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O que faz um alto quadro quando a cabeça está quase a descarrilar?

Esta é a segunda parte sobre a utilização de ketamina para curar depressões prolongadas, burnout e outros problemas de saúde mental. Explica os efeitos concretos num paciente: um alto quadro de uma multinacional que estava a um passo de descarrilar. A 6 de novembro decorre em Lisboa uma conferência com o maior especialista global desta área que tem provocado a abertura de clínicas em várias capitais europeias.
18 Outubro 2024, 10h17

Há um instante que pode durar anos a acontecer e a tornar-se inevitável. Pessoas que arrastam uma depressão prolongada e complexa, um labirinto escuro que não as conduz a parte alguma e que, um dia, finalmente, decidem dar o passo que as pode ajudar a libertar-se do peso que arrastam. Há quem tente psicoterapia, há quem durante anos tome anti-depressivos que podem ajudar muito, pouco ou nada — e até podem ser contraproducentes, convertendo a vida do doente numa travessia sonâmbula da realidade.

Pessoas assim conhecemos todos. Na verdade, a doença mental converteu-se numa espécie de pandemia difícil de avaliar e que, demasiadas vezes, é sobreavaliada, como se a maior parte da população sofresse de stress pós-traumático ou de outro problema de saúde mental. O menu é extenso e por vezes até exótico, tão bizarro como a imaginação humana. Excluídos os exageros e as modas que fazem parte da permanente imersão mediática em que vivemos, o problema é real e não tem solução mágica, mas tem, pelo menos, uma luz sobre a forma de resposta química: chama-se ketamina e é a droga, sob forma legal, que está a chegar às capitais de todo o mundo e, em particular, às clínicas e hospitais especializados neste tipo de doença.

Nas últimas semanas, o JE publicou a primeira parte desta reportagem. O enquadramento médico-científico que tem gerado um interesse à volta desta droga alucinogénia é um facto facilmente comprovável: a 6 de novembro realiza-se em Lisboa uma conferência sobre o uso medicamente assistido de ketamina e terá como protagonista David Nutt, o antigo responsável pela política de drogas do Reino Unido e reputado neuropsicofarmacologista. Nutt não põe reticências no que pensa sobre a ketemina e outras drogas semelhantes: “Estamos no limiar de uma revolução liderada pelas drogas psicadélicas nos campos da neurociência e da medicina psiquiátrica.”

O que isto significa ficará claro na conferência organizada pela The Clinic of Change, que iniciou estes tratamentos em julho do ano passado e diz ter uma taxa de sucesso de 70%, isto é, mais de dois terços de pacientes curados — embora haja registo de uma recaída de um doente durante este período de tempo.

Os casos que chegam à The Clinic of Change são espinhosos. Empresários, gestores, advogados, em regra muitos profissionais liberais entre os 30 e os 50 anos que atingiram o cume ou estão lá perto, mas que pelo caminho descarrilaram, foram acumulando e agravando problemas de saúde mental. O alcoolismo, a utilização de drogas pesadas, como a cocaína, a mistura explosiva de calmantes — o risco de paragem cardíaca e a adição estão no tipo da lista —, além de obsessões sexuais e alimentares.

A vida é longa, se correr tudo bem. A meio da viagem os pequenos hábitos, especialmente os piores, tendem a tornar-se rotinas encurraladoras, camisas-de-forças, como aconteceu a Xavier P. (nome fictício), quadro de topo de uma multinacional que decidiu vir a Lisboa tratar-se da sua dupla adição: droga e calmantes. “Um homem inteligente, com uma belíssima carreira e mundo e que, como tantos outros, ficou preso numa dinâmica autodestrutiva”, explica a psicóloga Carla Mariz.

Xavier P. já tentara outras maneiras de quebrar o círculo vicioso, mas voltou sempre à estaca zero. Profissionalmente muito pressionado, misturava ao diagnóstico o burnout, talvez a causa-raiz de uma personalidade que coloca o êxito e o reconhecimento no cimo da pirâmide de valores. Faltava-lhe talvez pouco para quebrar de vez, mas a terapia iniciada na The Clinic of Change inverteu o trilho de auto-destruição.

Fez onze sessões, que passaram por uma avaliação médica exaustiva e duas sessões de preparação para o que viria a seguir. Na primeira sessão, foi-lhe explicado como decorreriam as seguintes, quais os objetivos. A segunda, foi já um ensaio geral, embora sem a ketamina. O paciente é guiado passo a passo sobre os efeitos que irá sentir, onde estará deitado, porque motivo usará auscultadores com música tranquilizadora, mas com mudanças de ritmo, para evitar pensamentos em espiral).

E depois chega o dia. A ketamina é injetada por um enfermeiro, a psicoterapeuta está sempre na sala, o paciente é envolvido numa espécie de cobertor para ficar com a sensação de aconchego e proteção, coloca uma máscara e os auscultadores — ligados por fio, para que não haja uma quebra de bateria. E a viagem começa. “O que a ketamina faz é aumentar a neuroplasticidade do cérebro, retira-lhe rigidez, deita abaixo ideias e factos pré-concebidos”, diz Victor Amorim, psiquiatra, psicoterapeuta e uma das forças motrizes da clínica.

Xavier P. teve várias experiências durante aquela hora em que corpo e pensamento se dissociaram. Manteve-se calmo e calado — raramente, um paciente precisa que o acalmem —, mas confrontou-se com a própria morte. Escrito assim, a ideia perde significado. Mas Xavier P. assistiu ao seu próprio funeral e não como um banal e pueril momento de vaidade, mas de terror e finitude de sentido único. Ele tinha mesmo de mudar de vida. As sessões continuaram, vieram ao de cima outras causas e ansiedades. A psicoterapia ajudou a desatar o nó.

Há mais casos assim, pessoas de elevado potencial que chegam ao topo da montanha onde o ar é mais rarefeito e muitos precisam de respiração artificial. A ketamina pode gerar habituação, quando usada para fins recreativos provoca um dilúvio descontrolado de ideias desconexas. Não ajuda. Perturba e agrava. Até hoje, na clínica do Saldanha, só um paciente voltou ao fim de seis meses para novas sessões; sentia-se novamente a cair no escuro.

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