Rui Tavares, historiador, ex-deputado europeu, político com enorme visibilidade na comunicação social, será o rosto do Partido Livre na
coligação ‘Mais Lisboa’, liderada por Fernando Medina, e na qual coexistirá com o PS e outras forças da cidadania lisboeta. A partir da
sua casa rural numa aldeia do Ribatejo, onde descansa na companhia da família, o fundador do partido, que não desempenha atualmente
qualquer cargo na estrutura do Livre, falou ao Jornal Económico.
Para que serviram as primárias do Livre em Lisboa se já se sabia que o seu nome faria parte de uma coligação com o PS?
Não vou nestas eleições nas listas do PS [Rui Tavares faz alusão à apresentação da entrevista no formato áudio e vídeo, que fazia essa
referência]. Uma coligação é uma entidade com existência legal na lei eleitoral portuguesa que significa precisamente isso: ser uma coligação entre listas de dois partidos. Portanto, estou na lista do Livre, que é o meu partido e de que sou um dos fundadores. De facto, o Livre escolhe
sempre os seus candidatos através de primárias abertas. Foi sempre assim que, no Livre, fui candidato, sempre em eleições muito disputadas. Em 2015, a decisão final foi por 25 pontos entre mim e a Ana Drago. Este ano, em Lisboa, as eleições foram muito disputadas e
levaram a duas voltas, a última das quais entre os seis candidatos melhores classificados. Submeti-me a esse debate, que foi, aliás, muito
rico, com os meus camaradas.
Se não tivesse ganho essas primárias o candidato do Livre para a coligação com o PS seria outro?
Repare: a coligação foi finalizada após as primárias do Livre. Portanto, é plausível supor que as primárias tiveram também um peso negocial para o Livre e que, provavelmente, influenciaram de alguma forma as negociações. Mas não esqueçamos que as primárias, sendo abertas,
estão acessíveis a pessoas da sociedade civil fora dos partidos, pessoas que podem ser fortes e que podem concorrer se se reverem
nos nossos princípios, valores e ideais. Isto para dizer que quem se candidata nunca sabe qual será a sua colocação final. Isso faz parte do
jogo democrático interno.
Talvez que para o PS não fosse a mesma coisa ganhar Rui Tavares ou outra pessoa qualquer…?
Bem, poderia eventualmente haver outra pessoa que desse mais peso negocial ao Livre nas conversações para a coligação…
[Interrompendo] Deixe-me recordar: o Livre teve 57 172 votos em todo o País em 2019, 22 807 dos quais na região da grande Lisboa e mais precisamente 9.508 na cidade (onde tinha conseguido 6.302 em 2015). Porque não seguiu o Livre um caminho simétrico daquele que a Iniciativa Liberal (IL) fez à direita, independente da coligação ‘Novos Tempos’ liderada por Carlos Moedas?
Bem, desde logo porque as comparações não incluem só números para legislativas mas também para europeias, nas quais o Livre teve 72 mil
votos nas primeiras a que concorreu. E nas eleições europeias, com menos participação, isso significa uma margem de progressão maior.
Nas de 2019 tivemos 68 mil votos. Relembro também que o Livre já teve em Lisboa, logo nas primeiras eleições a que concorreu, 5,8%, tendo
ficado à frente do Bloco de Esquerda.
Por isso mesmo, não fazia mais sentido uma candidatura autónoma?
O Livre estava já, através de uma parceria chamada ‘acordo coligatório’, com o PS, desde 2017. A avaliação que era preciso fazer tinha a ver
com dar continuidade a um trabalho que já estava a ser desenvolvido – e que o Livre queria que tivesse mais ambição – ou, então, romper com o acordo que existia. É por isso que não é simétrico do que se passa em relação à IL e à coligação de direita, porque estamos a falar de um
partido mais recente e que estava com a folha ‘em branco’ em Lisboa. O Livre já estava numa parceria com Fernando Medina e o PS, com as
propostas da família política de que fazemos parte, a esquerda verde europeia. E o que vimos nesse diálogo foi que havia receptividade dos
nossos parceiros, não só o PS mas também o movimento independente ‘Cidadãos por Lisboa’, em aceitar que de ‘acordo coligatório’ se
passasse a coligação, o que significa que o símbolo do Livre estará no boletim de voto. Os candidatos do Livre continuarão a defender as
posições do partido, que em alguns casos são diferenciadas das do PS, não perdendo nada da sua identidade. Também significa,
evidentemente, chegar ao executivo, algo que este tipo de coligação de governo de uma capital exige em Berlim, em Paris ou em Madrid, onde partidos da nossa família verde europeia e das famílias socialista e social-democrata governam em coligação. Para Lisboa, isso significa
também chegar a um patamar de modernidade política.
Há quem diga que esta coligação faz mais sentido para si, que estava afastado de cargos políticos há algum tempo, do que para o Livre. Como responde?
Não sei quem há que diga isso. Nunca ouvi ninguém dizê-lo.
Ouvi eu.
Até me custa a acreditar que alguém diga uma coisa dessas – é absurdo! Como se sabe, eu estava já há alguns anos a afastar-me da atividade política por vontade própria. Estava a fazer um caminho de recuperar a minha vida académica, de escrever livros e fazer coisas que
me fazem feliz. Achei que, nesta fase, tinha um contributo importante a dar em Lisboa para a vida dos meus concidadãos e do partido que
fundei – e que quero ajudar, como sempre fiz, a garantir um lugar na política portuguesa para uma família política que está representada em
praticamente todos os países da Europa ocidental, e mesmo do resto da União Europeia, e que não está representada em Portugal. Quem me
conhece sabe que, há muito tempo, esse é um factor de insuficiência da nossa vida política. Não pauto nunca as minhas decisões pessoais por
questões de elegibilidade ou não. Para dar exemplos que estão documentados pela imprensa da época, eu neguei duas vezes, em 2014
e 2019, fazer parte das listas do PS ao Parlamento Europeu. Se tivesse aceite, estaria agora a fazer o meu terceiro mandato. Rejeitei porque
apenas sou candidato nas listas do partido que fundei. Mesmo quando fui independente nas listas do BE fui num lugar por toda a gente
considerado inelegível: terceiro lugar na lista de um partido que nunca tinha elegido mais do que um eurodeputado. Acho que os factos falam
por si.
Se a coligação ‘Mais Lisboa’ ganhar ficará com o pelouro da Cultura, Conhecimento, Ciência e Direitos Humanos. Qual era a alternativa, se é que houve?
Integramo-nos numa coligação que, antes, já era um movimento. O Livre já estava na assembleia municipal, mas, para além do PS,
também estavam parceiros que muito respeitamos, como os ‘Cidadãos por Lisboa’, a lista que em 2007 elegeu Helena Roseta e o “Lisboa é
Muita Gente’, o movimento do José Sá Fernandes. Não queremos nunca retirar espaço a gente que já faz trabalho continuado em Lisboa,
e bom. Há dois pelouros diferentes que mudam a sua vereação. O José Sá Fernandes deixou a CML, onde fez um trabalho excelente e a
Catarina Vaz Pinto também. O que foi posto em cima da mesa pelo PS foi a possibilidade do pelouro da Cultura mas com a possibilidade de
ampliar o raio de acção, acrescentando-lhe o Conhecimento, a Ciência e os Direitos Humanos. Nunca houve um pelouro de Ciência na CML. É muito raro, até, no País. Lembro-me do caso do Funchal. E, a propósito até do combate às alterações climáticas, percebemos agora todos que a promoção do conhecimento científico é essencial, como o é todo um lado de relações com um ecossistema muito rico, universitário, de
institutos, laboratórios, centros de estudos que passam a ter um interlocutor na CML. A economia do conhecimento é aquilo que pode
colocar Portugal, na próxima década, numa posição muito diferente daquela em que está hoje, em termos da economia e da sua sociedade.
Viu, com certeza, as conclusões do recente relatório da ONU sobre as alterações climáticas. O que é que aquelas conclusões podem determinar na vida próxima da cidade de Lisboa?
Uma ambição e velocidade maiores, embora Lisboa já tenha feito um trabalho muito grande na área ambiental, com José Sá Fernandes, que
levou a cidade a ser capital europeia no ano passado. Mas ainda há muito a fazer. Foi desenvolvida uma carta solar. Passámos a conhecer
bem todos os espaços, edifícios, onde a exposição solar é maior. Agora trata-se de construir em cima disso. Apresentei as ‘ideias novas para
edifícios velhos’ nas primárias do Livre. Quartéis, antigos hospitais civis, edifícios públicos que têm pouca ocupação, podem ser transformados em polos cívicos, de teletrabalho, economia criativa, ou, ao mesmo tempo, porque muitos deles são espaços amplos, possibilitar ter quintas de painéis solares, ligadas em rede, que serviriam, por exemplo, para recarregar as baterias de um sistema de transportes de tipo novo, mini-autocarros eléctricos que fizessem o transporte escolar. Temos de saber ter esta visão integrada que nos permita, ao mesmo tempo, eletrificar a frota automóvel de transportes públicos em Lisboa e também criar esses espaços onde a energia para essa frota possa ser produzida de forma sustentável. O que não faltam são quartéis em todas as freguesias de Lisboa onde podemos fazer essa rede solar e anteciparmo-nos às metas nacionais e europeias de descarbonização da economia.
O acordo ‘Mais Lisboa’ tem cinco pontos. Três são gerais de coligação, o outro é o seu programa na vereação e o último, que me parece um descargo de consciência do Livre, é um “compromisso de aprofundamento” em quatro áreas: aeroporto, tauromaquia e bem estar animal, moeda local e rendimento básico incondicional. Vamos começar pela tauromaquia. As touradas podem acabar em Lisboa?
Há, de facto, uma visão mais ambiciosa do Livre para acabar com o sofrimento animal a várias escalas. Há o assumir de onde há diferenças
entre o Livre e o PS. Nem um partido nem outro abandonam a sua identidade, mas esbarramos num problema: as touradas podem acabar
através de lei nacional, não de lei municipal. Há um jogo de sombras entre autoridades nacionais e municipais. Ouvimos o primeiro-ministro
dizer muitas vezes que acha que devem ser os municípios a decidir e depois nunca dá os passos na legislação nacional que permitam de
facto aos municípios decidirem. O que podemos dizer é que o Livre dará todos os passos para, tanto quanto a lei o permita, diminuir, e
potencialmente acabar, com o sofrimento animal.
O aeroporto.
Esbarra no mesmo tipo de problemas. Há uma decisão nacional a tomar. Aí há, até, um consenso maior do que na tauromaquia. Penso
que toda a gente entende que, nas condições atuais da aviação – que podem mudar -, o aeroporto, com o impacto que tem em termos de
poluição sonora, de risco para a cidade, não deveria estar onde está. Há uma decisão nacional a tomar sobre onde o localizar mas penso que a
solução ideal seria a construção de um novo aeroporto numa zona na qual os impactos ambientais fossem minorados. Isso significa, digo eu a
título pessoal, o aeroporto em Alcochete, sem Montijo nem Lisboa. Esperemos pelas legislativas para termos as posições dos partidos, incluindo a do Livre.
O que quer dizer quando propõe uma moeda local?
Quero dizer algo que já existe em muitas cidades. São experiências de animar a economia local, de potenciar o trabalho na agricultura local de qualidade, ecologicamente sustentável, mas também em áreas da economia criativa, artesanato, através de experiências de moeda local
que têm sido feitas em muitas cidades pelo mundo. O que o Livre se compromete é a desenhar um plano relativo a uma moeda local,
suplementar, para utilização em determinados segmentos da economia local, porque estas são coisas que descobrimentos que funcionam a
partir de uma experimentação que queremos estudada, ponderada. Essa é uma pasta pela qual o Livre se responsabilizará.
O rendimento básico incondicional (RBI). Este, sim, parece-me ser um assunto nacional. Faz, para mim, pouco sentido vê-lo neste acordo.
Discordo. As duas escalas nas quais se têm feito testes no RBI são a nacional e a local, municipal em geral. Na minha opinião, a escala em
que podemos aspirar a implementar um esquema de RBI até é supranacional, ou seja, da União Europeia. Com os orçamentos nacionais não vejo facilidade em termos o RBI. O que devemos é aspirar a fazer mais ao nível do salário mínimo e das prestações sociais. O nosso compromisso é de realizarmos estudos e termos um projecto-piloto na cidade de Lisboa nos próximos quatro anos.
Que diferenças substanciais podemos apontar entre as coligações ‘Mais Lisboa’ e ‘Novos Tempos’?
Muitas. A ‘Mais Lisboa’ é o prolongamento de uma governação da cidade que, mesmo em tempos difíceis, como os da pandemia, fez um
um investimento no apoio à economia e às pessoas que é 15 vezes superior ao que se fez no Porto; que também fez um esforço muito
grande na remunicipalização da Carris e dos transportes públicos; no terminar do ‘corredor verde’ da cidade e em políticas ecológicas. Tudo
isso são investimentos públicos com uma lógica progressista, naturalmente diferente de outra mais assente no funcionamento do
mercado e em lógicas privadas, mas que enfrenta problemas que o mercado não consegue resolver. Nós acreditamos numa capital
estratégica que saiba gerir o longo prazo. A verdade é que Lisboa pagou dívida e poupou dinheiro antes da crise. Isso significou ter
maiores recursos para apoiar a economia e as pessoas durante a crise pandémica. Há muitas diferenças. Elas vêm até do tempo de outras
coligações de esquerda, como a que foi liderada por Jorge Sampaio, e que têm feito muito por esta cidade.
Das propostas que já ouviu da coligação liderada por Carlos Moedas entende que há alguma boa ou são todas más?
O problema não é haver algumas propostas boas. Respeito a candidatura do Carlos Moedas, com quem tenho boas relações pessoais, como tenho com outros candidatos do campo democrático, do João Ferreira a Beatriz Gomes Dias. O que me parece é que existe uma
falta de lógica interna programática evidente na coligação da direita. Isso expressa-se em querer fazer políticas de combate às alterações
climáticas mas depois dizer que vamos acabar por incentivar o uso do automóvel privado diminuindo o custo do estacionamento, quando, para os lisboetas, ele já é barato ou na prática gratuito em algumas modalidades. Isso é contraditório. Vê-se na campanha também. Não há
um fio condutor. Na nossa coligação com o PS esse fio condutor é o do ‘pacto verde’.
Como é que o historiador olha para o revisionismo histórico militante em curso contra algumas pessoas, factos e, até, monumentos de época. Gosta do Padrão dos Descobrimentos e da Torre de Belém, por exemplo? Como se posiciona nessa discussão?
Nessa discussão acho que os maximalismos são indesejáveis. Devemos transcender as polarizações destrutivas. O que precisamos é
de uma consciência histórica muito grande. Quando Carlos Moedas apresentou a sua candidatura disse que Lisboa tinha mais de mil anos –
é verdade, até tem mais de dois mil anos! [Sorri] Provavelmente, mais de dois mil e quinhentos anos de História. Isso significa que será das
mais antigas capitais da Europa, a seguir a Atenas e a Roma. O que se espera de um historiador numa cidade como Lisboa é um sentido de
responsabilidade muito grande, que seja um guardião desse tempo de História. Portanto, de mim não se espere outra coisa que não um
respeito muito grande pelo património edificado e imaterial de Lisboa, no sentido da sua preservação e contextualização. Gosto muito de uma frase de João de Barros, historiador seiscentista: “A História é um espertador do entendimento”. Significa isto que [a História] serve para compreendermos melhor, para que nos possamos desinquietar às vezes, termos noção da grandeza do que ficou para trás e nos
apercebermos das enormes falhas morais dos nossos ancestrais. Serve para isto tudo. Não serve para umas coisas e não para as outras. O que
sinto no debate público hoje em dia é que há muita gente que quer apenas um dos aspectos ligados à História. E para ela ser, como dizia
João de Barros, o tal “espertador do entendimento” tem de ser rigorosa, contextualizada, publicamente debatida.
Portanto, sente-se confortável com a existência do Padrão dos Descobrimentos e da Torre de Belém?
Tenho um percurso de historiador, que inclui ter dirigido uma História de Portugal publicada em 25 pequenos livros, no qual se reconhece a
intenção de valorizar o passado e o património. Isso é o que farei.
Otelo Saraiva de Carvalho, consigo na CML, seria homenageado a propósito da sua morte recente?
Escrevi sobre isso. Temos aí um exemplo de um debate sobre o passado em que muita gente quer apenas orgulhar-se e outras apenas
envergonhar-se. Se tomamos a História no seu conjunto, não devemos escapar a nenhum momento. Para mim, o papel de Otelo no 25 de Abril é muito importante; mas também tenho uma visão negativa, que exprimi, acerca da forma como ele, nos anos 80, com a democracia já consolidada – mesmo se, generosamente, entendermos que ele sempre negou ter tido alguma coisa a ver com as FP25 ou ter tido voz de
comando -, não se posicionou claramente contra qualquer utilização da violência para atingir fins políticos. Creio que toda a gente, quer à
esquerda quer à direita, deve entender que quem foi vítima de atentados terroristas nos anos 80 tem uma marca funda nas suas vidas
que deve ser entendida. O debate não pode ignorar qualquer das duas facetas. Essa última eu lamento, condeno. A democracia deve
manter-se num plano de respeito pelos adversários; deve ser intolerante com a intolerância.
Continua preocupado com o crescimento do Chega nas sondagens?
O que me preocupa são as posições reiteradamente inconstitucionais e anti-constitucionais desse partido e do seu líder. Ainda há alguma
dificuldade em perceber que a extrema-direita que temos agora em Portugal, talvez por ser recente, é mais extrema do que o resto da
extrema direita na Europa ocidental.
Quando fala de extrema-direita não está a meter no mesmo saco a IL…?
Não. Estou a falar do partido que mencionou, do campo extra-democrático. Foi um partido que promoveu a realização de uma manifestação, em frente à porta do Tribunal Constitucional, para pressionar, em que houve gente a deixar cordas com nós de forca. Isso seria um enorme escândalo em qualquer país. Na Europa ocidental nenhum outro partido de extrema direita faz isto; nem o Vox em Espanha, nem a Frente Nacional em França, nem as congéneres dos Países Baixos ou da Alemanha. É preciso entender que este partido anda a testar propositadamente os limites que a Constituição garante à ação democrática e o faz com a intenção de se vitimizar se depois houver alguma reação da Lei. Procura ser beneficiado fazendo com que a Lei se não aplique. Eu já escrevi que acho correcto que o TC tenha extinguido a FUP [Força de Unidade Popular, partido criado por Otelo em 1980 e extinto em 2004]. Posicionei-me contra o MRPP ter feito cartazes com inscrições como “Morte aos traidores”, uma linguagem que me parece poder ter consequências indesejáveis. Também me pronunciei quando o candidato José Manuel Coelho, na Madeira, fez um vídeo em que empunhava uma metralhadora. Isto está para lá do que deve ser o jogo democrático. As pessoas que são candidatos e candidatas têm responsabilidades no uso da linguagem e no não promover discursos de ódio. Esse partido o que faz no seu discurso, em relação aos ciganos ou a comunidades como a de Rabo de Peixe, nos Açores, é reiteradamente promover a desigualdade perante a Lei. Temos de abrir os olhos quanto a isso.
Portanto, veria com bons olhos que o Chega fosse ilegalizado. É isso?
Não foi isso que eu disse. O que digo é que a responsabilidade perante a Lei é, em primeiro lugar, desse partido. É ele que deve não violar os
limites da Lei. Se o fizer tem de ser tratado como qualquer outro partido o seria.
Vê algum desgaste no governo nacional do PS?
Em 2019 disse que a ‘geringonça’ 1.0, ou seja, a de 2015 a 2019, deveria ter dado um salto de paradigma em relação à ambição. Deveria
ter feito um acordo multipartidário, multilateral, no papel, para a legislatura seguinte. Em vez dos vários acordos bilaterais, deveria ter
havido um entendimento da maioria parlamentar, na esquerda e na ecologia, negociado durante o tempo que fosse necessário, e que não
deveriam ter sido aceite as pseudo-facilidades que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa deu ao dizer que não exigiria nenhum acordo escrito. Isso não foi benéfico para o País. Como se sabe, o entendimento do primeiro-ministro António Costa foi o contrário, aproveitou a facilidade, o PCP também foi nesse sentido e o BE deu um passo em direção a um acordo directo que nunca percebi se era para ser levado a sério ou meramente táctico. Estamos a pagar o preço dessa falta de previdência em 2019. Se tivéssemos negociado um acordo multilateral para esta legislatura, na qual a esquerda teve a maior votação depois do 25 de Abril e uma maioria parlamentar muito ampla, poderíamos ter uma folha de rota muito diferente daquela que temos. Teria sido possível ir mais longe e estarmos mais robustos, porque numa legislatura há sempre crises. O desgaste atual é governativo mas parlamentar também. Esta Assembleia da República, com a configuração com que saiu das
eleições de 2019, poderia ter tido uma acção mais ambiciosa. Espero que essa lição seja aprendida para as próximas eleições.
A execução do Plano de Recuperação e Resiliência, num País muito dada a polémicas e escândalos com a gestão de dinheiros públicos, coloca-lhe alguma apreensão?
O PRR é muito importante, não só para Portugal como para a própria União Europeia. Significa o concretizar de algo que o Livre defendia
desde 2014, que é a emissão de dívida comum europeia. Verdadeiramente, até mais do que dívida mutualizada, estamos a falar de dívida federal na prática. Para Portugal, importa que seja aplicada de maneira a que não estejamos sempre a viver de balões de oxigénio. Temos de ultrapassar as condições estruturais da economia portuguesa. Precisamos de deixar de ser uma economia baseada numa competitividade de baixos salários para passar a ser uma economia de alto valor acrescentado. Não nos deve bastar a convergência com a média da UE, um objectivo que é sempre uma espécie de jogar para o empate em que acabamos sempre a perder. Portugal deve posicionar-se como uma economia de uma certa vanguarda. Precisamos que o PRR nos permita aproximar de uma economia do conhecimento, avançada e inclusiva. Temos alguns anos para nos aproximarmos disto.
E em relação à pergunta que lhe fiz? Está tranquilo quanto ao processo?
Não, não estou. A tal grande maioria parlamentar de que lhe falava há pouco, e que não temos, seria agora de grande utilidade para ir muito
mais longe e estar mais preparada para fazer a execução destes fundos; fundos esses que devemos entender, de certa forma, eu não digo a última oportunidade, mas uma maneira de saltar de patamar de desenvolvimento em Portugal.
Que futuro há para o Livre na esquerda portuguesa, entre o PS, PCP, Verdes, Bloco, até o PAN?
Há um futuro porque não estava ocupado ainda em Portugal o espaço da esquerda verde europeia, aquele que mais frente faz à extrema-
direita por essa Europa toda. Os verdes da Alemanha estão a competir para ser governo já nas próximas eleições, que serão no mesmo dia das autárquicas portuguesas, a 26 de setembro. Esse espaço de modernidade é um espaço político que o Livre pode ocupar. Partimos de
uma base eleitoral permanente que é acima de 1%, mesmo com as dificuldades que o partido tem tido. A partir do momento em que regressemos à representação parlamentar [o Livre elegeu e perdeu Joacine Katar Moreira], creio que esse espaço político se vai ampliar,
passar para os 2 ou 3 por cento e continuar a crescer. Somos muito diferentes do PCP, do BE ou do PS. Somos a única força de esquerda
que não foi fundada no período revolucionário. Até o BE tem aí as suas raízes. O Livre não é uma esquerda marxista-leninista. O Livre é uma
esquerda libertária, cosmopolita, ecológica, pró-europeia, portanto, um espaço político muito diferenciado.
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