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Pedro Cabrita Reis: “Sou um artista clássico”

Pedro Cabrita Reis nasceu em Lisboa e “adotou-se algarvio”. Tem dificuldade em dizer “não” e acredita que só vale a pena fazer coisas quandoo objetivo final é deixar marcas.
30 Setembro 2018, 14h00

Incisivo nas opiniões, acutilante na palavra e sempre, ou quase sempre, com um charuto na mão, Pedro Cabrita Reis recebeu-nos no escritório do seu ateliê-casa em Marvila, Lisboa. Numa tarde quente, como a temperatura que gosta de imprimir às conversas. “Nunca tive pena de nada. Nada me inspira sentimentos de pena. Todas as coisas que fiz na minha vida por solidariedade social foram feitas por implicação política, não por implicação moral”. Aquele que é um dos mais importantes artistas portugueses contemporâneos continua a pensar e a questionar o mundo, incluindo o seu. A nova “obsessão”? Deixar um legado.

Constituiu uma coleção que tinha subjacente o “sentido de responsabilidade ético”. Ajudou jovens artistas portugueses comprando-lhes obras quando ainda não eram conhecidos. Apoiou-os de outras formas?

Nos anos 90, houve um “fluxo migratório” muito intenso e eu próprio contribuí para isso, pois devo ter escrito uma centena de cartas de recomendação para jovens artistas que me pediam para eu os apoiar para que pudessem candidatar-se a uma escola na Alemanha, ou a uma bolsa nos Estados Unidos, ou a uma residência na Suíça… Muitas das vezes, o calvário era sempre o mesmo, um apoio da Fundação Gulbenkian e uma carta do Pedro Cabrita Reis, porque eu era uma pessoa relativamente conhecida lá fora e o que pudesse dizer tinha peso.

Assume que deixou uma marca indelével na estética e no rumo que a arte portuguesa tomou?

Assumo claramente, embora também gostasse de deixar claro que as minhas escolhas eram de uma amplitude estética muito vasta. Devo-lhe confessar, e já disse isto em outras circunstâncias, que cheguei a adquirir peças em relação às quais eu não teria uma grande empatia, mas que reconheci a qualidade, inevitável e incontornável, desse artista e das peças. Pode-se admirar e respeitar a qualidade do investimento pessoal e crítico e os resultados formais e práticos que daí nascem e se plasmam na obra, sem nos identificarmos esteticamente com essas correntes. Como é evidente, só vale a pena fazer coisas quando, em última análise, o objetivo final é deixar marcas. Porque se não se tem esse objetivo, como é que, eticamente, se pode aferir a natureza do commitment do trabalho de investir? Não se pode esconder coisas, têm de se assumir às claras, diariamente. Todas as coisas são feitas com um propósito específico, o qual deve ser sempre o mais além que conseguirmos e não um mais ou menos! Aquilo que mais me horroriza é o bom senso – aquela papa indefinida em que a maioria silenciosa da alma e da política e da inteligência se atola e na qual se esconde para se defender. Ao artista compete-lhe estilhaçar o bom senso, sob todas as formas ao seu alcance! Seja na execução da sua obra, seja na sua atitude enquanto cidadão, seja a comprar arte porque o pode fazer, porque investiu parte do dinheiro que vai ganhando com a venda dos seus trabalhos, e resolve com isso construir um pedacinho muito modesto da história da arte em Portugal.

Como o derradeiro objetivo de uma obra de arte é ter visibilidade, chegou o momento em que decidiu que a sua coleção devia ser fruída pelo público e vendeu-a à Fundação EDP, em 2015, sendo esta integrada no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia.

A coleção tem quase 400 peças e o MAAT – entre a exposição no Porto e aqui em Lisboa – não terá revelado mais do que 60 obras. Um e outro espaço eram complexos e as pessoas que montaram a exposição fizeram um exercício de inteligência muito bom. Fiquei muito, muito emocionado com o trabalho feito.

O MAAT não é um espaço fácil de gerir em termos expositivos…

De todo! É bom que exista o MAAT, é bom que exista mais um museu e que esteja ao pé do rio, mas imagino – nunca fiz uma exposição no MAAT e não tenho qualquer intenção de o fazer em breve – que exija muita reflexão, porque não é um espaço que se deixe ir com facilidade. É um desses muitos espaços que, infelizmente, a meu ver, existem em demasia. São espaços de celebração egomaníaca dos seus arquitetos-autores e não da celebração da arte, que é para isso que os museus deveriam servir. A tal ponto que sabemos que não é um nem dois, mas sim muitos arquitetos que insistem em querer abrir os museus com eles vazios para expor-se a si e à sua própria arquitetura aos olhares do público. Há outras maneiras de mostrar a arquitetura. Um museu deve abrir com arte. Provavelmente, estarei a ser um pouco antiquado ou reacionário, mas estou firmemente convicto, e dificilmente me convencerão do contrário, que a função do museu é ser invisível enquanto arquitetura e servir, sob todas as formas possíveis e imaginárias, a revelação e a exposição da arte.

Além do empolamento da arquitetura, diria que também há uma certa sobrevalorização no mercado da arte?

É provável que haja, porque temos de admitir que, apesar do Trump dizer que hoje em dia a economia americana está mais sólida – e é um facto –, são os chineses que mandam na economia americana porque são eles os detentores da dívida externa. E a economia chinesa ainda está mais sólida do que a americana. Apesar disso tudo, a bolha de 2008, do Lehman Brothers e outros, foi apenas um sintoma de uma crise que já se avolumava desde o princípio dos anos 80, desde que os yuppies começaram a mandar na economia. Ou seja, vivemos em crise há 30 anos! Dessa crise permanente inferem-se muitas coisas e uma delas é que a arte é um valor de refúgio, e cada vez mais. Não é por acaso que os leilões se sucedem e os valores aumentam, e, aparentemente, também aumenta o número de pessoas interessadas em comprar. E com capacidades financeiras que roçam o impensável. Se imaginarmos que só os chineses produzem cerca de 50 milionários por ano e estão a pensar construir um conjunto de museus nos próximos 60 anos, na ordem dos 20 ou 30 museus por ano, ora, é preciso encher esses museus.

E como se enchem os museus?

Infelizmente, com blue chips. Se dermos uma volta ao mundo, passando pela Mongólia, China, África do Sul, Austrália, Estados Unidos e Europa, veremos os mesmos quadros dos mesmos autores… Um exemplo: Damien Hirst. Porque [as obras] têm um valor cada vez maior e há cada vez mais colecionadores que querem ratificar o seu estatuto e transformar o seu dinheiro num valor de refúgio. E isto não vai parar. Digamos que há motores que arrastam tudo isto. São os artistas hipercotados, são as grandes galerias que fazem os preços e fabricam artistas, e como em todos os movimentos desta natureza há depois um universo de pequenos movimentos, de pequenas energias e de pequenos mercados que acompanham isto, porque os colecionadores transformam-se, porque aparecem novos que ambicionam ser iguais aos outros… Isto é uma trituradora enorme e brutal em que a única coisa que interessa é a acumulação de capital e o valor, e essa insanidade aparentemente não constitui qualquer problema, porque os leilões da Sotheby’s, da Christie’s e outros se sucedem. Os preços nas feiras de arte continuam, paulatina e tranquilamente, a aumentar para patamares impensáveis e toda a gente anda muito contente e bem-disposta. E muitas destas obras transitam para os cofres-fortes em Londres ou na Suíça, onde ficam à espera de ser novamente apresentadas a leilão, passados dois ou três anos, com preços 30% mais altos!

Continua a visitar museus? Considera que, na era digital, estes têm ainda mais importância na nossa formação como indivíduos?

Acho que os museus acompanham a evolução tecnológica porque, em última análise, o museu é um lugar de aprendizagem. Hoje, essa aprendizagem tem recortes, formatos e métodos que se esgotam bem para além da simples leitura do livro, catálogo ou da observação silenciosa e contemplativa da obra. Há muitos outros materiais que foram acrescentados a esse processo, e ainda bem. Regressando à sua pergunta, sim, continuo a ir a museus. Sim, continuo a fazê-lo para, contemplativamente, ter o privilégio de voltar a ver as vezes que me apeteça as mesmas obras de que gosto. E não, não sou um grande utilizador das novas tecnologias. Escrevo à mão, os meus colaboradores ajudam-me nesse particular. Não faço parte de qualquer rede social e escrevo postais… [sorriso]. Terei, talvez, feito uma concessão ao utilizar emails em vez de escrever cartas, mas, na prática, o email facilita bastante o trabalho profissional que, felizmente, não falta, antes pelo contrário, por vezes chega a amontoar-se de uma forma que roça a demência porque quase que não digo “não” a nada… ah, e o telemóvel, claro. Mas fora isso, não uso mais nada.

Não dizer “não” é uma forma de estar?

Não consigo imaginar uma forma de criar recusas, ou rejeições, nomeadamente a trabalhar com pessoas ou lugares mais modestos. Continuo a acreditar que o trabalho tem todo a mesma natureza, porque ao trabalho nos devemos entregar com o mesmo entusiasmo, independentemente das considerações que alguns diriam estratégicas e que outros não saberiam como chamá-lo. Portanto, para mim, expor numa biblioteca de um liceu em Beja ou em Condeixa é tão importante e implica tanto de mim como expor num qualquer museu europeu ou americano. Essa é uma condição sine qua non para manter presente e vivo o posicionamento ético do artista enquanto alguém que constrói um conhecimento que é para ser partilhado. É evidente que, para além daquilo que seria a medida do empenho pessoal e de tudo o que daí vem, os projetos em que me envolvo poderão ter um colar de coisas que ficam e que ramificam, contaminam e podem transformar-se em exemplos para outras pessoas e comunidades. As exposições não se esgotam no olhar do público que as vê – é também uma certa massa crítica de índole social e política que vem por arrasto. Todas as coisas que fiz na minha vida por solidariedade social foram feitas por implicação política, não por implicação moral. Ou seja, é no plano da ética que eu me posso predispor a encetar uma atividade de índole solidária.

É sabido que mantém um ritmo de trabalho transbordante e reparei em vários post-it onde se lê “Barcelona”. O final de 2018 e o ano de 2019 vão ser intensos?

Sim, tenho uma exposição individual agora em Barcelona e se olhar para ali [aponta para a estante] está lá tudo o que tenho de fazer em 2019. Bem, vai até 2020, pois tenho uma exposição na Noruega. Mas num horizonte temporal mais imediato, tenho uma individual num museu em Marselha e outra em Zurique. Para o ano, assim de caras, tenho uma na Bienal de Havana, outra no CGAC [Centro Galego de Arte Contemporânea] em Santiago de Compostela, outra no México e, além disso, estou a desenvolver projetos para duas encomendas públicas: uma para a Câmara de Matosinhos, outra para a Câmara da Maia.

A pretexto da sua exposição em Havana, vai aproveitar para desfrutar desse prazer chamado charuto?

Não há nenhum sítio no mundo onde um charuto saiba tão bem como em Havana. Tenho três móveis onde guardo os meus charutos e esforço-me por mitigar as saudades que eles têm de casa dando-lhes condições… mas nem pensar, aquilo é outra coisa! [sorriso] Costuma dizer-se, com alguma razão e legitimidade, que o vinho não pode viajar, mas não se compara nem de perto nem de longe com o que sofre uma coisa destas… [pausa, dá uma baforada no charuto] É um prazer que não se repete em nenhum outro sítio. Vou lá passar o Natal e o Ano Novo, já para trabalhar, e voltarei para a Bienal, que inaugura em 12 de maio.

Referiu que é “muito obcecado” com tudo o que tem de fazer e um control freak, mas é também um dos mais influentes artistas portugueses das
É-me difícil de explicar, porque esta ideia do ‘artista clássico’ em si já é tudo. Isto representa o quê? Por exemplo, representa as minhas interrogações sobre a validade, a extensão, a eficácia ou a utilidade da arte contemporânea. Começa logo por aí. Se se acha que a arte hoje é contemporânea, então onde é que colocamos o prazer que temos a ver as pinturas do Goya, por exemplo, para referir um rapaz que morreu há cento e tal anos. Isto para não falar nas pinturas do Tintoretto, do Rembrandt e por aí fora. E continuamos a emocionar-nos com isso e vamos aos museus e aquilo toca-nos… Artista clássico porque, provavelmente, prefiro imaginar e gostaria de poder confirmar que aquilo que eu faço e aquilo que eu sou e quem sou vem de uma linhagem – outros vieram até mim e passaram-me o testemunho. Estou a fazer aquilo que outros antes de mim fizeram e chegou ao meu tempo e eu peguei nisso com o olhar e continuei a transformar. Continua-se a pintar quadros a despeito de haver muitos vídeos; continua-se a fazer vídeos a despeito de haver muita arte que é já da internet; continua-se a fazer esculturas a despeito de haver já performances… Tudo é igualmente necessário e nada pode viver per se e nada vem do nada, tudo vem de algum lado. Só uma atitude clássica é que pode permitir, envolver e transformar isto num valor ético de comportamento e de sonho. Portanto, eu sou um artista clássico.

Não lhe interessa criar ruturas…

Não quero, de forma alguma, criar ruturas. Uma vez a cada cem anos aparece um Marcel Duchamp, põe um urinol na parede e ficamos todos satisfeitos. Porreiro, já nos livrámos do problema dos urinóis, agora vamos continuar a pintar uns quadros. Sou um artista clássico. Gosto muito de Marcel Duchamp, mas não tenho interesse em fazer de Marcel Duchamp. Há muitos jovens que, infelizmente, não tiveram ainda a oportunidade – não têm tempo de vida ou de acumulação de experiências suficientes – para perceber que a busca da novidade, por si, não leva a lado nenhum. O que é preciso buscar, de facto, é um lugar interior a partir do qual se possa projetar um pensamento, um desejo, um olhar. Os artistas clássicos reconstroem, enquanto os artistas que ambicionam ser contemporâneos propõem-se destruir porque acham que vão inventar uma coisa nova. O que a mim me toma o dia, a noite, a vida não é a ideia de fazer coisas diferentes, ou novas, ou ter ideias. Eu gostaria de continuar a aperfeiçoar esta espécie de primordialidade, de reduzir ao máximo tudo aquilo que não faz parte, que não é necessário. Depurar até chegar àquilo que já não pode ser mais depurado. [pausa para reacender o charuto]

Sabe, eu tenho uns arquivos brutais! Há um editor do norte, que tem uma coleção dirigida pelo Eduardo Souto Moura, que integra obras diversas e tem campo para admitir que sejam publicadas uma seleção de entrevistas, de conversas minhas. Eles estão muito interessados nisso e eu tenho muito material, as coisas vão-se acumulando! Um dia qualquer terei que fazer uma triagem… Gostaria de poder editar as obras completas, ou seja, todas as conversas que tive. Isso encheria uma prateleira! [sorriso] Não tem qualquer importância. Sou eu e a minha obsessão de deixar um legado.

O seu refúgio no vale de Silves serve para pensar em tudo isso e para reencontrar-se com a cor laranja, muito presente na sua obra?

De facto, o laranja é uma cor que uso com bastante frequência em muitas coisas, mas remete para a cor que o sol tem do ponto de vista astronómico, que é um laranja intenso. Nunca é demais celebrar o sol porque faz parte da nossa história. E, digamos, de uma forma mais poética do que ecológica, o laranja tem uma presença forte e continuada no meu trabalho e na minha existência não pelas laranjas de Silves, mas por ser a verdadeira cor do sol. Voltando ao Algarve e a Silves… Pela parte do meu pai, sou algarvio e resolvi transformar-me num algarvio. Não nasci no Algarve como muita gente pensa ainda. Nasci numa zona demarcada, que é o bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, e nasci em casa, e eu e o Algarve temos esta relação que não sei se é mútua, mas pelo menos da minha parte é uma relação de paixão muito grande. Por razões do foro subjetivo, tenho uma apetência pelas paisagens do sul no plano cultural, gastronómico, histórico, filosófico, climatérico…

É um homem do sul?

Sou. A família do meu pai era daquela zona no interior do Algarve a que se chama Barlavento, entre Silves e São Bartolomeu de Messines. O Algarve interior, que no passado se dizia de sequeiro, só nos anos 50, 60 mereceu um pouco de investimento de alguns homens da minha família. Transformou-se num ‘pomar de laranjas’ porque construiu-se a barragem de Silves, que permitiu a irrigação de um contingente bastante vasto de terrenos de um e do outro lado do rio Arade, que vem da serra de Silves e vai desaguar em Portimão e que era, no passado, navegável de Portimão praticamente até Silves. Do lado da minha mãe, sou transmontano, mas isso não tem rasto na minha pessoa. Sempre foi o Algarve. Num primeiro momento aquele Algarve do Barlavento – Silves, Portimão, Armação de Pera e essas coisas todas – e, mais tarde, decidi adotar-me como algarvio do Sotavento, ou seja, do lado de Tavira, a caminho da fronteira com Espanha. Tenho maior encanto por essa paisagem mais seca. É muito bonita e sinto-me em casa. Mais em casa do que naquela frescura moçárabe dos pomares e dos verdes dos laranjais. Gosto mais de amendoeiras secas perdidas nos barrancos da serra, de medronheiros e de terras gretadas pelo calor, de cobras e de pedras. Eu sou daquele lado do Algarve, embora tenha nascido em Campo de Ourique. Mas uma pessoa nasce onde quer e pode renascer sempre em outros sítios! [sorriso]

Falou no Sotavento. O que está a criar por lá?

Comecei a comprar, em 2000, uns pedaços de terra numa zona a norte de Tavira, já mais próxima da serra. E comecei a florestar aquilo com oliveiras, alfarrobeiras, laranjeiras… O menos autóctone que lá tenho é a rúcula, que é infestante, mas eu gosto muito de salada de rúcula! [sorriso] Seja como for, as espécies autóctones têm de ser administradas no tempo. Como sabemos, as laranjas vieram da China, tal como as cerejas e as nêsperas, já para não falar do milho, que não existia na Europa até ao século XIII. Estes nossos eurocentrismos baseados na assunção de que o Mediterrâneo é o epicentro do processo civilizacional é uma coisa bonita, mas não chega! É evidente que o Mediterrâneo gerou, provavelmente, a melhor forma de pensamento. Esta mistura judaico-cristã com uns pós semitas ali do Oriente veio dar origem a coisas tão essenciais como a democracia, a filosofia e essas coisas todas, mas isso não chega para justificar todas as tragédias que se foram fazendo ao longo do resto da História.

Voltando ao sítio em causa. Tenho tudo o que preciso, inclusive pão. Faço lá o pão que comemos aqui em casa durante a semana. Tenho azeite, tenho medronho e, mais recentemente, em 2016, plantei a primeira vinha Syrah. Fiz o ano passado a primeira vindima. Este ano já fiz a vindima da Syrah e da Touriga Nacional, e daqui a dois anos farei vinho com outras castas que já plantei. Quando o vinho estiver a ‘correr’ estará fechado o ciclo e ficarei satisfeito. Há aquela velha boutade, alegadamente atribuída a um árabe, reportando-se ao género masculino, que “só se é homem depois de fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore”. Já fiz isso tudo e, como meio árabe de empréstimo que sou – e tenho gosto nisso –, falta adicionar uma quarta coisa que é fazer vinho. Já plantei árvores, muitas; filhos, que eu saiba, fiz dois; e livros, sim, já escrevi alguns – catálogos, textos, livros para exposições. E, de há dois anos a esta parte, faço vinho. [sorriso]

Ter tempo é um luxo?

Agora, com 62 anos, posso fazer outra gestão do meu tempo. Vou pôr os meus assistentes a trabalhar mais e vou deixar de ir às minhas inaugurações, vão eles! [sorriso]

Quantos elementos tem a sua equipa?

No ateliê tenho em permanência quatro pessoas. Depois, é claro que não seria capaz de desenvolver o trabalho que faço se não tivesse uma constelação colateral: eletricistas, carpinteiros, serralheiros…

Como é ser assistente do Pedro Cabrita Reis?

Pergunte-lhes a eles, mas acho que deve ser excelente, porque às vezes quero pô-los na rua e não consigo. [sorriso] Acho que alguns deles passam aqui tempo demais. No passado só tinha artistas, hoje já consegui arranjar um [assistente] que não é artista e ainda tenho três que são. O que eu gostaria, se estivéssemos num mundo perfeito, é que esses que estão cá há mais tempo conseguissem encontrar, por si próprios, meios de subsistência que lhes dessem, simultaneamente, mais tempo para se dedicarem ao seu próprio trabalho, porque aqui não há horários. Isto é uma empresa para efeitos contabilísticos, mas não é uma empresa – aqui entra-se e sai-se às horas que eu disser.

Podem ter a ousadia de fazer sugestões?

Podem sugerir tudo. Aqui falamos muito sobre o trabalho que se faz e como sou um glaneur por essência não apanho apenas coisas do lixo, ‘apanho’ também ideias dos outros e transformo-as em coisas minhas. Sou um mestre em fazer com que as pessoas acreditem que ideias que eu lhes dei foram eles que as tiveram, para as poderem desenvolver com maior emoção e empenho. Poderemos dizer que é uma arte eivada de cinismos e perfídia, mas digo-lhe já que é muito prático. O meu trabalho principal, além de pensar e de refletir sobre aquilo que quero fazer, é, no ateliê, fazer com que toda esta gente se sinta ótima e faça parte de uma coisa que nasça das suas mãos e opiniões, críticas e sugestões. O trabalho será sempre meu, em última análise, mas quanto mais esse trabalho vampirizar coisas que lhe são alheias e exteriores mas que ele incorpora e permitem que ele cresça e seja mais sólido, so what?

De novo, a importância de ter tudo sob controlo…

Toda a minha vida, as pessoas às vezes afligiam-se por eu ter tudo programado. É verdade e não é verdade. Simplesmente sou muito obcecado com tudo o que tenha de fazer. É a minha maneira de ser. E embora seja muito pouco dado a esoterismos, as pessoas que eu conheço e que são mais propensas a esses pensamentos, nomeadamente aquelas que acreditam nos signos e essas coisas todas, dizem: “é evidente que só podias ser Virgem”, porque parece que se atribui aos virgens essa capacidade organizativa, de planificação e de construção de diques contra tudo o que seja surpresas. Não acredito em bruxas, mas tenho de admitir que as há. Na verdade, estou-me nas tintas para isso, pois em termos de fortuna – no sentido de sorte e destino pessoal – o exemplo para mim mais cabal é o do Corto Maltese, apesar de ser uma personagem ficcionada, que não tendo linha na mão a desenhou ele próprio com uma navalha. Eu sou absolutamente solidário com o Corto Maltese. Passei a minha vida a dar navalhadas na minha mão e a fazer só o que as minhas linhas da vida, que eu próprio construí, me mandaram fazer.

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