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Fernanda Ilhéu: “Portugueses têm bons produtos, mas adotam lógica de loja chinesa”

Para beneficiarem de um mercado com 68 milhões de pessoas, as empresas nacionais têm de deslocar-se para a Greater Bay Area e investir em marketing, refere a especialista Fernanda Ilhéu.
12 Janeiro 2020, 14h00

Estudiosa das relações comerciais entre Portugal e a China, Fernanda Ilhéu explica ao Jornal Económico a importância de Hengqin no desenvolvimento da Greater Bay Area. E revela que as empresas portuguesas ainda não aprenderam a entrar no mercado do glamour que os chineses tanto apreciam.

 

O desenvolvimento de Hengqin tem dois capítulos. O primeiro começa antes da entrega de Macau à China.

Nos anos 1990, eu era delegada do AICEP em Macau e fui convidada pelas autoridades da ilha da Montanha para a visitar. Foi-me apresentado um estudo que tinha sido feito pelos professores da Academia das Ciências Sociais chinesa, que funciona como conselheira do seu governo. Acharam que naquele espaço se poderia fazer um parque industrial que teria ligação a Macau e que iria funcionar como a ‘fábrica’ de Macau, que começava já a ter uma grande dificuldade de falta de espaço e onde os preços da mão de obra começaram a aumentar. Propunham fazer ali um parque com empresas portuguesas e chinesas e os produtos sairiam com o rótulo “made in Macau”.

 

Mas o projeto não foi para a frente. Porquê?
As autoridades portuguesas e de Macau não avançaram com a iniciativa. Macau já estava numa fase de transição e pensou-se que o projeto poderia levantar imensos problemas, nomeadamente na identificação dos trabalhadores, emissão dos certificados de origem, controlo da origem dos produtos, cálculo da percentagem do que era feito em Macau e do que era feito na China. Iria também levantar inúmeros problemas junto das entidades importadoras da União Europeia e dos Estados Unidos.

 

Foi uma oportunidade perdida para as empresas portuguesas…
Podia ter-se antecipado um pouco o tempo. Vamos agora, talvez, assistir a um caminho nesse sentido. A minha informação é que este projeto não chegou a um poder de decisão em Portugal que o considerasse de forma estratégica. O que é importante dizer é que o projeto já existia com iniciativa das entidades chinesas e a ideia é que Hengqin seria um prolongamento de Macau.

 

Mas recentemente começou a escrever-se o segundo capítulo do desenvolvimento de Hengqin.
Muito recentemente começou a ter forma institucional aquilo que se pretende vir a ser a Ilha da Montanha. O que temos presente é que levou cerca de mais de 20 anos a começarmos a ver Hengqin como alguém no passado já tinha antevisto. Em 2009 foi publicado o “Outline of the Plan for the Reform and Development of the Pearl River Delta”. É a primeira indicação do que se vai passar na região, que é uma região mais avançada em termos de internacionalização e em termos de aproximação ao mundo ocidental do que outras regiões da China, pelo seu posicionamento e pela sua ligação a Macau e a Hong Kong.

 

Qual é o papel de Macau e de Hong Kong no desenvolvimento de Hengqin?
Podemos dizer que o Delta do Rio das Pérolas é um triângulo que tem na base Macau e Hong Kong, com Guangzhou no outro vértice. E, ao longo deste triângulo, há nove cidades – mais duas, Macau e Hong Kong, portanto, 11 cidades -, que já são de grande desenvolvimento. Portanto, é uma região altamente desenvolvida e industrializada e muito conectada com o mundo ocidental e Hengqin faz parte deste triângulo.

 

Teremos a ligação entre dois espaços com desenvolvimento diferente.
No lado de Hong Kong, temos Shenzhen, que hoje em dia já é mais importante que Hong Kong em termos de PIB e já tem também uma concentração enorme de investigação e de empresas de alta tecnologia, como a Tencent, a Huawei, a Baidu, e onde a Alibaba também tem escritórios. No lado de Macau está Zhuhai, que sempre foi mais atrasado em relação a Shenzhen. Não tinha tantos rendimentos, não tinha tanta pressão de investimento como tinha Shenzhen, porque Macau não tinha a força e a dinâmica de Hong Kong. Zhuhai, Macau e Hengqin eram campos, rios, e tinham uma atividade muito básica.

 

Macau e Hong Kong seguem a filosofia “um país, dois sistemas”. O mesmo sucede com Hengqin?
Depois de 2009 surge a autorização de integrar administrativamente, na sua zona económica especial, uma pequena parte de Zhuhai, que é a tal ilha de Hengqin. Mas há uma parte que começa a ser gerida por Macau e essa parte inicial, que era ainda relativamente pequena, dizia respeito fundamentalmente à zona onde está hoje a Universidade de Macau.

 

Em 2019 é apresentado o desenvolvimento da Greater Bay Area.
O Conselho de Estado da República Popular da China apresenta o guião para o desenvolver a Greater Bay Area, que tem quatro pilares: Hong Kong, Macau, Guangzhou e Shenzhen. São os motores do desenvolvimento da região e vão alavancar as vantagens competitivas, procurando ser centros de excelência e fortalecer toda a região. É um polo de crescimento da economia e da vida internacional da China naquela zona, e será para concorrer com a Tokyo Bay Area, San Francisco Bay Area e New York Bay Area.

 

E onde entra Hengqin nesse projeto?
A ideia do governo chinês é que Hengqin se desenvolva com alta tecnologia. O que nós vemos nesta Greater Bay Area é uma ideia de equilíbrio. Do lado de Hong Kong e Shenzhen há um desenvolvimento muito maior, quer financeiro, quer tecnológico. Do lado de Macau existe uma atividade fundamental, que traz muito dinheiro, mas que tem riscos e custos sociais. Não se pretende retirar a economia de casino de Macau, mas sim criar um equilíbrio com Hong Kong, levando até àquela região a parte financeira e a parte tecnológica. Isso pode ser feito exatamente na zona de Hengqin, porque Macau territorialmente não tem espaço para isso.

 

Isto é um projeto a muito longo prazo…
…mas que está em grande aceleração. A zona de medicina chinesa já está construída – o laboratório e o centro de pesquisa e de medicina chinesa. Há três zonas construídas que são Chimelong International Ocean Resort, New Campus University of Macau e o Centro de Ténis Internacional. A parte residencial e cultural está a ser desenvolvida. Há uma zona de expansão com polos importantes, com alta tecnologia, turismo sem casino, área cultural, ensino superior e investigação, e o cluster da medicina, que integra a medicina tradicional chinesa e os produtos farmacêuticos, nomeadamente uma área importantíssima que é a certificação internacional dos produtos de medicina chinesa.

 

O desenvolvimento de Hengqin e da Greater Bay Area é uma carta para o exterior.
Isto vai ser altamente virado para o exterior. Estamos a falar de uma zona de livre comércio, sendo que existem outras na China. Há muitos grupos de Hong Kong e de Macau a investir em Hengqin. Há iniciativa privada.

 

As empresas portuguesas poderão aproveitar as relações históricas com Macau?
Em termos diplomáticos, as relações entre Portugal e Macau são muito boas. Além disso, a população portuguesa sente-se bem em Macau. Mas, em termos comerciais, Portugal continua a não ser muito competitivo na região.

 

Porquê?
Porque Portugal tem de perceber que concorre naquela região como concorre noutros países desenvolvidos ou em Hong Kong. Quer Hong Kong, quer Shenzhen têm um ranking de qualidade muito elevado. É aí que os portugueses têm de ser competitivos.

 

O que falta às empresas portuguesas para serem mais competitivas?
Muitas vezes, vejo em Macau atividades de portugueses que têm bons produtos mas depois adotam a lógica da loja chinesa. Na China não se compram produtos, compram-se perceções de produtos, compram-se narrativas, compra-se o glamour. E nós ainda não conseguimos entrar nesse mundo.

 

Falta maior aposta no marketing dos produtos portugueses?
Exatamente. E investirem na localização. Para isso é preciso ter uma equipa local forte, é preciso ter pessoas da empresa que vão para lá e pessoas que conhecem a realidade local. Porque vender na China a chineses é diferente de vender na Europa a europeus e a portugueses. Temos de saber, do ponto de vista cultural, de gostos, da forma de comprar, como é que as populações funcionam e o que motiva a decisão de compra. É preciso estar ali, como base, e andar na China.

 

As empresas portuguesas não fazem esse esforço?
Acho que a maioria das empresas tem feito o chamado ‘toca e foge’. Vão lá, tentam encontrar alguém para distribuir e depois entregam as suas amostras a uma pessoa que raramente faz um bom trabalho. É preciso ver que estamos a falar de um mercado de 68 milhões de pessoas na Greater Bay Area, com um poder de compra per capita dos mais elevados na China e com percentagens muito grandes de milionários e de expatriados. Esse mercado diz-nos que utilizar esta região como uma base de partida, indo do sul para o norte na China, poderá ser uma estratégia correta.

 

Mas as empresas portuguesas já estiveram em Macau e poderão voltar a essa região…
Nos serviços, tivemos uma presença financeira forte e que saiu quase toda. A determinada altura, tínhamos os principais bancos portugueses em Macau e a maioria foi saindo progressivamente. Mas, independentemente disso, houve uns que já tiveram uma posição no mercado fabulosa e que resolveram desistir e ir para outras partes do mundo, nomeadamente para a Polónia, por exemplo. Agora vai ser mais difícil voltar, porque há um princípio basilar na relação com a China, que é a confiança. Alguém que os chineses reconhecem que é um amigo a sério. Alguém que é persistente e consistente.

 

Que empresas portuguesas poderão encetar relações comerciais na região da Greater Bay Area?
Há muitas empresas que não estão no radar das que saíram e muitas que nem existiam quando saímos de Macau. Há novas áreas de conhecimento. Por exemplo, a economia azul. Também pode ter petróleo, há uma zona de refinação de petróleo e gás que vai abastecer Macau e ser uma alternativa ao fornecimento de Hong Kong. Também tivemos empresas de infraestruturas em Macau, e algumas ainda estão lá ao nível da consultoria, e cheias de trabalho. Mas esta ligação da zona à China vai ter que ser infraestruturada.

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