[weglot_switcher]

Ricardo Paes Mamede: “Hoje, um bom economista não tem necessariamente uma formação teórica muito sólida”

Ricardo Paes Mamede revê-se nas tradições da economia política institucionalista. Orgulha-se de ter frequentado escolas públicas e recorda a vida num subúrbio lisboeta e a sua participação no blogue “Ladrões de Bicicletas”.
10 Junho 2017, 21h00

Professor de economia política no ISCTE, Ricardo Paes Mamede tornou-se conhecido do grande público com os programas de debate em que participa na RTP. Considera-se um economista “heterodoxo” e contesta os “cânones” que hoje são dominantes na ciência económica. Foi uma das figuras mais ativas na luta contra a Prova Geral de Acesso e as propinas, nos anos 80 e 90. Ajudou a formar uma espécie de ‘geringonça’ para ganhar a associação de estudantes à JSD, que apoiava as políticas cavaquistas, mas foi devido a questões ambientais que primeiro entrou nos movimentos associativos e políticos, ainda na Escola Secundária de Odivelas. Na altura, tocava com os amigos na banda “Tribo dos Pés Cagados”. Não estão a preparar uma reunião.

Como é que se classifica enquanto economista? É um economista de esquerda?

Bom, sou economista e sou de esquerda.

Mas pode falar-se em posicionamentos políticos na ciência económica?

É arriscado fazê-lo. A economia é a única ciência social que tem um paradigma completamente hegemónico. Em geral, nas várias ciências sociais, existem diferentes paradigmas, diferentes escolas de pensamento, diferentes linhas de investigação. No caso da ciência económica isso não acontece. Existe um paradigma absolutamente dominante, que se chama escola neoclássica, e há uma tendência muito grande para confundir a escola neoclássica com o pensamento liberal. Isto não é verdade, pois encontramos economistas neoclássicos que têm pensamento de esquerda. Estou a pensar, por exemplo, em Stiglitz e Krugman, que são dois prémios Nobel assumidamente de esquerda, mas que seguem em larga medida o paradigma neoclássico na economia. E depois temos economistas que não são neoclássicos, mas que são ultraliberais, como é o caso da generalidade dos economistas da chamada escola austríaca. Portanto, há algum risco, quando fazemos uma análise do posicionamento que cada pessoa tem enquanto economista – enquanto cientista económico, chamemos-lhe assim –, de confundir as suas posições políticas com as suas posições doutrinárias no seio dos paradigmas científicos.

Então onde se posiciona?

Enquanto académico na economia, considero-me um economista heterodoxo, precisamente porque não me revejo nos aspetos essenciais daquilo que é o paradigma dominante na ciência económica. Revejo-me nas tradições da economia política institucionalista. As minhas posições de esquerda só parcialmente se sobrepõem a estas questões, porque consigo fazer boa parte das análises, enquanto militante das esquerdas, partindo do paradigma dominante da economia. Não preciso de recorrer à minha heterodoxia doutrinária para defender as posições que defendo.

Como nasceu essa forma de analisar a sociedade?

Comecei a envolver-me na atividade cívica e política através dos temas ambientais, na minha primeira participação nas eleições para a associação de estudantes, na Escola Secundária de Odivelas. Andava no nono ano, quando, juntamente com um grupo de amigos, nos apresentámos às eleições para a direção da associação de estudantes com uma plataforma ambientalista. Na Escola Secundária de Odivelas, as eleições eram tradicionalmente disputadas entre uma lista da JSD e uma lista da JCP, que também se apresentaram a essas eleições, e nós aparecemos como uma lista independente a defender a ecologia. Isto é, temas que estão bastante longe daquilo que são hoje os debates entre a esquerda e a direita. Na verdade, por vezes eram coisas tão simples como exigirmos que os espaços verdes na nossa escola fossem ajardinados, que as portas das casas de banho fossem devidamente pintadas, que houvesse portas nas casas de banho! Portanto, tinha muito mais que ver com o ambiente que se vivia na escola, com algumas extensões à agenda ambiental do município, como a despoluição da ribeira de Odivelas ou o fecho da lixeira de Caneças, que então existia. Ou seja, a minha entrada na vida cívica e política faz-se mais por temas ambientais do que pelos temas com que possa, eventualmente, estar conotado.

Odivelas nos anos 80 e 90 era uma cidade de subúrbio, com algumas bolsas de pobreza, e naquela escola havia um ambiente de muita diversidade. Isso foi importante para ganhar consciência política?

Não é apenas ganho de consciência política, mas também de formação humana. Fiz todo o meu percurso em escolas públicas. Desde a primeira classe até ao 12.º ano andei em escolas públicas, marcadas sempre por uma enorme diversidade, de classes socioeconómicas, de contextos educativos das famílias, do ponto de vista étnico e de nacionalidade, e isso foi muitíssimo importante para a minha formação, não apenas política, mas essencialmente para a minha forma de ver o mundo.

Há uma faceta cultural e lúdica nessa fase. Havia muitas bandas de garagem, concertos. Tocou em alguma?

Toquei bateria numa famosa banda que dava pelo peculiar nome de Tribo dos Pés Cagados. Já não vivo em Odivelas há mais de 20 anos e hoje conheço menos bem, mas como outros subúrbios, vivia muito afastada de Lisboa. Viver lá não tinha nada que ver com viver no centro da cidade. Só havia dois cinemas que passavam apenas filmes comerciais de quarta categoria, e a generalidade da oferta cultural era muito fraca. Ir para Lisboa custava dinheiro e não era muito simples. Não havia metro, os transportes públicos não eram assim tão fáceis. Regressar à noite era um problema. Portanto, os subúrbios viviam muito da atividade que era gerada no próprio local. Não havia internet, havia apenas dois canais de televisão. O divertimento dependia muito do que fizéssemos do nosso tempo. Isso ajudava em parte aos hábitos de consumo de drogas, que nalguns casos se tornaram preocupantes. Convivíamos com realidades das dependências graves e das overdoses, mas também com os pequenos grupos de teatro de bairro ou as bandas de garagem. Esse universo de pop e rock de garagem era muito ativo.

Não há a possibilidade de uma reunião da Tribo dos Pés Cagados?

Nunca se colocou [riso]. Mas tenho saudades de tocar bateria.

Não toca desde essa altura?

Pontualmente, se apanho umas baquetas à frente. Em determinada época tive uma bateria eletrónica em casa, mas basicamente não tenho tempo.

É nessa fase em Odivelas que surge a ligação a movimentos estudantis, de contestação à Prova Geral de Acesso (PGA), às propinas.

Nós ganhámos as eleições para a associação de estudantes, e o início da atividade associativa permitiu-me estar mais exposto a debates e reflexões sobre temas mais gerais. Na altura vivíamos em pleno período cavaquista, com predomínio muito grande não só de políticas mas de ideias profundamente conservadoras na forma de olhar para a sociedade, onde predominava o novo-riquismo, o individualismo, o consumismo, e isso foi um contexto que me fez acentuar muito valores de esquerda que já existiam em mim. Mais tarde, já no final do meu percurso no ensino secundário, deu-se a luta contra a PGA – um acidente histórico que fez com que eu acabasse, em larga medida, no núcleo central desse movimento. E isso fez com que aquilo que tinha sido até aí uma vivência essencialmente local, de intervenção política pacífica de base local, ganhasse uma dimensão nacional e passasse a ter reuniões com associações de estudantes de todo o país.

Entra depois no ISEG, que tinha uma tradição bastante politizada. Quando lá estudou houve aproximação a forças de esquerda?

Quando entrei para o ISEG – e foi na sequência da PGA, no 12.º ano –, a associação de estudantes era controlada por uma lista da JSD há meia dúzia de anos, pelo menos. Era uma lista que apoiava fortemente as políticas do Governo de Cavaco Silva e que apoiava, em particular, a medida mais polémica que estava a ser discutida na altura, que era o aumento das propinas no ensino superior. Ou seja, entro no ISEG no momento em que a luta das propinas está a atingir o seu auge e envolvi-me na lista da oposição, que tinha como principal bandeira a recusa das propinas e a defesa ativa de uma resistência ao pagamento das propinas através de um boicote. Nesse ano, acabámos por ganhar as eleições para a direção da associação de estudantes. De alguma forma, a minha vivência associativa no ensino secundário continuou no ISEG numa lista que, basicamente, era uma união das várias esquerdas, onde havia elementos da JCP e da Juventude Socialista, assim como algumas pessoas do PSR – não eram muitas porque o partido não era muito grande – e até alguns militantes da JSD, que não se reviam na política educativa do Governo de então, e um elevado número de independentes essencialmente de esquerda.

Foi nesses anos e movimentos que fez alguns amigos que estão na génese do blogue “Ladrões de bicicletas”?

A generalidade dos membros do “Ladrões de bicicletas”, que são mais ou menos dessa geração, são mais novos que eu. O José Guilherme Gusmão, o João Rodrigues, o Nuno Teles são todos mais novos que eu. Alguns deles só entraram para o ISEG quando eu já estava a fazer o mestrado. São de uma fase diferente, mas conseguimos, ainda assim, estabelecer algumas pontes.

Então quem são os ilustres do seu curso? O Ricardo Mourinho Félix e o João Leão?

O Ricardo Mourinho Félix [secretário de Estado do Tesouro] é do meu ano. O Pedro Marques, o ministro do Planeamento, salvo erro, é do ano seguinte. O João Leão [secretário de Estado do Orçamento] tem um percurso peculiar, porque entrou para o ISEG no ano a seguir ao meu, mas ao fim de dois anos mudou-se para a Nova.

Foi a deriva liberal a falar mais alto?

Tem menos que ver com uma questão de orientação política do que a orientação do ponto de vista teórico. O João Leão é um economista neoclássico e procurava na Nova esse tipo de abordagem. Tem uma inclinação muito forte para a matemática e para a modelização e creio que isso terá influenciado a decisão de ir para a Nova, além de outra coisa que penso que terá sido muito importante, do ponto de vista pessoal: percebeu que se ficasse no ISEG estaria condenado a gastar muitas e muitas horas em atividades associativas. Foi das pessoas com quem mais trabalhei na secção pedagógica da associação de estudantes do ISEG e ele foge para a Nova também para poder estudar. E fez bem, porque acabou por ser o melhor aluno da Nova no ano dele e fez depois o doutoramento no MIT, e também aí foi um dos melhores alunos.

No doutoramento em Itália, o Ricardo foi estudar na Universidade de Bocconi, onde surgiu o conceito de austeridade expansionista. Com este historial que tinha na secundária e no ISEG, foi um grande choque entrar para uma faculdade com esta visão?

Sim, não apenas devido ao tipo de percurso ativista que tinha, porque fui para um meio onde as pessoas tinham muito poucos hábitos de participação cívica, mas acima de tudo foi um choque do ponto de vista da minha relação com a ciência económica. Foi a primeira vez que me apercebi de uma forma muito clara que aquilo que atualmente é considerado um bom economista, de acordo com os cânones dominantes, não é necessariamente alguém que tem uma formação teórica muito sólida. Na universidade de Bocconi – tal como nas principais economias de todo o mundo –, um bom economista é alguém que tem um domínio virtuoso de técnicas, sejam elas de modelização matemática, sejam de análise estatística ou ainda técnicas de programação de software utilizado para cálculo e modelização em geral. E isso foi um choque. Confrontei-me com pessoas realmente virtuosas – em certo sentido, no seu domínio muito restrito de atuação, conheci pessoas geniais –, mas que eram profundamente ignorantes sobre a ciência económica como um todo, sobre o pensamento económico, sobre algumas das polémicas teóricas e metodológicas que há na história da economia. E também percebi que essas limitações tornavam extremamente difícil para essas pessoas compreenderem aspetos da dinâmica das economias contemporâneas, que me parecem indispensáveis para compreender o mundo em que vivemos.

Parte do problema que vivemos na economia europeia não resulta um pouco da ascensão dessa forma de pensar a economia, excessivamente centrada em modelos?

Só parcialmente estou de acordo com essa ideia. O tipo de modelização e de teorização que se tornou dominante na economia convida muito a que os economistas pensem de forma estrita, em termos de eficiência. E isso faz com que se ignorem dimensões muito importantes do funcionamento das sociedades contemporâneas. Mas muito mais importante do que a forma como se faz a economia são os valores políticos que estiveram na base da construção da União Europeia como a conhecemos. A UE não é uma construção neutral do ponto de vista ideológico. Essa construção não neutral não precisou da ciência económica dominante para ser estabelecida, ela foi estabelecida pela força política que certos atores tiveram em determinados momentos, utilizando instrumentalmente partes da ciência económica para se afirmarem. Não foi a ciência económica que determinou a política, foi a política que determinou qual era a parte da ciência económica que seria mais valorizada.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.