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Qual a (in)tenção da baixa tensão?

As opções a serem tomadas pelas autarquias dependem da demonstração de que a solução apresentada pela EDP não é a melhor para o território dos seus municípios.
19 Novembro 2018, 07h55

Não será um caso de polícia, mas certamente é um caso (patológico) de política, a forma como o poder central tem vindo a lidar com o imperativo constitucional da autonomia local.

Constitui um princípio fundamental da organização do estado português, a par com o da sua unidade, o da descentralização com o objectivo de aproximar o exercício dos poderes dos seus destinatários. A própria Carta Europeia da Autonomia Local estabelece como regra geral que o exercício das responsabilidades públicas deve incumbir, de preferência, às autoridades mais próximas dos cidadãos e nessa medida, a atribuição de uma responsabilidade a uma outra autoridade deve ter em conta a amplitude e a natureza da tarefa e as exigências de eficácia e economia.

Uma das inumeráveis formas de concretização destes princípios diz respeito à atribuição da exploração das redes de distribuição de energia eléctrica que, desde 1982 é conferida aos municípios, não obstante, tradicionalmente, essa actividade ter vindo a ser dominada pela EDP, em regime de quase monopólio.

Em 2006, Portugal procedeu à transposição da Directiva da União Europeia sobre a organização do Sistema Eléctrico Nacional, que, para além do mais, com o objectivo de garantir a liberalização do mercado de energia, veio impor a separação jurídica das entidades que exercem as actividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade. Apesar da introdução dessas novas regras foi entendimento, à altura, manter vigentes, até ao seu término, os contratos de concessão anteriores ao diploma, que por terem períodos de vigência não coincidentes, alguns terminaram já e todos terminarão até 2026 (a maioria em 2021 e 2022).

Um diploma da Assembleia da República, aprovado em 2017 sem qualquer voto contra, veio estabelecer que todos os municípios do continente que optassem pela atribuição, mediante concessão, da exploração da rede de baixa tensão, que abrissem, de forma sincronizada, em 2019, os procedimentos públicos de contratação tendo em vista a celebração dos novos contratos.

A imposição desta limitação ao poder de decisão das autarquias poder-se-ia entender justificada dado que a estas sempre fica a opção de gerir directamente as redes, mas que caso optassem pela concessão a particulares, razões de economia justificariam que o fizessem de forma concertada.

Não é, porém, esse o caso! É que o diploma em causa impõe também o agrupamento dos municípios, de forma a abranger áreas territoriais a definir de acordo com essa lei de 2017, tendo em conta dois vectores: por um lado, deverá ter-se em conta, na delimitação dessas áreas, preferencialmente as áreas das entidades intermunicipais e por outro lado, a definição dessas áreas não pode ser efectuada por iniciativa dos mancípios, mas terá de observar a proposta da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) – essa mesma que recentemente se viu premiada com a extensão dos seus poderes à regulação dos mercados dos produtos petrolíferos –, supostamente com base em estudos técnicos e económicos.

O diploma legal em causa deixa na sua letra – mas morre aí – a possibilidade de os municípios se poderem afastar da proposta da entidade reguladora (ERSE), mas apenas se e na medida em que novos estudos “com o mesmo nível de detalhe” demonstrem as vantagens nessa opção.

Mas pior: estão igualmente adstritos ao ónus de fundamentação e demonstração acima referido, os municípios que optem por gerir directamente as redes de distribuição.

É verdade que a lei apenas diz que se esse ónus é aplicável “à eventual intenção, por parte de qualquer município, de não se integrar no processo de lançamento sincronizado dos procedimentos concursais”, certo é que essa intenção, face à letra do diploma em causa, apenas é admissível no caso em que os municípios optem por gestão directa, pois, como acima se referiu, a opção pela atribuição mediante concessão, impõe o dever de abertura sincronizada de procedimentos.

Assim, a opção de qualquer município por gerir directamente a rede de distribuição implica a demonstração de que da sua opção não resulta em perdas globais de eficiência, equidade e coesão territorial, face ao cenário proposto pelo regulador.

Significa isto que a autonomia do poder local, nesta matéria, fica irremediavelmente subordinado ao poder da entidade reguladora, que apenas pode ser afastado quando o município demonstre, devidamente, que os estudos da ERSE estão errados no seu caso particular.

Creio que em termos de falta de respeito pela autonomia local isto bastaria. Mas o caso vai mais longe ainda. Pensar-se-ia que os estudos técnicos e económicos que serviriam de base à proposta da ERSE para a delimitação das áreas dos procedimentos consistiria num levantamento exaustivo do estado físico das redes de distribuição, necessidades de expansão e manutenção destas e no apuramento das receitas e custos, tendo em vista a determinação de uma maior eficiência da gestão das redes. Desenganem-se porém aqueles que assim pensariam.

O estudo da ERSE, recentemente colocado à discussão pública, resulta de um “árduo labor” de alguém sentado no seu gabinete que fez um levantamento da “literatura científica” sobre a matéria, que o próprio “estudo” considera inconclusivo, e solicitou informações à EDP sobre os custos médios da gestão da rede, sem sequer ter o cuidado de concretizar as categorias desses custos (fiando sem se saber qual a parte que corresponde a investimento, quais os custos fixos, quais as variáveis, etc.) e, pior, sem ter qualquer critério de alocação desses custos por município.

A partir desses dados, o estudo lança-se em elucubrações académicas para concluir que a área de cada agrupamento de municípios deveria abranger no mínimo 600.000 habitantes e a delimitação dessas áreas.

Ou seja: os estudos técnicos e económicos que constituem a barreira à autonomia local, acima referida, resumem-se, na realidade, a meia dúzia de informações prestadas pela EDP, informações essas que supostamente os municípios deverão rebater caso se decidam por, no exercício da autonomia local, gerir directamente as redes de distribuição de redes de baixa tensão.

Deste modo, as opções a serem tomadas pelas autarquias dependem da demonstração de que a solução apresentada pela EDP não é a melhor para o território dos seus municípios.

Que valor “cientifico” têm essas informações prestadas pela EDP? Ninguém sabe. Mas pior: não é sequer possível perceber ou rebater, porque indevidamente concretizados e individualizados, os dados fornecidos pela EDP.

É razão para perguntar: qual a verdadeira intenção de todo este processo, no qual ficam mal, a Assembleia da República pelo desrespeito demonstrado pelos princípios fundamentais de organização do estado português, a entidade reguladora pela incompetência demonstrada quando chamada ao exercício das funções para que foi criada e claro e sobretudo, os municípios pelo papel a que ficam subjugadas, em tudo isto?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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