“Não tenho nada a dizer. Sobre esse assunto já disse tudo o que tinha a dizer na primeira comissão de inquérito”. Foi desta forma que Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal (BdP) entre fevereiro de 2000 a maio de 2010 reagiu ao Jornal Económico quando questionado sobre o seguimento que deu aos alertas de falta de controlo do risco de créditos concedidos pela Caixa Geral de Depósitos (CGD) transmitidos em 2002 pelo então administrador do banco público, Almerindo Marques.
Constâncio é uma das personalidades que vai ser ouvida nesta quinta-feira, 27 de março, na nova comissão parlamentar de inquérito que foi criada para apurar as práticas de gestão da CGD no domínio da concessão de crédito desde o ano 2000, apreciar a atuação dos órgãos de administração, fiscalização e auditoria do banco, dos auditores externos, bem como dos governos e supervisores financeiros. A nova CPI foi criada após a divulgação do relatório de auditoria à gestão da CGD, entre 2000 e 2015, que conclui por perdas de 1.647 milhões de euros devido à existência de vários créditos de valores elevados, alguns dos quais concedidos pelo banco público de forma irregular e sem respeitar pareceres internos e em operações de risco.
O JE confrontou o antigo governador do BdP com os alertas de Almerindo Marques, em 2002, sobre os riscos no controlo dos créditos do banco público, mas Vítor Constâncio recusou-se a prestar esclarecimentos, remetendo a sua posição para as declarações que fez por escrito, em 2017, no âmbito da comissão de inquérito à recapitalização da Caixa, onde o ex-governador repetiu várias vezes na resposta enviada ao Parlamento: a supervisão “não tem competência para interferir com a política comercial das instituições”.
Os avisos sobre riscos no sistema de controlo de créditos chegaram, por carta, ao Ministério das Finanças (então liderado por Guilherme d’Oliveira Martins) e a Belém (ao então Presidente da República Jorge Sampaio), mas nenhum tomou qualquer medida, tal como o JE noticiou na edição de 22 de fevereiro.
Segundo este ex-gestor da CGD, Almerindo Marques, o antigo governador do BdP não desencadeou, na altura, nenhuma auditoria que o regulador “não tinha recursos” e “não era oportuno fazê-la ao maior banco do sistema, um banco público”.
As críticas incidiam na forma como era atribuída a concessão de crédito, que não seria rigorosa no controlo de risco, bem como na existência de operações não ratificadas em conselho de administração. Almerindo Marques, que acabou por sair da CGD em desacordo com o então presidente do banco António de Sousa.
O antigo administrador do banco explicou que lhe foi “recomendado pelo ministro das Finanças [Guilherme d’Oliveira Martins] que escrevesse a António de Sousa e a Vítor Constâncio a apresentar os motivos que considerava críticos na política de gestão e de crédito”. Constâncio terá então pedido a Almerindo Marques que fosse ao Banco de Portugal na sequência da carta que lhe foi dirigida.
O tema ganha agora relevância na nova CPI à CGD que pretende apurar também as responsabilidades dos supervisores, tendo já ouvido ontem o governador Carlos Costa.
O que disse Constâncio em 2017
Na primeira comissão de inquérito à recapitalização da Caixa e à gestão do banco, o ex-governador do BdP Vítor Constâncio descartou responsabilidades ou erros na supervisão da CGD enquanto ocupou o cargo como supervisor. Em resposta às perguntas que lhe foram enviadas, em 2017, pelos partidos, Constâncio assegurou: “em geral, a CGD não suscitou durante o meu mandato problemas significativos no âmbito da competência legal da supervisão, que me tivessem sido diretamente apresentados ou ao Conselho de Administração”.
Vítor Constâncio, que na altura era vice-presidente do Banco Central Europeu, salientou ainda que “no período de 2000 a 2009, indicadores de solvabilidade, qualidade do crédito e solidez financeira da CGD eram francamente positivos e alinhados ou superiores ao do conjunto do setor bancário nacional”.
Questionado sobre se, enquanto esteve em funções como supervisor, a Caixa mereceu alguma vez especial preocupação, Constâncio não só confirma que isso não aconteceu, como acrescentou a que nesse período a Caixa “nunca esteve subcapitalizada” e que “assegurou, aliás, um nível de rentabilidade em geral superior ao da média do setor bancário português”.
Já sobre operações específicas da Caixa, o ex-governador afastou competências do BdP na política de concessão de crédito da Caixa, argumentando que “a supervisão prudencial tem que assegurar que as instituições possuem adequada organização e procedimentos de análise do risco de crédito, mas não interfere na política comercial dos bancos nem nas decisões concretas de concessão de crédito”.
Constâncio avançou ainda que o regulador “não tem conhecimento antecipado dessas decisões nem as pode mandar anular ou reverter”. Mas, em 2002, os alertas sobre determinadas operações de crédito da CGD chegaram a Constâncio através do então administrador do banco, Almerindo Marques, e ainda assim Constâncio alegou que o supervisor “não tinha recursos para mandar fazer uma auditoria” e que “não era conveniente” determiná-la com base numa denúncia de um membro da administração.
E isto apesar de, em 2017, ter transmitido ao Parlamento que à supervisão “compete legalmente apenas tirar as consequências das decisões que os órgãos dos bancos tomam”, depois de ter salientado o objetivo principal da supervisão prudencial é “assegurar a solvabilidade e solidez financeira de cada instituição e garantir a segurança dos fundos confiados às instituições”.
Concessão de crédito sem controlo custou 903 milhões
No relatório da EY são reveladas 15 operações sem qualquer parecer individual da análise de risco, que resultaram em 86 milhões de perdas entre os 25 maiores créditos. E descobriram 13 operações em que o parecer de risco foi mesmo desfavorável, com 48 milhões de perdas nas operações de maior dimensão. No total, esta concessão de crédito sem controlo custou 903 milhões.
O relatório revela volumosas perdas nos créditos de risco da CGD. Até final de 2015, o banco tinha perdido 1.198 milhões de euros em apenas 46 grandes créditos.
A EY diz ainda que, nas 186 operações verificou “uma maior concentração no período 2000-2007 e 2008-2011″, com um peso perto dos 90% do total, onde simultaneamente se verificam também maiores percentagens de perdas”.
Segundo o relatório, entre 2000 e 2007 foram realizadas 127 operações, com perdas acumuladas de 1.120 milhões; 47 operações entre 2008 e 2010 (477 milhões de perdas); oito entre 2011 e 2013 (40 milhões de perdas); e, quatro entre 2014 e 2015 (10 milhões).
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