No primeiro dia de apresentação do programa do Governo, que tem viabilização garantida, o primeiro-ministro respondeu às críticas da oposição, lançou pistas sobre as políticas do novo executivo da Aliança Democrática (AD) em várias áreas, fez alguns anúncios e recusou-se a eleger um parceiro de diálogo preferencial. Ponto por ponto, saiba o que esclareceu Luís Montenegro no Parlamento.
Reforma do Estado
A reforma do Estado foi um dos temas que marcaram o primeiro de dois dias de debate do programa do Governo, não fosse esse um dos eixos centrais do executivo, que agora conta com um ministério para levar a cabo a missão reformista. Respondendo a críticas da oposição, Montenegro garantiu que a reforma do Estado não visa “reduzir o Estado”, mas sim “restaurar a sua eficácia” e assegurou que o objetivo “é transformar Portugal”.
“Transformar Portugal porque não estamos aqui para durar, gerir ou manter. Estamos aqui para dialogar, decidir e fazer”, afirmou Luís Montenegro na sua intervenção inicial. “Não se trata de reduzir o Estado, mas de restaurar a sua eficácia e de lhe devolver a autoridade”, alertou.
Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, insistiu na mesma tecla. “É bom avisar aqueles que normalmente agitam os papões: andamos há anos a discutir a necessidade de uma reforma do Estado. Queria aqui descansar as almas mais agitadas: reformar o Estado não é cortar nem despedir; é colocar o Estado ao serviço daquilo que verdadeiramente interessa, que são os portugueses e as empresas que criam riqueza”.
Administração pública
Ligado à reforma do Estado, o candidato único a líder do PS criticou o Governo por ter, na legislatura passada, levado a cabo uma série de nomeações na administração pública “sem critério” e desafiou Luís Montenegro a dialogar com o PS para despartidarizar esses cargos.
Na resposta ao socialista, mas também a Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal, o primeiro-ministro deu sinal de que é preciso rever e melhorar o sistema da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), mas rejeitou que tenha existido “muita partidarização” dos cargos públicos no último ano, em particular nas mudanças de administração das 14 Unidades Locais de Saúde (ULS).
Reconheceu, contudo, que na seleção dos candidatos a estes cargos existe uma avaliação política na última fase. “É preciso dizer com frontalidade que essa avaliação política tem de ser feita. O senhor deputado [Carlos Guimarães Pinto] não pense que é possível gerir o Estado, e ainda mais num processo de transformação que se quer levar até ao fim, sem que haja o mínimo de confiança política para o cumprimento das orientações que emanam de quem decide”.
Luís Montenegro defendeu ainda querer uma administração pública despartidarizada, mas “nos dois sentidos”. “Não quero ninguém na administração pública por ter cartão partidário das forças que estão no Governo; mas também não quero ninguém a fazer contra vapor com quem está no Governo – é essa a questão”, sustentou o primeiro-ministro.
O primeiro-ministro terminou lançando uma farpa a José Luís Carneiro. “Anotei a disponibilidade, esta confissão do PS. O PS sabe tudo sobre partidarizar a administração pública. Vamos ver se agora conseguiu aprender alguma coisa para despartidarizar. Estamos disponíveis para, com o PS, aprimorar as regras”, arrumou assim o assunto.
Segurança
Luís Montenegro aproveitou a apresentação do programa do seu executivo, que tem viabilização garantida (PS e Chega não vão viabilizar a moção de rejeição comunista), para anunciar que, até ao final do ano, o Governo prevê o início em funções de 1.500 elementos na GNR e na PSP.
Lei da nacionalidade
Rever a lei da nacionalidade foi outro dos temas quentes no primeiro dia de discussão do programa do Governo. Logo no arranque do debate, Luís Montenegro anunciou que, nos próximos dias, avançará com a proposta que terá três eixos fundamentais, entre os quais um alargamento das situações em que pode haver perda de nacionalidade, nomeadamente comportamentos graves “de natureza criminal”.
Na proposta que apresentará em breve, o Governo destaca também “o alargamento do prazo precisamente para que seja efetuado o pedido para a nacionalidade por naturalização”; um reforço “da ligação efetiva que os candidatos têm de demonstrar, do ponto de vista da compreensão e integração da nossa cultura, nos nossos hábitos cívicos e sociais”.
O primeiro-ministro recordou que a intenção de rever a lei da nacionalidade já constava do programa eleitoral da AD e que passa por uma “política de imigração mais regulada” e “mais controlada”. Esta, aliás, é uma das linhas mestras do programa do segundo executivo liderado por Luís Montenegro, estando previsto, neste âmbito, um alargamento do tempo mínimo de residência e presença efetiva em território nacional (atualmente em cinco anos), eliminando a possibilidade de a permanência ilegal ser considerada para efeitos de contagem.
Imigração
A António Leitão Amaro, ministro da Presidência, coube, na segunda parte do debate, a intervenção dedicada à imigração. No dia 18 de maio, disse o ministro, os portugueses “castigaram a irresponsabilidade da imigração descontrolada do passado” e “condenaram quem queria o regresso das portas escancaradas”, mas também disseram que não querem “as portas todas fechadas”.
Defendendo uma política de imigração regulada, firme e humanista, Leitão Amaro falou em oito princípios na atuação do Governo nesta matéria. São eles: “1.º Não há um ranking moral, uma ordenação de valor entre vidas humanas; 2.º Mas há diferenças entre direitos e deveres, entre portugueses e estrangeiros, entre residentes e não residentes; 3.º Cada comunidade política tem mesmo o direito de decidir quem tem o direito de entrar e se fixar no seu território; 4.º mas não faz sentido fechar todas as portas, nem expulsar todos os que cá estão. Há deveres internacionais e morais de acolher quem foge de guerras, catástrofes e perseguições políticas. E em certas fases da economia, há vantagem em certas aberturas para trabalhar e estudar. Lembremos que vários setores parariam amanhã sem estrangeiros; 5.º A integração digna é um direito de quem reside aqui legalmente; 6.º mas também impõe deveres: os imigrantes têm de respeitar as nossas regras e os nossos valores constitucionais, a começar pela igualdade e dignidade das mulheres e crianças. E quem não aceitar essas regras e esses valores tem de ter consequências, e essas incluem o afastamento do país; 7.º É preciso assumir que um crescimento tão rápido da emigração nos últimos sete anos coloca em causa a coesão social do país e a capacidade de integrarmos dignamente quem chegou; 8.º É preciso agir, mas não mentir. Os políticos não podem ser multiplicadores de notícias falsas sobre imigrantes, mas também não podem ficar cegos, fechados numa torre de marfim, a negar a intranquilidade que os portugueses compreensivelmente sentem perante a maior transformação populacional que viram nas suas vidas, nas suas ruas e escolas”.
Enumerados os oito princípios, o ministro reafirmou que o Governo vai insistir na criação da unidade de estrangeiros e fronteiras, “uma verdadeira polícia de fronteiras na PSP, se o Parlamento aceitar”. Leitão Amaro defendeu ainda que é preciso “limitar certos fluxos migratórios” e que o “reagrupamento familiar”, assim como os pedidos CPLP feitos em território nacional, “devem ser contidos” à capacidade de integração do país. A AD propõe também restringir os vistos de procura de trabalho apenas para os candidatos com elevadas qualificações, além das já mencionadas alterações à lei da nacionalidade.
Lei de Bases da Saúde
A oposição tem carregado no argumento de que o Governo incluiu no seu programa medidas (entre as quais a revisão da Lei de Bases da Saúde) que não discutiu no período eleitoral, o que levou José Luís Carneiro a dizer que o executivo não começou esta legislatura com o pé direito. No primeiro dia de debate no Parlamento, a deputada socialista questionou Luís Montenegro se a intenção vai no “sentido de colocar em causa os princípios da complementaridade entre o público e o privado”.
“É uma aproximação à proposta da Iniciativa Liberal de criação de um sistema universal de acesso à saúde que substitua o Serviço Nacional de Saúde (SNS)? É isso que precisamos de saber?”, perguntou a antiga ministra.
“Não é preciso assustar-se com a possibilidade de revisitarmos a Lei de Bases da Saúde”, respondeu o chefe do Governo, revelando que se vai inspirar no projeto de Maria de Belém Roseira. “Portanto, creio que o PS estará confortável com esse espírito de apreciação desse instrumento essencial para as bases da política de saúde”, disse Montenegro, sem adiantar quaisquer pormenores.
Em janeiro de 2018, o então ministro da Saúde nomeou uma comissão destinada a “apresentar os termos de referência para a elaboração de uma proposta de Lei de Bases da Saúde”. Adalberto Campos Fernandes escolheu para presidir a essa comissão a antiga ministra da Saúde e ex-presidente do PS, Maria de Belém Roseira, que fazia parte do Conselho Consultivo da Luz Saúde.
Impostos e pensões
No capítulo dos impostos, Luís Montenegro assinalou que, nas próximas semanas, o Governo decidirá “a redução de mais 500 milhões de euros no IRS já em 2025”. Considerando a redução dos impostos um ato de “justiça”, o primeiro-ministro revelou que avançará, “nas próximas duas semanas”, a proposta da AD.
A “diminuição dos impostos sobre o rendimento do trabalho é um ato de justiça para quem trabalha”, bem como um “ato de retribuição pela capacidade e esforço do desempenho” dos trabalhadores, destacou, em resposta a um pedido de esclarecimento do parceiro de coligação.
Luís Montenegro assegurou ainda que, nesta legislatura, o Governo vai continuar a trajetória de redução de impostos, lembrando que um dos objetivos do executivo é reduzir o IRS até ao 8.º escalão, em dois mil milhões de euros até 2029, com uma redução de 500 milhões já em 2025. Esta redução “terá um especial enfoque nos rendimentos mais baixos e na classe média”, enfatizou.
Respondendo a uma pergunta do deputado do CDS Paulo Núncio, o ministro das Finanças, Miranda Sarmento, disse que “quando a execução orçamental tiver números mais concretos” e se consiga “perspectivar melhor o ano”, o Governo “tomará uma decisão sobre a atribuição ou não de um suplemento extraordinário aos pensionistas”. “Foi isso que fizemos em 2024, e é isso que faremos em 2025”. De recordar que, no ano passado, Montenegro anunciou na reentre política, no Pontal, um bónus entre 100 a 200 euros para os pensionistas, atribuído depois em outubro.
Contas públicas
Durante a tarde, foram os governantes a defender o programa do Governo em discussão. O ministro das Finanças mostrou-se confiante de que se irá atingir um excedente orçamental de 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) este ano e recordou que o Governo da AD “superou as expetativas” no ano passado, ao alcançar um excedente de 0,7%, “mais do triplo do que o governo anterior tinha previsto”.
Já para 2025, mantém o “compromisso de equilíbrio orçamental” e projeta um superavit de 0,3% do PIB, mesmo numa altura em que já há instituições a projetar um regresso aos défices orçamentais este ano ou no próximo.
Apesar de manter as estimativas, Miranda Sarmento assumiu que 2026 será “um ano mais exigente do ponto de vista orçamental, dado que a execução plena do Plano de Recuperação e Resiliência [PRR] na componente de empréstimos representa uma despesa”.
O ministro salientou ainda que o executivo estima que o rácio da dívida pública desça para 91,5% do PIB, apontando que “este ano de 2025 ou o mais tardar no ano de 2026, Portugal atingirá uma dívida pública abaixo da média da zona euro”. Mas admitiu que a incerteza internacional “torna o pressuposto base de equilíbrio orçamental ainda mais crítico, por forma a proteger Portugal de eventuais choques externos negativos”, reiterando o comprometimento do Governo com esse equilíbrio.
Diálogo com a oposição
José Luís Carneiro, candidato a suceder a Pedro Nuno Santos, quis que o primeiro-ministro clarificasse com qual das oposições vai preferir dialogar nesta legislatura. Luís Montenegro recusou apontar um parceiro preferencial, pois este é um Governo que “joga com os dois pés” e até com a cabeça e peito.
“É um Governo polivalente que distribui jogo e aproveita todos os elementos em campo e que quer marcar golo. E quando vê um jogador assim mais molengão, não deixa de jogar na mesma para a baliza, rematar para fazer golo”, atirou o líder da AD.
Montenegro repetiu que fará diálogo político “com todas as forças políticas com representação parlamentar”, frisando, contudo, que a AD não se esquece das “responsabilidades históricas do sentido que, em muitas ocasiões, o PS teve de convergência” com o PSD.
“Portanto, não excluímos ninguém e sabemos bem quem mostrou estar à altura dessa responsabilidade”, disse Montenegro, acrescentando, no entanto, numa alusão implícita ao Chega: “Logo veremos se haverá novas forças a demonstrar também esse sentido de responsabilidade. Às vezes, temos fundadas dúvidas, mas nenhum de nós pode dizê-lo em função do que compete aos outros decidir. Logo veremos quem é que tem esse sentido de responsabilidade”.
“Há uma coisa que pode ter a certeza: não vamos nunca diminuir o PS, não vamos nunca deixar de fazer um diálogo franco, leal, autêntico e genuíno com o PS, não vamos”, garantiu também, saudando a postura de Carneiro de “manter viva” esta forma de estar dos dois partidos.
O bate-boca com linguagem futebolística voltaria ao debate quando o deputado do Chega, Pedro Pinto, disse ter o “Cristiano Ronaldo das Finanças”. Montenegro devolveu, com humor, que o programa do Governo é da Champions League porque venceu as eleições. “Nós ficamos em primeiro, o senhor deputado é que é mais complicado, porque como ficou em terceiro em votos, quanto muito vai à Liga Europa”.
Estabilidade política
Na intervenção inicial, Luís Montenegro fez um discurso em que foi jogando com a legitimidade do Governo para governar e a responsabilidade das oposições de manterem uma “genuína disponibilidade de negociação leal e construtiva” com a AD.
“Este Governo está aqui para cumprir a legislatura de quatro anos. Todos sabemos que a legislatura só não terá essa duração se os dois maiores partidos da oposição assumirem entre si uma coligação deliberada, ativa e cúmplice politicamente”, atirou, acrescentando depois que, “prevalecendo a estabilidade e a maturidade políticas, esta será uma legislatura de diálogo construtivo, com espírito patriótico de convergência para salvaguarda do interesse do país”.
Para Luís Montenegro, os resultados das eleições mostram que os portugueses querem “este Governo e não outro”, assim como querem que a “essência” das políticas seja a do programa da AD.
“A maioria maior que resultou das eleições reforça a legitimidade e a responsabilidade para executarmos o programa do Governo nos próximos quatro anos”, reforçou, frisando que o seu executivo o fará “sem qualquer arrogância” e “com humildade democrática e motivação para o diálogo construtivo”.
“Evidência disso mesmo é a inclusão de 80 medidas dos programas eleitorais dos vários partidos. Não obstante, para que o resultado desse diálogo seja produtivo, cabe às oposições corresponder com igual humildade, espírito de diálogo e coragem para colaborar nas reformas que resolvam os problemas dos portugueses”, também afirmou.
Sobre as 80 medidas dos programas dos outros partidos, José Luís Carneiro diria depois ao primeiro-ministro que incluí-las no programa do Governo, sem conversar com essas mesmas forças, não é dialogar. “Isso não é diálogo, isso é plágio, não é diálogo, são monólogos”, criticou o candidato a líder do PS.
Pontos de convergência PS e AD
Apesar das críticas, José Luís Carneiro garantiu que o PS vai “servir os interesses dos portugueses” e, por isso, “manterá a sua palavra” e sentido de responsabilidade. Reafirmou que será uma oposição “responsável, firme e construtiva”. E que ser responsável significa estar disponível para, “de boa-fé, construirmos consensos democráticos”.
Em que áreas? Na política externa, designadamente no reconhecimento do Estado da Palestina como Estado soberano. Na defesa, “acompanharemos o esforço dos 2% do PIB para garantirmos os nossos compromissos de defesa europeus, defendendo que esse investimento deve resultar na constituição de um plano industrial militar capaz de mobilizar o Estado, as pequenas e médias empresas, favorecendo uma economia competitiva e a coesão territorial do país”.
Na segurança interna, continuou, a AD contará com o PS para “pôr em prática a estratégia de segurança urbana”, assim como a “estratégia de proteção civil preventiva, para cuidar do planeamento civil de emergência na proteção das infraestruturas críticas nacionais”.
Na justiça, onde “podemos ir bem mais longe do que os lugares comuns que estão no programa do Governo e enfrentar de uma vez por todas os desafios”, e também na reorganização do Estado. “Pode contar com o PS para construirmos uma administração pública mais motivada e mais mobilizada para a eficiência da despesa pública, do Estado e a garantia de serviços públicos de qualidade em Portugal e nas comunidades portuguesas no estrangeiro”, disse Carneiro.
E com o Chega?
Respondendo a André Ventura, líder do Chega, que pediu ao Governo combate à “subsidiodependência”, Montenegro prometeu rever as condições de atribuição das prestações sociais para combater abusos e adiantou que tomará medidas contra atos de coação para proteger os funcionários que realizam o trabalho de fiscalização.
Luís Montenegro não se referiu a qualquer comunidade (ao contrário de Ventura, que mencionou a comunidade cigana) e apontou que o programa do Governo “é claro sobre a necessidade de revisão das condições de atribuição e fiscalização das prestações sociais, em particular do rendimento social da inserção”.
“Sabemos que há abusos, sabemos que há dificuldades práticas no terreno para combater esses abusos, que muitas vezes têm a ver até com a coação sobre as pessoas que realizam este trabalho. Vamos ter de intervir neste domínio”, disse, recordando que, já em 2010, enquanto deputado do PSD, defendera que devia existir “uma solidariedade recíproca entre quem recebe prestações sociais e aqueles que estão a dar”.
O dia ficou ainda marcado pela eleição, à segunda tentativa, de Pacheco de Amorim e Filipe Melo como vice-presidentes da Assembleia da República e vice-secretário da Mesa, respetivamente. Os nomes dos dois deputados do Chega tinham falhado a eleição no primeiro plenário da nova legislatura, no caso de Pacheco Amorim, por apenas um voto.
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