O Plano de Recuperação e Resiliência em discussão em Bruxelas ameaça transformar-se num desfilar de obrigações semelhante ao memorando da troika de 2011, ainda na pendência final do governo Sócrates e que condicionou toda a governação subsequente.
Esse memorando imposto foi o guião da governação e condicionou as decisões até 2015, que emparedaram a ação de Passos Coelho durante todo o mandato. Com uma fiscalização apertada e omnipresente dos financiadores – FMI, Comissão Europeia e BCE – que acompanharam todas as medidas, chegaram a ser acusados de pôr em causa a soberania nacional com as célebres visitas trimestrais e avaliações tornadas públicas. Nessa ocasião, em muito contribuiu para o sucesso do programa a intervenção permanente de Carlos Moedas, como primeiro interlocutor da troika.
Agora, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) vai implicar necessariamente a fiscalização estreita da Comissão Europeia. Se antes visava a estabilização da dívida pública, agora contempla reformas e metas igualmente duras.
Do processo de discussão pública e do descodificar do documento emerge um conjunto de compromissos e mudanças que poucos esperariam e muito menos estarão disponíveis para aceitar, desconhecendo-se os reais comprometimentos do Governo face às instituições europeias. Não estaremos apenas perante megaprojetos, e este Plano não pode transformar-se numa Bíblia restrita dos serviços públicos, porque se exige muito mais do que a presença asfixiadora do Estado.
Mau prenúncio a falta de diálogo com a oposição num documento a médio prazo. Em 2011, o memorando teve a participação dos partidos da oposição e, mesmo assim, o governo de então não teve liberdade para decidir de acordo com o seu projeto sem viabilização externa para libertar as verbas para repor o país no trilho da recuperação financeira.
Em 2021, os partidos parecem afastados dos detalhes, das obrigações e dos compromissos assumidos, que limitam as opções e decisões num futuro imediato. Este plano, aparentemente ainda nem todo divulgado, prossegue um caminho de constrangimento governativo que vai traçar linhas vermelhas para alguns, abrindo espaço para a ansiada maioria absoluta socialista.
Instrumentos desta natureza têm de ser participados e abertos para permitir que haja alternativas governativas sérias e reais. É isso que permite o posterior julgamento popular livre e autêntico. Não se mostra legítimo deixar povo, partidos e instituições longe do âmago do futuro. Nem se afigura democrático acordar medidas que violam uma das essências da democracia: a alternância de poder. Ninguém quer uma nova troika, nem qualquer entrave à liberdade de decidir apenas porque o Governo de António Costa quis criar espartilhos ao desenvolvimento livre e criativo do país.
A obrigação do Governo é partilhar projetos e objetivos e fazer participar. Transformar o PRR numa caixa de Pandora contribui para o cinzentismo e perda de transparência que a partilha proporciona. E um dia, a caixa irá abrir-se…