Escreveu numa crónica que a sua geração cresceu a ler o Independente. Comprava todas as semanas?
O Independente surgiu em 1988 e eu não fui um leitor da fase inicial. Tinha 11 anos. Só mais tarde, quando comecei a escrever com regularidade para um suplemento do Diário de Notícias, o DN Jovem. Nessa altura, O Independente tinha um conjunto de cronistas que lia com atenção: o Vasco Pulido Valente, o Paulo Portas, o João Bénard da Costa. Não era só o projeto jornalístico, era mais a adesão à liberdade que tinham a escrever, ao estilo. Mas devo dizer que separo o Independente como projeto jornalístico do período em que se tornou um projeto político, por acaso muito instrumentalizado pelas esquerdas. No primeiro caso muito bem-sucedido, no segundo nem por isso.
Era um admirador de Paulo Portas?
No final dos anos 80, toda a gente gostava do Miguel Esteves Cardoso e do Paulo Portas. E o Paulo Portas revelava um desprendimento, uma coragem, uma convicção a posicionar-se politicamente, de uma maneira que era fresca e nova para quem ia começando gradualmente a assistir à política. Era um grande cronista político, para além de toda a gente dizer que era um grande diretor. O George Orwell, que fez muito jornalismo político, dizia que tinha o objetivo de fazer uma forma de arte. Há alguns casos na imprensa portuguesa que o conseguem. Julgo que Portas o conseguia. Mas falo do Portas dessa fase. Na política as coisas são sempre um pouco diferentes. É impossível ter uma continuidade entre a pessoa do jornalismo e a pessoa da política.
As manchetes do Independente arrasaram ministros.
Sim, mas uma pessoa olha para trás e percebe que essas manchetes também eram fruto de alguma arrogância própria da juventude. Percebi que os jornais e o jornalismo às vezes têm demasiada pressa em julgar um político, em pedir a sua cabeça. O Independente fez um pouco parte dessa cultura de indignação. Não era o que mais me interessava. Podemos até dizer que esse foi o lado pior do Independente.
Foi nessa fase ou antes que ganhou consciência política?
Cresci na periferia de Lisboa e estudei sempre em liceus públicos. Os professoras que tive, se não eram marxistas, eram quase. Os livros que me davam a ler eram muitas vezes dessas áreas. Quando as nossas escolas e professores, os livros que nos dão a ler, os programas escolares que estudamos, o ambiente cultural em que vivemos são orientados para um lado, tendemos a contestar e a colocar-nos no outro. Vejo essa consciencialização como um facto reativo, de resistência contra a hegemonia de um ambiente cultural com esses elementos. Isso também existia no Independente. O primeiro editorial do Independente era uma coisa extraordinária. Num país que não tinha saído assim há tanto tempo do 25 de Abril, afirmava claramente o patriotismo como valor político.
O Pedro era de uma direita mais patriótica ou mais liberal? O que o motivava?
Era fundamentalmente a clarificação. Não era comum – e continua a não ser – as pessoas dizerem que são isto ou são aquilo. As pessoas dizem que são socialistas ou que são comunistas, mas não dizem que são conservadoras e também não dizem que são liberais. São duas palavras com uma carga negativa, sobre as quais há um anátema fortíssimo. A vontade dessa clarificação era importante. Depois havia outras coisas igualmente importantes: nos anos 80, o país tinha ainda na Constituição a irreversibilidade das nacionalizações, era uma sociedade fechada, vigiada, tinha limitações várias e havia que ultrapassar isso.
Era cavaquista?
Esse é um dos motivos pelos quais eu distingo o Independente como projeto cultural, ou ideológico, do projeto político. O país que reagiu em 1975 contra a ditadura comunista, esse país de liberdades tradicionais, não era o país do Independente. O anticavaquismo feroz do Independente sempre me pareceu suspeito. Nunca fui anticavaquista. Apoiei Cavaco Silva várias vezes, fiz parte da comissão política, quando não tinha 30 anos, da primeira eleição presidencial vitoriosa. Não deve haver um líder político nos últimos 40 anos que mais tenha entrado no território onde alguns acham que não se pode entrar. Cavaco Silva é mais do que o PSD, no sentido de que sozinho é capaz de captar votos de uma maneira transversal, até ao Partido Comunista. Essa força que ele tinha, de chegar profundamente ao eleitorado português, foi aquilo que muitos quiseram combater. Uma parte do anticavaquismo vem daí. Tem, se se quiser, estes contornos pessoais. E isso sempre me incomodou. A classe política vive a política como uma coisa fechada, uma coisa deles e só deles. O professor Cavaco Silva foi alguém que veio de fora. Aprecio essa dimensão de outsider.
Na altura perdeu amigos que eram de esquerda?
Não. Só perdi amigos quando tomei a decisão de entrar na política. Aí perdi vários.
Quando entrou no Governo? Antes não tinha tido contacto com a política?
No início da minha carreira profissional fui assessor no governo de Durão Barroso. Mas é na ação política propriamente dita que se torna fácil perder amigos. Não é uma experiência agradável. Agora no resto, não. Tenho excelentes amigos de todos espaços e convicções. Sempre me foi fácil o relacionamento com pessoas diferentes.
Foi um dos percursores dos blogues em Portugal, com a Coluna Infame. Como surgiu?
No final dos anos 90 tinha algumas colaborações com a imprensa e começo a escrever crítica de livros num suplemento do Diário de Notícias, a DNA. Nessa altura conheço uma série de pessoas que se tornaram meus amigos, como o Pedro Mexia, o João Pereira Coutinho. Em 2001, era eu advogado estagiário e dá-se a circunstância de começarmos a ler um blogue muito influente nos EUA, o Daily Dish, do Andrew Sullivan. Ao mesmo tempo dá-se o 11 de Setembro. Foi um choque que repolitizou o mundo, depois dos anos da terceira via do Tony Blair, do Bill Clinton, do nosso período guterrista. As fraturas ideológicas estavam escondidas. Tínhamos a ilusão de viver um período de grande reconciliação global e o 11 de Setembro destruiu por completo essa ideia. A partir daí decidimos criar o blogue Coluna Infame. Foi uma das coisas mais interessantes em que já participei. Esse blogue fundou a blogosfera política em Portugal. Não foi o Pacheco Pereira, que veio depois. Foi esse blogue. Em parte porque o Pedro Mexia escrevia muito e isso foi determinante. A partir daí tive vários blogues. Tornei-me colunista de jornais, mas havia uma liberdade maior na blogosfera.
Que relação existe atualmente com os blogues?
É de leitor, mas francamente já leio pouco. A blogosfera já não tem a força que tinha. Surgiram as redes sociais – embora as redes sociais não sejam a mesma coisa. A blogosfera ainda assenta numa ideia de texto e da autoria por detrás do texto. As redes sociais são uma cacofonia de pessoas, de vozes.
Já não escreve?
Agora a prioridade é escrever na minha vida académica e profissional. E isso já me tira muito tempo.
É consultor de PLMJ Saúde / Farmacêutico. Por que escolheu a área?
Sou um jurista de formação predominantemente de direito público. Mas hoje creio que a principal mais-valia de um jurista e advogado de direito público está em conhecer bem setores especiais de regulação jurídica, no sentido em que se soubermos como são regulados os medicamentos, os dispositivos médicos, os alimentos, para ficarmos por aqui, estaremos em melhores condições para recorrer a abordagens de tipo constitucional ou administrativo.
O que lhe agrada mais na advocacia?
No nosso departamento tratamos de uma enorme diversidade de assuntos. Tão depressa estamos a litigar, como a acompanhar e a negociar um contrato farmacêutico. Agrada-me essa diversidade. E depois também me agrada o poder que os advogados ainda conservam, num tempo que reforçou os financeiros, os tecnólogos, os economistas, etc. Enquanto for assim, haverá quem nos defenda.
O atual momento é propício para a análise política. Não sente esse ímpeto?
Bastantes vezes. Os anos em que escrevi no Público foram muito ricos para mim, mas muito duros. Escrever duas colunas por semana não é fácil. Às vezes as pessoas não têm noção de como é difícil esse trabalho profissional. Procurar um ângulo, pensar na abordagem, pesquisar, investigar, obter informação. No caso da opinião – eu acho que a opinião é um estilo jornalístico – , as pessoas não têm noção de como é difícil manter aquela disciplina, criar um diálogo com os leitores, habituar os leitores àquela página, àquela mensagem, à nossa presença. Mas havia muitos, o que é extraordinário. Recentemente, estava a entrar num restaurante e alguém me disse “Gosto muito de o ler”. É engraçado: eu já não escrevo há quase quatro anos. Uma pessoa por vezes tem vontade de voltar a intervir, mas nesta fase não vou fazê-lo.
Não voltaria à blogosfera?
Não tenho grande motivação.
Escreveu numa crónica: “Pertenço a uma era, a um país, a uma geração cronicamente desatenta, incapaz de se concentrar por mais do que 30 minutos de cada vez”. Essa frase antecipava muito do que se passa hoje nas redes sociais. É tudo muito imediato?
Totalmente imediato e desfocado.
Está em alguma rede social?
Acabei com a minha página no Facebook. Quer dizer, não acabei, mas ela não existe. Pensar antes de falar é um exercício que as pessoas devem fazer. As redes sociais transmitem a imagem de um povo constantemente furioso, absurdamente furioso. A massa é de tal forma caótica, disforme e precipitada nos julgamentos que se neste momento o poder passasse para as redes sociais não havia poder. É um pouco como o nosso mundo: um mundo que demonizou o poder. Tudo isso não é saudável para a esfera pública. As redes sociais são uma espécie de “Queda da Bastilha” do nosso tempo. Aquele “povo” é um povo propagandeado e indignado. Tudo em pé de igualdade, a dizer qualquer coisa. Mas é óbvio que as coisas que se dizem não têm todas o mesmo valor.
Temos outras frases: “Sou daquelas pessoas que se pelam por um bom dia”. “A minha característica mais marcante é talvez a queda para as contradições”.
Eram coisas desse tempo. Há pouco falávamos da liberdade. Eu não sei se esta liberdade não se está a perder. Infelizmente, a vida política, não só em Portugal, está demasiado contaminada pelo cinismo e pela má-fé como prática sistemática. É muito fácil dizer destas coisas e ser imediatamente ridicularizado.
O que sente quando lê alguns destes textos antigos dos blogues?
É a liberdade e é também o crescer em público. Está tudo aí. Quem o escreve ainda é um miúdo. No meu caso houve uma coisa um pouco dramática: quando tomei a decisão de entrar na vida política, foram recuperar algumas dessas passagens para o ataque político. Foi curioso. É essa perda de liberdade que torna as pessoas que estão na vida pública mais artificiais, mais postiças, menos espontâneas. No essencial, não me parece bom. Gera pessoas que se comportam como falsos e autómatos. E depois espantamo-nos muito de ascensões como a de Trump que, no seu estilo brutal, são, em primeiro lugar, a reivindicação de uma política mais autêntica e mais pessoal.
Disse numa entrevista: “Os meus pais foram heróicos em muitas alturas da vida. Devo-lhes isso.” Como foi a sua infância?
Tenho muitos irmãos. Acredito que para a minha mãe, que a dada altura deixou o seu trabalho para se dedicar exclusivamente à educação dos filhos, criar cinco crianças não tenha sido uma coisa muito simples. Há indiscutivelmente um enorme heroísmo – não só deles, mas de todos os que assumem esse papel. O meu pai é reformado do exército, um militar romântico, de valores perenes e de noções de honra e de serviço. Eu não consigo ter essa adesão. Há um distanciamento inevitável relativamente a esse mundo, mas acho notável, no caso dele, todas essas manifestações.
Tinham casa própria?
Nessa altura, com a política de rendas baixas, era muito tentador não comprar casa. Mas era indiscutível: não havia dívidas. Existia a noção de que a dívida é uma coisa que tem de ser paga, uma exigência moral. Por outro lado, havia uma preparação dos filhos para fazerem o seu caminho. Foi isso que eles nos deixaram. O meu pai, que foi um excelente aluno, sempre valorizou os resultados escolares de uma maneira completamente marcante para mim e para os meus irmãos. Para ele, essa valorização era muito importante por ser a primeira porta para subir na vida e realizar as nossas aspirações.
Os seus pais fizeram um esforço financeiro grande para os filhos estudarem?
Nós vimos da escola pública e essas questões não tinham o dramatismo de outros tempos. Mas havia esse programa, a exigência de aproveitamento e de empenho na escola. Sempre tive essa grande exigência comigo.
Como é que a família encarou a sua ida para o Governo?
Não creio que tenham ficado muito contentes. Não só achavam que o Governo era muito difícil, como também não tinham ilusões sobre o que é entrar a meio e substituir pessoas, quando já se criaram dinâmicas e fidelidades.
Gostou dos anos que passou no Governo?
Nós devemos sempre olhar para as coisas com uma perspetiva de aprendizagem, com uma perspetiva positiva. Nesse sentido, foram anos que tiveram coisas boas e coisas menos boas. Mas, globalmente, o balanço é positivo.
Os ‘briefings’ foram a principal dificuldade de entrar num Governo a meio?
Na vida política há uma realidade paralela, e aquilo que passa, aquilo que é transmitido e que depois acontece no circuito mediático, não é o que está a acontecer lá dentro. Foi o que se passou com esse episódio. Admito que os melhores políticos são aqueles que conseguem dominar a realidade mediática e fazer crer que é melhor do que a realidade em si. Mas, objetivamente, este foi um processo em que o que passou para fora não foi o que aconteceu dentro. Só que a dada altura já ninguém queria saber como a ideia tinha surgido, ninguém quis saber o que eu achava, quais tinham sido os termos da minha participação. Há uma coisa que posso dizer e valorizar: nunca desertei de nada. Entrei no Governo e percebi durante o primeiro mês que as dificuldades iam ser enormes – até porque não era de nenhum dos dois partidos e a política quando é feita por quem não tem essa estrutura de apoio é muito mais difícil, porque não se passou pelos mesmos rituais de disciplina e socialização partidária. Mas orgulho-me dessa perseverança.
Há pouco perguntávamos se nos anos 80 perdeu amigos de esquerda por ser de direita. No Governo, perdeu amigos de direita?
Sim, embora não sejam coisas para tratar em público. A política é o principal teste ao carácter das pessoas. É uma coisa que, infelizmente, lamento. É um teste a muita coisa em jogo. Só conhecemos uma pessoa quando a vemos em situações excecionais. É aí que se percebe quem é capaz, quem é ou não leal com os amigos, e todos nós cometemos erros nesse aspeto, dentro e fora da política. Talvez a política seja hoje o sucedâneo da guerra de outros tempos. Talvez seja hoje um grande palco de batalha, mas sem a cultura dos deveres militares. É uma espécie de Vietname.
Não voltaria a um Governo se fosse convidado?
Não voltarei a ter qualquer tipo de participação na vida política sem antes defender o melhor possível as condições dessa participação. Lembro-me do dia em que o Miguel Poiares Maduro me telefonou, perguntando se eu queria ir para o Governo. Era uma noite de quinta-feira, estava num evento na Escola de Hotelaria de Lisboa, e tinha que decidir para o dia seguinte, para tomar posse no sábado. Olhando para trás, não há nada, nada nas nossas vidas, que tenha de ser decidida em 16 ou 20 horas. Tenho um lado voluntarista que pode trazer vantagens, mas às vezes não é bom. Podia ter perfeitamente esperado mais tempo, negociado as condições, e não fiz nada disso. Quando se vai para um cargo de grande exposição, de grande vulnerabilidade, é importante que a pessoa perceba exatamente o que vai fazer e o que tem de fazer para depois não ser surpreendido com coisas com que não estava a contar. Também é preciso ter uma enorme humildade. As pessoas acham que por serem grandes empresários, grandes académicos, grandes intelectuais, etc., estão acima? Não, têm de perceber que chegam à política e vão ter de fazer exatamente o que os outros fazem. Não estão acima do jogo.
Como é a sua relação com Pedro Passos Coelho?
Ganhei um enorme respeito por ele. Tenho uma enorme admiração pelo modo como atua, como pensa, pelo realismo que tem.
Passos Coelho tem condições para voltar a Governar o país?
Condições tem todas. Oportunidade, vamos ver. Mas não gostaria de alongar-me em questões político-partidárias.
Saiu do Governo magoado com o jornalismo?
Talvez tenha tido a ilusão de pensar que os jornalistas me tomassem ainda por um deles, porque no fundo eu não tinha mudado. Mas depois não se passou nada disso. Suponho que um jornalista que tenha trabalhado como assessor de imprensa de um Governo acabe por ser visto da mesma maneira. Se calhar não é. Não saí magoado. Houve apenas essa ilusão, mas aí o problema foi meu.
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