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Quando a luz se apagou, o rádio a pilhas ligou-se

Com as grandes superfícies fechadas devido ao corte de energia, as lojas de imigrantes encheram-se de portugueses que queriam comprar rádios a pilhas, lanternas e velas. As mercearias de rua e as pastelarias esgotaram os stocks de legumes, fruta, pão, bolos e água. Algumas lojas até venderam fiado porque os clientes não tinham dinheiro vivo.
2 Maio 2025, 11h26

As perguntas que ouviu foram sempre as mesmas: “Desculpe, ainda tem rádios a pilhas? E lanternas ?”. Miguel Xué, um dos responsáveis da loja China Shopping, em Oeiras, não parou um minuto no dia em que Portugal e Espanha ficaram às escuras. Nesta segunda-feira, 28 de abril, ao final da tarde, os dois pisos e os nove corredores da loja tornaram-se estreitos para tantos clientes: procuravam rádios, lanternas, pilhas, velas e garrafas de água. O stock terminou rapidamente. “Passaram mais de 500 pessoas por aqui, mais do que na época de Natal”, diz Miguel Xué ao Jornal Económico. Havia filas em todos os cantos. Por volta do meio-dia as água, lanternas e rádios, com preços a partir dos seis euros, começaram a desaparecer das prateleiras. Depois da hora do almoço, o cenário ficou mais caótico. Venderam-se todas as velas, até as aromáticas, fogões de campismo, carvão, pilhas ou toalhitas. “As pessoas pagavam em dinheiro, mas se faltasse 10 ou 20 cêntimos deixávamos as pessoas levarem os produtos”, conta este responsável do China Shopping, de 31 anos, que já tinha começado a prever a corrida aos rádios a pilhas semanas antes, desde a mensagem do kit de emergência proposto pela União Europeia no mês passado [ver caixa].

A loja, habitualmente um espaço de consumo descontraído, tornou-se uma espécie de ponto de sobrevivência. O apagão geral deixou o País sem eletricidade, afetando o funcionamento normal de aeroportos, telecomunicações, hospitais, bancos, transportes e outros serviços. A falha de energia foi total. Televisões desligadas, internet e rede móvel inexistente. Sem eletricidade em casa, a rádio tornou-se um aliado precioso e o meio que mais informação deu aos portugueses. Quem seguia de carro ou tinha um aparelho a pilhas conseguiu saber o que se estava a passar a cada minuto.

Rui Manuel, 50 anos, é consultor numa tecnológica e preparava-se para embarcar para a cidade de Praga, capital da Chéquia, quando foi informado para deixar o Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, e ir buscar as bagagens. “Muitos estrangeiros não perceberam o que se estava a passar e acabei por me despachar rápido. Apanhei um táxi para casa e reparei que muitos passageiros ainda estavam a chegar ao aeroporto, já com o caos instalado. Sem telemóvel e internet lembrei-me que tinha um rádio dos anos 90 mas sem pilhas. Fui a uma loja ‘chinesa’ para as comprar (mora no centro de Lisboa) e a fila já era enorme. Alguns idosos não sabiam colocar as pilhas no rádio e pediam ajuda. Ainda comprei umas velas aromáticas. Para poupar energia só ligava o rádio às horas certas para ouvir as notícias”, explica o consultor ao Jornal Económico.

O cenário era igual de Norte a Sul. Nos supermercados, muitas prateleiras foram ficando vazias ao longo do dia – pão e bolos, cereais de pequeno-almoço, leite ultrapasteurizado, enlatados, água, batatas de pacote, papel higiénico e fogões portáteis foram vendidos freneticamente. “Por volta das 16h30 ainda apareciam pessoas para comprar comida, mas já pouco havia para vender. Verificou-se que ninguém está preparado para situações como esta. No final do dia, cerca de 10% dos nossos clientes não pagaram porque não tinham dinheiro físico. Acabámos por fechar por volta das 18h, com as montras completamente vazias”, diz José Monteiro, um dos responsável da pastelaria Carrossel, na Avenida Infante Santo, em Lisboa, ao Jornal Económico. Neste estabelecimento, em comparação com os dias normais, vendeu-se mais 30% de pão do que o habitual, 40% de salgados e 25% de bolos. A venda de águas duplicou.

“Enquanto os supermercados fecharam, as mercearias continuaram abertas. Algumas davam crédito aos vizinhos que não tivesse conseguido levantar dinheiro”, diz um morador de Lisboa, que comprou fiado legumes e fruta.

Esta solidariedade levou a que milhares de operações financeiras não fossem registadas em caixa, ou seja, há uma perda de riqueza para o País. Contactada pelo Jornal Económico, fonte próxima da Autoridade Tributária (AT) garante que esta situação excecional “não é preocupante”, pois existem vários mecanismos de informação para apurar a gestão dos fluxos financeiros.

Já a SIBS, proprietária e gestora da rede Multibanco e MB Way, esteve sempre operacional, mas a falta de energia em caixas automáticas e pontos de pagamento fez o número de operações cair. “O número de transações processadas na Rede Multibanco foi aproximadamente de oito milhões de operações, em linha com o domingo de Páscoa, e 40% inferior ao expectável num dia normal”, explicou a gestora da rede.

A estratégia da UE
A União Europeia (UE) está a preparar-se para casos de emergência – por causas naturais, como incêndios ou inundações, ou humanas, como acidentes ou conflitos –, mas só em julho, quando se começa a debater o próximo orçamento plurianual, avançará com uma estimativa de valor. Bruxelas quer ainda integrar aulas de preparação nos currículos escolares e introduzir um Dia Europeu da Preparação, referindo que a chave é prever e antecipar as crises.

As recomendações para os cidadãos em casos de emergência incluem um armazenamento básico de água e conservas para um mínimo de três dias, lanterna, rádio e pilhas, bem como uma bolsa de primeiros-socorros. O executivo comunitário anunciou que quer desenvolver critérios mínimos de preparação para os serviços essenciais, tais como hospitais, escolas, transportes e telecomunicações, melhorar a constituição de reservas de equipamentos e materiais críticos, melhorar a adaptação às alterações climáticas e a disponibilidade de recursos naturais essenciais, como água.

A estratégia de constituição de reservas da UE tem como objetivo garantir o acesso a recursos críticos em todo o bloco, como material de emergência e de resposta a catástrofes, equipamento médico, matérias-primas críticas e equipamento energético e ainda produtos agroalimentares e água. A Comissão deseja também reforçar a cooperação civil e militar, prevendo a realização regular de exercícios de preparação à escala da União, reunindo as forças armadas, a proteção civil, polícia, segurança, profissionais de saúde e bombeiros.

Como explica o antigo Comissário Europeu Janez Lenarèiè, “o acesso a dinheiro pode fazer a diferença em situações em que os sistemas de pagamento digital não funcionam. Numa crise, a resiliência também implica ser capaz de comprar alimentos, medicamentos ou combustível, mesmo quando não há eletricidade ou ligação à Internet”.

Para Hadja Lahbib, comissária europeia para Ajuda Humanitária e Gestão de Crises, estar ciente dos perigos permite evitar situações de pânico. “Significa evitar movimentos e gestos irracionais como os que tivemos durante a pandemia, com pessoas a correr para as lojas e a comprar papel higiénico. Estar preparado, saber o que pode acontecer, estar pronto para tudo, deve tornar-se uma nova forma de viver com serenidade”, acrescentou.

Em Madrid e outras cidades espanholas formaram-se igualmente longas filas em lojas que vendiam lanternas, velas, pilhas e rádios. O apagão, além de transtornos logísticos, revelou a vulnerabilidade das infraestruturas e a importância de soluções alternativas em momentos de crise.

Quem tem estores, placas ou esquentadores elétricos ficou impossibilitado de os usar. Nas zonas residenciais, os moradores carregavam o telemóvel dentro do carro. A situação ainda se mantém caótica em alguns locais. Além dos voos cancelados, muitos passageiros estão com problemas na recolha da bagagem e dormem no Aeroporto Humberto Delgado, numa fila criada para o balcão que está a efetuar a entrega das malas. Nem todos puderam festejar o regresso da luz com palmas, gritos e buzinadelas.

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