Foram os Estados Unidos que ao longo dos últimos 75 anos se têm esforçado por dotar o mundo de uma certa ordem internacional, enquadrada por um conjunto de tratados e organizações que, apesar de imperfeitas, estabeleceram regras que guiaram as relações entre os países e, porque não dizê-lo, tentaram fazer da liberdade, dos direitos humanos, da democracia e do estado de direito as suas pedras angulares. Foi após a Segunda Guerra Mundial, com Roosevelt mas sobretudo Truman, sob o chamado princípio de “contenção” (containment) que importantes alianças foram estabelecidas, com o Japão na Ásia e com os Alemães na Europa, transformando ditaduras brutais em democracias sólidas e fazendo dos derrotados, vencedores. Não despicienda foi a riqueza que ajudaram a criar nesses e noutros países (o Japão é a terceira economia mundial, a Alemanha a quarta), através do Plano Marshall e da reforma do Japão e das suas instituições operada por McArthur ao longo dos sete anos de ocupação pacífica. Os EUA estiveram na origem da Organização das Nações Unidas, que contém a relevante OMS, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do GATT, hoje Organização Mundial do Comércio. Ao longo da Guerra Fria, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, assegurou a defesa do continente europeu ante a ameaça soviética. Quando foi necessário garantir que o poder não caía na rua depois do colapso da URSS e que o seu arsenal nuclear não ia parar a mãos erradas, foram os americanos que conseguiram o desmantelamento parcial e a salvaguarda. Alianças regionais como o ASEAN nos países do sudeste asiático ou a Organização de Estados Americanos, nas Américas, garantem uma permanente ligação aos propósitos acima mencionados, sempre dentro da esfera de influência dos EUA.
Naturalmente, foram cometidos erros neste percurso, sobretudo de natureza bélica, como foram os casos da guerra do Vietnam, da fracassada invasão do Iraque (após notável êxito na Primeira Guerra do Golfo) e da guerra no Afeganistão. Também, pelo caminho, a proteção concedida a ditadores inapresentáveis como Pinochet, Somoza ou Mobutu mostraram um lado inaceitável em prol do objetivo mais imediato de contenção do comunismo a qualquer preço.
Eis-nos agora a braços com Trump. Um presidente que abriu o mandato com um discurso que transformou todos esses notáveis êxitos e outros – o nível de vida em todo o mundo disparou, a longevidade aumentou mais de uma década, os níveis de literacia batem recordes, a pobreza recuou a níveis nunca esperados – numa “carnificina americana”: “Enriquecemos outros países enquanto a nossa própria riqueza, força e auto-confiança se dissiparam no horizonte”. Desde o primeiro momento da sua presidência que os EUA se retiraram ou ameaçaram retirar do acordo de Paris, do Acordo Trans-Pacífico, do acordo nuclear com o Irão, do Acordo sobre Armas Nucleares de Médio Alcance, da OMS, da UNESCO e mesmo do Concelho das Nações Unidas para os Direito Humanos. Já chamou a OTAN de “irrelevante” e a Europa de “inimigo” enquanto disse simpatizar com Kim Jong-un e admirar Putin. Recusou-se a condenar publicamente o regime saudita depois do assassínio do jornalista Kashoggi. Retira milhares de tropas da Alemanha para as recolocar, em parte, na Polónia cujo regime tudo fez para anular o sistema judicial independente. Abandonou os curdos às forças de Al-Assad. Pretende impor o seu candidato no Banco de Ajuda Latino-americano, um cargo sempre desempenhado por um não-americano. Recusou-se participar numa aliança internacional para pesquisa de uma vacina à Covid19. E por aí fora.
Que a China precisa de ser contida e os europeus precisam aumentar o financiamento à OTAN, estamos de acordo. Romper o bloqueio a Israel pelo mundo Árabe merece louvor, também estamos de acordo. Mas falta a forma enquadrada, sistemática, partilhada, feita em permanente consulta que o sistema herdado de Truman nos trouxe. Trump conseguiu arrasar com a ordem internacional sem propor algo que a substituísse. E, como se pode ver nas ruas da América, a verdadeira carnificina americana é, hoje sim, patente nos confrontos raciais, na brutalidade policial, na polarização da sociedade, no fracasso do combate à pandemia, no estado Hobbesiano em que a América se transformou. Infelizmente, com esta América, o mundo fica à toa.