Foi anunciada pelo Governo em pleno verão como uma reforma “profunda” da legislação laboral, e até considerada uma “boa base” para a negociação para as confederações patronais, mas o anteprojeto apresentado aos parceiros sociais está longe de convencer o Partido Socialista (PS). Pelo contrário, o partido liderado por José Luís Carneiro vê nas cerca de cem propostas de alteração ao Código do Trabalho “uma ofensiva em larga escala” e uma espécie de regresso ao período da Troika, que promete combater no Parlamento.
Duas matérias relacionadas com a parentalidade parecem ter, inclusive, chumbo pré-anunciado, uma vez que tanto o PS como o Chega (o Governo precisa de um ou de outro para conseguir levar as propostas avante) já se posicionaram contra. Em causa está a eliminação das faltas por luto gestacional (três faltas justificadas para o pai e para a mãe) e a imposição do limite dos dois anos na dispensa para amamentação. “É um recuo que não aceitamos nem compreendemos”, garante ao Jornal Económico (JE) o deputado socialista Miguel Cabrita. Essas são duas linhas vermelhas para o PS, mas há outras, como as alterações nos contratos a prazo, o regresso do banco de horas individual, as alterações na contratação coletiva e o fim da proibição do recurso ao outsourcing durante um ano após despedimentos coletivos.
Antes de explicar ponto por ponto a oposição a essas medidas, Miguel Cabrita faz uma apreciação geral ao documento que o Governo apresentou aos parceiros sociais e que preocupa os socialistas, realçando que a reforma em causa vai ” no sentido errado e contrário àquele que era preciso”.
“Não estamos perante mexidas pontuais às leis do trabalho, estamos perante uma ofensiva em larga escala que vem, não resolver problemas, mas agravá-los, nomeadamente agravando riscos de precariedade no mercado de trabalho, desequilibrando as relações entre empregadores e trabalhadores”, aponta ao JE, considerando mesmo tratar-se de um “regresso à agenda de 2012 e às discussões que houve”, sem que se verifique agora “nenhuma das razões” que fundamentou aquela agenda. Por um lado, naquela altura havia “uma intervenção externa que nos constrangia”; por outro, estamos agora num “quadro económico e social diferente”, com “emprego em máximos” e “precariedade a reduzir”.
O PS acusa, ao mesmo tempo, o Governo de estar a propor mexer em cerca de cem artigos do Código do Trabalho, muitos dos quais “nem sequer foram pedidos por nenhum parceiro social”, e que, além disso, a AD escondeu a reforma dos eleitores.
“Na campanha eleitoral, nada fazia prever que teríamos uma revisão em larga escala das leis laborais. O programa eleitoral tinha algumas notas mas eram mais localizadas. Já tinha que estar preparada porque não se faz uma reforma de cem artigos das leis laborais em dois meses. Já estava preparada e foi escondida dos portugueses. (…) Estamos mesmo perante uma ofensiva que tem origem numa aparente convicção ideológica profunda do Governo”, repete o deputado e antigo secretário de Estado do PS.
O que vai ter a oposição do PS
Entre os pontos que mais preocupam os socialistas está o regresso dos níveis de contratação a prazo de dois para três anos: “Em acordo de concertação de 2019 [no governo de Costa], o prazo máximo destes contratos tinha sido reduzido de três para dois”. “Para nós, uma questão crítica é voltar a ser reintroduzido na lei o facto de pessoas que nunca tiveram contrato permanente, leia-se jovens, poderem ser contratadas a prazo apenas por essa razão. Temos um problema em Portugal com os contratos a prazo, são muitas vezes usados erradamente e perversamente como um período experimental alargado. Não é isso que devem ser. [Mas] vieram a diminuir ao longo dos anos, a lei atual está a produzir efeitos”, diz Miguel Cabrita.
O PS não compreende, por isso, quais as razões que levam PSD/CDS a querer mexer nestas matérias, “numa altura em que se quer tanto, e bem, dar condições aos jovens, ajudá-los a ter estabilidade e a poder ficarem em Portugal, a poderem tomar decisões sobre a sua família, a poderem ter acesso à habitação”. “Não se percebe como é que se vai voltar a abrir uma porta de precariedade legitimando na lei algo que já tinha sido fechado. [O Governo quer] não só reverter a duração máxima dos contratos a termo certo, passando de dois para três anos, e de quatro para cinco a termo incerto, como se volta a introduzir a possibilidade de um jovem, pelo facto de nunca ter tido um contrato de trabalho permanente, poder ser contratado a termo. É preocupante e um sinal errado”.
Outro exemplo dado pelo deputado do PS é o regresso do banco de horas individual, algo que caiu em acordo de concertação também em 2019. Sobre a intenção de regressar a uma figura “criada no período da Troika”, Miguel Cabrita afirma: “É importante que as empresas tenha flexibilidade, mas um banco de horas, que é uma forma de flexibilidade muito forte, desregula muito os horários. Torna os horários muito variáveis de dia para dia, de semana para semana. Nós acreditamos, e isto foi aprovado em concertação, que o banco de horas puramente individual não deve existir. O banco de horas deve ser para uma equipa, para um turno, deve ser para uma equipa de projeto. Deve ser [negociado] no contrato coletivo ou então, no limite, quando não há contrato coletivo, num referendo aos trabalhadores. Colocar um trabalhador individualmente sujeito a essa pressão de ter de negociar formas de horário tão flexíveis é algo que é profundamente disruptivo da vida das pessoas.”
O parlamentar sustenta que quer a questão dos contratos a prazo, quer o fim do banco de horas individual não impediram o emprego de crescer, ou que as empresas não se conseguiram adaptar e ter níveis de exportação recorde. “Para nós são passos errados e portas que se reabrem quando as empresas têm instrumentos de flexibilidade e de contratação que se têm revelado ser adequados”, argumenta.
O PS está ainda desconfiado no que toca a mudanças na negociação coletiva. “Parece-nos que está-se a querer facilitar nos mecanismos de caducidade. O PS não é um partido imobilista, pelo contrário, bate-se pelo dinamismo da negociação coletiva. O que nos parece é que esse dinamismo não deve ser conseguido à custa de deixar uma das partes em estado de necessidade, pelo contrário, devia haver aqui alguns mecanismos de proteção para que os casos de caducidade de contratos coletivos fossem uma exceção, o último recurso, e não uma arma negocial. E as mudanças que são propostas na negociação coletiva são mudanças para enfraquecer e desequilibrar a posição das partes e isso para nós é negativo.”
O fim da proibição de as empresas que fazem despedimento coletivo recorrerem a outsourcing (subcontratação) é outra matéria com a qual o PS não estará de acordo. Ao contrário dos exemplos acima apontados, esta medida não resulta de um acordo de concertação, mas integra a Agenda do Trabalho Digno aprovada pelo último governo de António Costa.
“É uma medida que responde a uma prática que se foi instalando, cuja ideia fundamental era, quando há um despedimento coletivo, existir uma espécie de período de nojo em que a empresa não pode a seguir [durante 12 meses] ir contratar terceiros para os mesmos serviços que alegou não precisar”, recorda Miguel Cabrita.
Sobre estas limitações, foram inclusive levantadas questões de constitucionalidade, pela Provedora da Justiça (hoje ministra da Administração Interna). O veredicto do Tribunal Constitucional chegou há dias, declarando o acórdão que “a medida não era inconstitucional e que até era adequada ao fim que procurava atingir”.
“Os trabalhadores em outsourcing são um recurso a que cada vez mais empresas recorrem, é obviamente uma possibilidade, o que nos parece é que não deve haver abusos. Há aqui um incentivo a despedir pessoas e a contratar através deste mecanismo”, aponta, alertando que a proposta do Governo apresenta ainda uma outra proposta neste campo: “Os trabalhadores de outsourcing tinham passado a ter acesso aos direitos da negociação coletiva, tal como os trabalhadores das empresas de trabalho temporário já têm, e isso foi também removido.”
Sobre as alterações à lei da greve, onde o Governo quer garantir serviços mínimos e alargá-los às creches, aos lares, ao abastecimento alimentar e aos “serviços de segurança privada de bens ou equipamentos essenciais”, o PS não manifesta tanto desacordo, diz apenas que as alterações não são prioritárias e acusa a AD de querer legislar a partir de um caso concreto.
“Não há nenhuma lei que deva estar imóvel, há sempre acertos que se podem fazer; o que nós estranhos e criticamos é esta questão da greve e dos serviços mínimos não estar no programa eleitoral. Só apareceu o assunto por causa da má gestão que fez das greves do INEM com consequências trágicas, e numa greve em particular nos transportes da parte da CP, em que o Governo não conseguiu acautelar serviços mínimos adequados”, assinala o socialista, acrescentando que, ao trazer este tema para a sua agenda, o Governo pretendeu “de alguma forma alijar responsabilidades” e “procurar melhorar a sua imagem”. Seja como for, “como em todos os pontos do anteprojeto, estamos a analisar as implicações e as consequências. No caso da lei da greve, não nos parece que estas medidas fossem prioritárias”, remata.
O JE contactou o Chega para perceber o seu posicionamento sobre a reforma laboral proposta pelo Governo mas o partido nada disse. Publicamente, André Ventura já deu nota de que as matérias relacionadas com os direitos da parentalidade não vão ser acolhidas pelo Chega, mas sobre a lei da greve defendeu um consenso alargado entre PSD/CDS, Chega e Iniciativa Liberal. O líder do Chega salientou que os “trabalhadores têm direito à greve”, mas “o cidadão também tem direito a que os serviços públicos funcionem”, tais como os transportes ou os hospitais. É esse o argumento base do Governo. O executivo quer garantir serviços mínimos que, “não deixando de ser mínimos, têm naturalmente de ser eficazes para que, respeitando na íntegra o direito da greve, não deixem de respeitar outros interesses igualmente fundamentais”.
O anteprojeto para a reforma laboral “Trabalho XXI” foi apresentado aos parceiros sociais no passado dia 24 de julho. “O grande mote é flexibilizar para valorizar e crescer”, explicou na altura a ministra do Trabalho e da Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho. O objetivo, acentuou a governante, é “flexibilizar regimes laborais que são muito rígidos por forma a aumentar a competitividade da economia e a promover a produtividade das empresas”, “valorizar os trabalhadores através do mérito”, “estimular o emprego, em especial o jovem, e a capacidade de reter talento” e “dinamizar fortemente a negociação coletiva e a contratação coletiva”.
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