomínio, com uma ou outra abertura pontual aos representantes de algumas correntes políticas liberais.
Foi este consenso entre democratas-cristãos e socialistas europeus que estruturou e lançou as bases da União Europeia tal qual a conhecemos; sem ele não teriam existido os grandes marcos do aprofundamento da construção europeia: os diferentes alargamentos, a construção do mercado único europeu, a aprovação do Ato Único Europeu, o avanço para a união política e para a união económica e monetária, a celebração dos Tratados de Maastricht, de Amesterdão e de Lisboa, vários outros sucessos de que a União se pode orgulhar na sua história.
Os mais recentes estudos eleitorais publicados, que têm por objeto as eleições europeias do próximo dia 26 de maio, antecipam-nos, porém, que este cenário poderá estar em vias de mudar radicalmente e de sofrer a maior transformação desde o início do processo de unificação da Europa.
Há dados revestidos de alguma fiabilidade que nos antecipam que as clássicas e tradicionais famílias políticas europeias serão fortemente penalizadas na composição do próximo Parlamento Europeu, mercê sobretudo do ambiente político existente em alguns países do centro e do leste da Europa, alcançando, no seu conjunto, pouco mais de metade dos lugares em disputa na eurocâmara.
Tal redução, a concretizar-se, far-se-á quase de forma inevitável em benefício de correntes políticas populistas e extremistas, sejam de extrema-esquerda sejam de extrema-direita. A tomar por boas e fiáveis as tendências eleitorais que se têm manifestado mais recentemente em alguns dos principais Estados membros da União – casos, por exemplo, de França, Alemanha, Áustria, Hungria, Polónia, República Checa, Itália, Espanha…. – não nos podemos surpreender se assistirmos a uma fragmentação e a uma pulverização dos grupos parlamentares europeus a par de uma radicalização, à esquerda e à direita, da composição do próprio Parlamento Europeu.
Não são, seguramente, notícias que augurem um futuro promissor para os tempos mais próximos do próprio projeto europeu. A Europa que preconizamos e pela qual se bateram os pais fundadores nunca foi uma Europa radical ou radicalizada. Foi, sempre, uma Europa de consensos, de moderação e de equilíbrios. Quaisquer ruturas nesse paradigma que se possam vir a registar após as próximas eleições europeias não contribuirão, seguramente, para tornar mais fácil as reformas e os aprofundamentos que a União e o projeto europeu reclamam e exigem para o futuro próximo.
Esta rutura do consenso europeu, que se antecipa, poderá vir a ser o grande passivo das próximas eleições europeias. Estará nas mãos dos europeus dizerem aquilo que pretendem para o seu futuro.
Uma involução no percurso seguido – com o regresso de punções nacionalistas e populistas que sempre que se manifestaram conduziram a Europa à tragédia e ao abismo – ou a opção por um caminho que, não tendo sido isento de (muitos) erros, falhas e contradições, tem sido o garante pelo maior período de paz e prosperidade que a Europa tem conhecido de há mais de um século a esta parte. A palavra final será dos europeus.