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Putin atrás do tempo perdido

Rússia quer recuperar terreno à China, Estados Unidos e União Europeia, potenciando exportações e interesses no petróleo, minas ou armamento.
25 Novembro 2019, 07h49

As fotos mostram um helicóptero modelo Mi-17, de fabrico russo, camuflado, mas descaracterizado de elementos de qualquer força aérea, a ser descarregado de um Antonov – também de fabrico russo. Já depois de estas fotos circularem nas redes sociais, no final de setembro, soube-se que o local de descarregamento foi o aeroporto de Nampula, no norte de Moçambique. E que os helicópteros (três) destinavam-se a apoiar as forças moçambicanas que se encontram no terreno a combater guerrilheiros na província de Cabo Delgado.

Fontes das Forças de Defesa e Segurança (FDS) moçambicanas confirmaram ao jornal “Carta de Moçambique” que foi um Antonov An-124 da Força Aérea russa que transportou os helicópteros até Nampula. A Embaixada russa negou qualquer envolvimento oficial nas ações em curso em Cabo Delgado. Mas, de acordo com o serviço de informação Africa Monitor, os aparelhos, bem como outro equipamento e paramilitares, estão ao serviço de uma empresa privada, a Wagner, com fortes ligações à cúpula dos serviços de segurança russos.

A chegada de operacionais russos ao terreno foi antecedida de contatos ao mais alto nível entre os dois países, incluindo com o presidente moçambicano, Filipe Nyusi. Já depois das eleições que ditaram a sua recondução, Nyusi deslocou-se à cidade russa de Sochi para a Cimeira Rússia-África, realizada a 23 e 24 de outubro. Foi um dos 43 chefes de Estado ou de Governo que participaram no evento que o professor universitário Jaime Nogueira Pinto considera ter sido uma “reabertura à África”.

“Economicamente, a Rússia não se pode comparar nem aos Estados Unidos nem à China, que são a primeira e a segunda economias mundiais”, diz Nogueira Pinto ao África Capital. Mas, estrategicamente, a Rússia de Vladimir Putin, “com esta nova política africana” pretende reforçar “alguns dos contactos e influências tradicionais da ex-União Soviética, junto dos movimentos independentistas”, além de potenciar a sua exportação e interesses nas áreas do petróleo e gás, da mineração, por exemplo diamantífera, e do armamento”.

“Querem também, numa cooperação entre o Estado e os privados, garantir serviços de segurança, como vem fazendo a companhia militar privada Wagner, que está a atuar desde outubro em Moçambique, Cabo Delgado, não com grandes resultados no terreno”, acrescenta o professor.

O relacionamento da Rússia com os países africanos é longo e vasto. A ex-União Soviética (URSS) foi ator principal do pós-independência da maioria dos países africanos, incluindo lusófonos – e feroz opositor dos Estados Unidos. Xavier Figueiredo, jornalista e analista de assuntos africanos, recorda que já na década de 1950 a URSS, impelida e legitimada pelas teorias libertadoras de Bandung e da IV Internacional, ofereceu ajuda económica, mas também apoio militar e de segurança. A República da Guiné de Sekou Touré, depois de proclamar a independência da França, foi pioneira na ligação à antiga potência, mas com condições: “Retribuiria os préstimos daquele novo amigo e aliado passando à condição de alinhado com as suas causas e absorvendo pelo menos parte da sua ideologia revolucionária como elemento inspirador do modelo de organização política e social daquele Estado nascente”.

“A experiência da República da Guiné correu mal para os russos. E, vale dizê-lo, muito pior para os próprios guineenses; a cada dia que passava o seu país não parava de mergulhar, sempre mais, num clima de penúria e desordem como nunca haviam visto no período colonial. Apontava-se o dedo aos russos e aos seus modelos estatizantes. Ainda por cima, dizia-se que não valiam grande coisa as estradas por eles construídas no país; ou que se aproveitavam do ouro encontrado nas minas de bauxite do Boké”, diz Xavier Figueiredo.

Para o analista e fundador do Africa Monitor, o revés da República da Guiné foi “apenas o primeiro e nem sequer o pior”. De um modo geral, o contributo para o desenvolvimento dos países foi nulo ou negativo – a estatização de empresas devastou algumas economias. “Se na Europa do Leste as economias de direção central, ditadas pelo comunismo, tinham falhado, como não falhariam em África – sem capitais e quadros? Não é possível deixar de ver no marxismo-leninismo levado para África pela mão da precursora da Rússia moderna, como uma das causas do retrocesso dos países do continente por onde ela passou”, afirma Xavier Figueiredo.

Dos tempos da URSS ficaram programas de cooperação militar importantes ainda hoje, nomeadamente com Angola e Moçambique. E ligações a chefes de Estado que estudaram nas antigas repúblicas soviéticas, como João Lourenço ou Filipe Nyusi.

O espaço que foi da URSS enquanto parceiro dos países africanos foi, com a sua implosão, ocupado por outros países, sobretudo a China. Com empresas públicas de infraestruturas de grande dimensão, apoiadas por linhas de crédito de muitos milhares de milhões de dólares, Pequim afirmou-se como o financiador de projetos de infraestruturas, que pretende agora expandir com a iniciativa Faixa e Rota. Com um envelope financeiro de 124 mil milhões de dólares, esta visa reforçar as ligações entre Ásia, África e Europa. E já está a chegar ao terreno nalguns países da África Oriental, como o Quénia (ferrovia Mombaça-Nairobi) e Djibouti (porto). Terá a Rússia a mesma capacidade de implementar projetos de grande dimensão no terreno?

José Milhazes, jornalista especialista em assuntos russos, considera que nesta nova abordagem à África a Rússia tenciona utilizar como pontos fortes os ramos em que tem algum poder de concorrência: “Armamentos, extração de minérios, energia elétrica, construção de centrais nucleares, de caminhos de ferro, prospeção e extração de petróleo e gás, pescas.”

“Já há experiências bem-sucedidas de empresas russas em África, por exemplo, a ALROSA no campo dos diamantes em Angola, ou de outras no Zimbabwe, Congo, etc. Porém, a Rússia entra no continente africano atrasada, depois dos Estados Unidos, China, União Europeia e Índia. Parece-me que as promessas e apostas anunciadas estão acima das atuais forças económicas e tecnológicas da Rússia”, diz Milhazes ao África Capital.

Se o novo ímpeto de Sochi corresponderá a um “virar de página ou não” permanece em dúvida. “A Rússia quer diversificar os seus mercados, pois as relações com os Estados Unidos e a União Europeia não são as melhores e as sanções devido à ocupação da Crimeia pelas tropas russas continuam em vigor”, diz Milhazes. “Resta saber se Moscovo terá meios financeiros e tecnológicos para virar essa página”, adianta.

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