A efeméride do bicentenário da independência do Brasil introduziu, na imprensa e na academia portuguesas, uma reflexão sobre a relação luso-brasileira que não é comum. Prevaleceu a análise do passado – o império, o colonialismo e as suas marcas nos dois países – mas também se conjecturou sobre o estado do relacionamento e as suas potencialidades.

À primeira vista pode pensar-se que é um debate esgotado dada a longevidade da relação. Embora assim possa ser no que se refere à discussão do passado, o mesmo não acontece com a discussão das relações luso-brasileiras contemporâneas, nos dois lados do Atlântico. Em parte, aquela assumpção poderá ter contribuído para um desconhecimento de Portugal relativamente ao Brasil, e do Brasil relativamente a Portugal, ou pelo menos, um conhecimento desfasado da realidade. Adicionalmente, existe também uma constante narrativa em torno da ideia de uma fraternidade histórica e de afinidades culturais que unem os dois países e os tornam parceiros especiais e privilegiados.

Admitindo que esse discurso e essas concepções criam expectativas e atravessam diversas dimensões – política, económica, social, cultural – qual o seu significado ao longo dos anos mais recentes?

Os desejos de Portugal e do Brasil democráticos

A questão colonial portuguesa foi a principal fonte de divergência de Portugal com o sistema internacional e foi também o assunto que criou momentos de tensão com o Brasil. Mas mesmo nesse período não faltaram declarações pontuais e discursos oficiais em que a tese dos laços históricos entre Portugal e Brasil fosse mobilizada para fortalecer ou justificar posicionamentos sobre o tema colonial ou sobre questões mais gerais.

O governo brasileiro foi o primeiro a reconhecer oficialmente o novo regime político de Portugal e, foi, igualmente, o primeiro país, no mundo ocidental, a reconhecer a independência de Angola, em 1975. Consequentemente, a descolonização, a par da normalização do funcionamento das instituições políticas portuguesas, permitiu que as relações entre Portugal e o Brasil começassem a fluir. As visitas do Presidente da República, Ramalho Eanes, em Maio de 1978, e antes dele, do primeiro-ministro Mário Soares, em 1976, procuraram transmitir essa normalidade.

Desde a re-democratização de cada um dos países, separadas por uma década, que os discursos dos líderes políticos são caracterizados pela constante referência a elementos que justificam a relação luso-brasileira e o seu aprofundamento.

Em Portugal, a instauração da Democracia contribuiu para que a elite política portuguesa passasse a percepcionar a Europa e o Atlântico como duas opções complementares. Assistiu-se a uma constante referência ao Brasil na estratégia externa portuguesa assente na partilha de uma matriz de valores, história e cultura. No entanto, só após a conclusão do processo de adesão às comunidades europeias, Portugal procurou delinear os contornos da relação com o Brasil.

Em 1987, quando o primeiro-ministro Mário Soares voltou ao Brasil tinha como objectivo dar a conhecer a nova imagem de Portugal, integrado na Europa, e assim contribuir para a renovação da ideia brasileira sobre Portugal.

No Brasil, o processo de democratização significou a reflexão sobre o modelo de inserção internacional do país, em particular sobre os contornos da relação com os Estados Unidos. No que se refere às relações entre Portugal e o Brasil, até meados da década de 1990, predominou a retórica do afecto, da amizade, da cooperação política e da ambição de se traduzir tudo isso em políticas económicas.

Historicamente, a circunstância europeia de Portugal foi entendida e definida como uma mais-valia, tanto por Portugal como pelo Brasil.

O Brasil viu com bons olhos a adesão de Portugal à então CEE precisamente porque dadas as relações históricas entre os dois países, Lisboa poderia ajudar Brasília no estreitamento de relações com Bruxelas. Para Portugal, por sua vez, manter uma relação privilegiada com o Brasil e reconhecer-se-lhe um papel de interlocutor privilegiado poderia contribuir para alavancar a sua posição no seio da União Europeia (UE). Em boa verdade, o cenário perfeito para a política externa portuguesa: dar prioridade à opção europeia preservando as suas relações históricas com o Brasil e através delas distinguir-se na Europa.

As declarações do então presidente brasileiro José Sarney por ocasião da sua visita a Lisboa, em 1986, no mesmo ano da adesão portuguesa à CEE, não deixam dúvidas: a expectativa era de que Portugal abrisse mais uma janela de entendimento e cooperação do Brasil com o continente europeu. E, de facto, esta expectativa confirmou-se quando Portugal assumiu a presidência do Conselho da União Europeia, em 1992 – a primeira vez desde a sua adesão.

Dez anos depois do primeiro Acordo-Quadro entre o Brasil e a CEE datado de 1982, foi sob a presidência portuguesa que, finalmente, se deu a sua actualização e expansão. No mesmo sentido, em 2007, também sob a presidência portuguesa foi institucionalizada a Parceria Estratégica e realizada a I Cimeira UE-Brasil. Acto que se revestiu de um carácter simbólico sem precedentes – para a relação luso-brasileira, para a afirmação portuguesa no seio da UE, e para a própria UE que estabelecia a primeira parceria estratégica com um país da América Latina. Para o Brasil, era o reconhecimento do seu papel internacional cuja ligação à Europa e às principais potências europeias se apresentou por diversas vezes como um complemento ao relacionamento com os Estados Unidos.

Os resultados da década de 1990 e os seus efeitos

As primeiras concretizações surgiram no início da década de 1990, quando o primeiro-ministro Cavaco Silva visitou o Brasil. Foi assinado o Acordo Geral de Cooperação que institucionalizou as Cimeiras Luso-brasileiras, bem como outros acordos que vieram dar uma nova dinâmica ao Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta de 1953.

Em 1996, a institucionalização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) representou um marco das relações de Portugal com os Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), ao mesmo tempo que criou uma base de relacionamento adicional com o Brasil. Porém, o entendimento que Portugal e o Brasil tinham acerca de África, e como tal da CPLP, tinha algumas nuances.

No Brasil, o entusiasmo dado ao projecto da CPLP estaria ao sabor dos líderes políticos, por exemplo, o Presidente Lula da Silva à chamada Cooperação Sul-Sul na relação com os países africanos, mas que não teve a CPLP como ponto de referência. Tanto para o Brasil como para Portugal, a CPLP funciona como um instrumento complementar às relações bilaterais com os Estados-membro da comunidade e como um mecanismo para maximizar a imagem de cada país nos seus respectivos espaços regionais.

As relações económicas entre Portugal e o Brasil não têm sido lineares. Neste domínio, também a década de 1990 se destaca, dada a implementação da «opção Brasil» pelo primeiro-ministro António Guterres. Entre 1995 e 2002 assistiu-se ao exercício de uma diplomacia económica orientada para o Brasil, e à antiga ambição de incrementar a relação económica com aquele país. Face à magnitude dos números, foram os anos de ouro da relação luso-brasileira. A posição adoptada pelo governo de Guterres, bem como o contexto brasileiro favorável foram indispensáveis para o sucesso daquela estratégia.

Com o passar dos anos, porém, estes números foram minguando, fazendo crer que os laços existentes, presentes no discurso oficial da década de 80, não eram suficientes para efectivar a relação económica. A partir de 2008, no quadro da crise económica que afectou Portugal, registou-se um novo interesse pelo Brasil dado o bom momento que ainda caracterizava economicamente o país e que levou o primeiro-ministro José Sócrates a redireccionar para o Brasil e a América Latina o enfoque que tinha colocado na vizinha Espanha.

O fim da intervenção externa da troika em Portugal exigiu que, a partir de 2015, o governo se concentrasse na reconstrução da imagem de Portugal no mundo, articulando a estratégia de política externa com a política cultural, especialmente através da promoção da língua. Ao nível político, stricto sensu, regista-se, porém, uma estagnação do relacionamento, que encontra justificação, quer na centralidade da União Europeia na política portuguesa, quer no contexto de crescente crise política que assolou o Brasil e que culminou com a eleição, em 2018, de um governo de extrema-direita.

Esta estagnação, porém, não teve reflexo nos fluxos migratórios do Brasil para Portugal. Desde o final dos anos 90 que a imigração brasileira começou a moldar a agenda do relacionamento, tornando-se a principal comunidade imigrante em Portugal com um perfil que tem variado ao longo dos anos. Note-se a assinatura, em 2000, do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta que estabeleceu o princípio da igualdade de poderes políticos a portugueses e brasileiros, a aprovação pelo Parlamento português, em 2001, da Lei da Reciprocidade e, a assinatura, em 2003, do Acordo sobre a Contratação Recíproca de Nacionais (conhecido como o Acordo Lula).

Actualmente, e alinhada com uma tendência de saída de população do país, que se acentuou desde 2020, a comunidade imigrante em Portugal é a segunda comunidade brasileira no estrangeiro, depois dos Estados Unidos. A escolha de Portugal pelos imigrantes brasileiros decorre porventura de variadas razões, mas beneficiará sem dúvida de uma expectativa assente numa construção social histórica que, para além de elementos reais, também é alimentada pelas narrativas oficiais.

Como o primeiro-ministro António Costa afirmava em 2017, no quadro das comemorações do 10 de Junho que decorreram simultaneamente em Portugal e no Brasil, “somos uma boa porta de entrada para a União Europeia. Para nós, é um prazer vocês nos descobrirem. É como se estivéssemos acertando uma dívida de 500 anos”.

Oportunidades e desafios

A comparação entre as intenções demonstradas e o desempenho alcançado no relacionamento luso-brasileiro evidencia um paradoxo baseado na narrativa da fraternidade histórica e das afinidades culturais. Se, por um lado, esta narrativa potencia a aproximação entre os dois países, porque funciona como um ponto de partida para as tentativas de criação de uma agenda e projectos comuns, por outro lado, também a constrange, uma vez que, em função dela, se assume que naturalmente a relação produzirá resultados. A isso soma-se, desde logo, uma importância diferenciada atribuída por cada um dos países ao relacionamento, evidenciando-se um desequilíbrio em desfavor de Portugal se compararmos a presença de um na agenda política, económica, internacional ou social do outro.

A narrativa da fraternidade, dos laços de amizade histórica, da partilha da língua é parte da relação luso-brasileira e tem dificultado a construção de uma sintonia entre a auto-imagem de um país e a respectiva percepção pelo outro – esta sintonia pode não significar um aprofundamento das relações, mas pelo menos torna reais as expectativas.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

Carmen Fonseca assina este texto no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), na qualidade de coautora, com Leticia Pinheiro, de “Portugal-Brasil: encontros e desencontros”, publicado pela FFMS.