Após dois anos de recessão em que o descontentamento social disparou, várias indústrias de proa passaram de fonte de riqueza e estabilidade a um foco de problemas e tensões, desencadeando uma crise política a agravar a fragilidade económica do país. O rótulo de ‘doente da Europa’ está de volta e a teoria mais mencionada por estes dias é que o modelo económico alemão falhou – mas em que consiste este modelo, no detalhe? E quais os seus principais falhanços estruturais?
Dependência do comércio
A ideia do excecionalismo germânico assenta sobretudo em três vetores: exportações fortes e de um conjunto alargado de bens para uma base alargada, incluindo as duas maiores economias do mundo, os EUA e a China, como parceiros altamente relevantes; energia barata vinda da Rússia para alimentar setores de consumo intensivo; e o outsourcing da defesa para os EUA. No entanto, estes três vetores colapsaram no passado recente, incluindo o comércio internacional baseado em regras definidas e comuns.
A possibilidade de nova guerra comercial decretada pela administração Trump penaliza fortemente a Alemanha, cuja componente externa havia já sofrido com as perturbações criadas pela Covid-19, primeiro, e depois pela crise logística global. Os EUA são o maior parceiro comercial alemão, exacerbando os impactos negativos de potenciais barreiras, enquanto a China oferece, por um lado, uma fonte de rendimento pelos investimentos europeus no país, mas também uma acérrima competição.
A imposição de tarifas pela UE ao setor automóvel chinês, por exemplo, cortou ainda mais as margens de joint ventures com capital alemão no país, uma decisão de Bruxelas que a Alemanha muito contestou. Em sentido inverso, as marcas chinesas são agora capazes de competir diretamente com as alemãs, ganhando quota internacional com preços mais baixos. Com as tensões comerciais em alta, a probabilidade de inversão desta dinâmica prejudicial a Berlim parece baixa.
De qualquer das formas, esta pressão expôs já a fragilidade de um dos setores que mais contribuiu para o crescimento alemão nos últimos anos, o automóvel. De um dos principais clientes em 2020, a China passou ao principal concorrente em 2024, tornando-se entretanto num exportador líquido de veículos e um líder global nos carros elétricos.
Energia e inflação
O fornecimento russo de gás natural à Alemanha remonta aos anos 60, entrando numa nova fase em 2005, com a assinatura do protocolo para a abertura do gasoduto Nord Stream inaugurado em 2012. Os dois países aprofundaram essa relação com o Nord Stream 2, um pipeline que chegou a estar construído e só não foi utilizado dado o início da guerra na Ucrânia.
Desde então, o país mergulhou numa crise energética profunda. De um dos preços mais baixos na UE para a eletricidade em 2019, os alemães passaram a pagar três vezes mais em 2023, ficando acima, por exemplo, dos seus homólogos franceses. O país abandonou o nuclear, que representava 20% do consumo em 2010, e as renováveis não conseguem assegurar a procura de setores intensivos em energia, sobretudo na indústria.
Os preços da energia recuaram em 2024 em relação ao ano anterior e o país é dos mais avançados na transição energética, mas tal é ainda insuficiente para responder à elevada procura, que deve continuar a crescer com a maior digitalização da economia e recurso a tecnologias como a inteligência artificial e big data. O salto recente agravou significativamente os preços, levando a inflação a disparar e o rendimento disponível das famílias alemãs a encolher, um fenómeno com repercussões no consumo interno.
Desinvestimento
Apesar da infraestrutura industrial alemã ser de invejar até ao final do século passado, a transição para uma economia digital e tecnológica tem demorado, deixando o país para trás em relação aos concorrentes mais diretos, nomeadamente a China. O investimento público no país tem sido dos mais baixos da OCDE nos últimos cinco anos, uma dinâmica agravada pela falta de pessoal nos municípios, que têm uma autonomia considerável, mas também pela questão do travão constitucional da dívida.
O país correu superávits estruturais crónicos e consideráveis durante largas décadas, juntando a isso elevadas taxas de poupança, mas a sua aplicação na economia através de investimento foi muito reduzida, levando a uma saída de capital para mercados com mais rentabilidade combinada com subinvestimento em vários setores.
Um exemplo deste problema é a infraestrutura digital do país, que fica muito atrás da média europeia. A adoção de serviços digitais é inferior à média da UE, com o fax a ser um dos meios de comunicação preferenciais dentro da administração pública – um dos sinais do atraso alemão na vertente digital. Segundo o FMI, o país enfrenta uma carência de investimento público entre os 10% e 15% do PIB.
Outro é o setor automóvel, que enfrenta uma crise estrutural após anos de dominância interna industrial. Em linha com as dificuldades comerciais, várias empresas do ramo anunciaram no passado ano a intenção de diminuírem a sua presença na Alemanha, deslocalizando produção para outras regiões. Pela primeira vez na sua história, a emblemática Volkswagen avançou com o encerramento de fábricas no seu país de origem (e logo três), enquanto a Ford fez saber que iria despedir milhares de trabalhadores.
Simultaneamente, a Intel suspendeu dois projetos para a construção de fábricas no país, outro sinal da relutância de empresas líderes globais em avançar com investimentos na Alemanha.
Envelhecimento
Tal como a maioria dos países europeus, a Alemanha enfrenta taxas de natalidade baixas, levando a uma população envelhecida e sem grandes perspetivas de inversão desta tendência. Isto cria não só problemas na produtividade do país, mas também nos sistemas de proteção social, com um fardo cada vez maior sobre a população trabalhadora.
Simultaneamente, a dificuldade em encontrar mão-de-obra adequada é cada vez mais evidente, sendo que a imigração tem ajudado a contrariar esta dinâmica, mas o país está crescentemente contra a chegada de novos migrantes ou refugiados.
Produtividade e falta de qualificações
Outrora vistos como dos trabalhadores mais produtivos e qualificados do mundo, a população alemã tem vindo a cair no lado oposto deste espectro – levando mesmo a acusações tipicamente feitas pelos países ‘frugais’ do Norte, incluindo a Alemanha, ao Sul do continente, nomeadamente Portugal.
O absentismo na Alemanha é o mais elevado entre os países da OCDE, com 24,9 dias de baixa, em média, por trabalhador em 2023, um valor muito acima da média europeia. A isto junta-se o facto de os trabalhadores alemães serem dos com uma carga horária mais baixa na Europa, a elevada percentagem de part-time entre a população feminina e o poder dos sindicatos em indústrias-chave, impedindo reformas para aumentar a produtividade.
Mais: o desinvestimento no país atingiu a educação, tornando os seus trabalhadores pouco adequados para a economia digital do futuro. Os estudantes alemães registam notas fracas nos testes PISA da OCDE, o que oferece poucas garantias para o futuro. O resultado está à vista: o desemprego está a subir, marcas industriais de topo planeiam despedimentos no país e a pressão salarial é crescente.
Regulação e burocracia
A Alemanha tem dos ambientes regulatórios mais pesados no contexto europeu, criando barreiras à fixação de alguns negócios no país, dada a carga que daí resulta. O tempo médio para obter uma licença comercial, por exemplo, é de 120 dias, o dobro da média da OCDE, enquanto a rigidez laboral cria resistência em alguns empresários na decisão de relocalizar a sua produção para o país.
Segundo um estudo do Instituto Ifo, a burocracia custa cerca de 146 mil milhões de euros anualmente em termos de produção no país, uma fatura elevada fruto da rigidez em vários aspetos da vida económica, sendo que as firmas gastam 65 mil milhões por ano em custos de compliance e reporte. Já a Câmara de Comércio e Indústria alemã tem apontado consistentemente para a burocracia como o maior impedimento para os empresários nos seus inquéritos anuais junto das empresas.
A questão energética irá dar um ímpeto para a desregulamentação, dado que a lei germânica obriga, atualmente, o país a tornar-se neutro em emissões de gases com efeito estufa até 2045 – um objetivo rejeitado pela direita, que venceu o ato eleitoral sem grande dificuldade e procura agora formar um governo de coligação.
Tensões sociais
Como seria de esperar, num país outrora dominante na cena internacional agora pressionado por uma série de problemas sociais e económicos, a tensão na população tem vindo a crescer. A questão dos migrantes não é nova, mas tem-se agravado com as sugestões dos partidos de centro-direita, nomeadamente a CDU, próximas das políticas da extrema-direita, incluindo sugestões de deportações.
O país diz-se saturado de refugiados, mas há outras fontes de conflito. À direita, as ideias conservadoras da AfD e parte dos democratas cristãos esbarram no espírito cosmopolita da população mais urbana, aprofundando a divisão entre o meio rural e o urbano.
À esquerda, o descontentamento com o apoio incondicional a Israel e à sua campanha militar em Gaza têm exposto os problemas da Alemanha com o seu passado, por um lado, e com a liberdade de expressão, por outro, juntando-se ao abandono das preocupações e objetivos ambientais que também gera uma forte contestação.
Incerteza política
Apesar de gozar de anos de estabilidade com os mandatos de Angela Merkel, a sua saída da cena política deixou um vazio difícil de preencher e que levou à primeira coligação de três partidos para formar governo, a chamada coligação semáforo, dadas as cores dos socialistas (vermelho), liberais (amarelo) e Verdes. As divergências entre estas forças políticas acabaram por levar a melhor, precipitando o colapso do entendimento federal.
Com a extrema-direita a crescer, os restantes partidos do Bundestag optaram por um cordão sanitário, dificultando a formação de maiorias estáveis governativas. Nas duas anteriores eleições, os partidos só chegaram a acordo para formação de governo ao fim de 171 dias, em 2017, e 73 em 2021, sublinhando bem a dúvida que rodeia a liderança alemã. Entretanto, a coligação terá um papel determinante na política escolhida para os próximos anos, agravando a instabilidade para as empresas e a incerteza legislativa.
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