E, de repente, à última hora, é lançado o concurso para o TGV Lisboa-Porto (e a linha Lisboa-Madrid?). Caso não fosse feito agora perder-se-iam 750 milhões de euros de contributo da UE e perder-se-ia a oportunidade eleitoralista (será que o custo-benefício do TGV se justifica?)

Esta maneira de ser, de não decidir, de não fazer, de adiar que caracteriza a inação de parte da classe política portuguesa radica, a meu ver, na perenidade do “sistema” salazarista em muitos agentes políticos. Na verdade, o espírito do “sistema” é secular, antecede Salazar.

Fernando Pessoa, escreveu enquanto homem de negócios, (1926) que nas sociedades progressivas há duas forças – uma que tende a fazer progredir, outra que tende a resistir ao progresso. Quando a rutura de equilíbrio se dá pelo predomínio excessivo da força conservadora, dá-se uma estagnação (in “Organizem-se!”, ed. Filipe S. Fernandes, Oficina do Livro, 2007)

Salazar considerava que percebia o “caracter” do povo português. Escreveu que toda a história de Portugal era uma violenta oscilação ente a tirania e a anarquia. Os portugueses odiavam os seus chefes e atacavam-nos sem contemplações até os derrubarem. Por esta razão, dar ao povo um controle direto sobre o governo era o caminho para o caos. Era preciso encontrar um sistema que impusesse disciplina, mas sem violência e excessos e sem provocar as pessoas (in Futscher Pereira).

Opinião confluente (1943) sobre o caracter português tinha Ronald Campbell, embaixador britânico naquele período: os portugueses são um povo amante da liberdade, mas não aprenderam a usufruir dessa bênção sem abusar. Acrescentava que “é preciso não esquecer que levam 150 anos de atraso”. E a Embaixada britânica escreveu, clarividente, (1944) que “a argamassa que une o regime e confere uma aparência de união nacional às classes educadas é uma hábil distribuição de sinecuras.”

O “sistema” que foi o Salazarismo apoiava-se na estagnação, no atraso, em manter atrasado, e nada fazer ou autorizar que incomodasse o poder ditatorial. Este era o pensamento estratégico de Salazar. O atraso era bonito. As lavadeiras no rio, supostamente felizes, Beatriz Costa cantando, “água fria, da ribeira, água fria que o sol aqueceu”.

Esta marca do pensamento e do modus faciendi de Salazar perdura entre muitos portugueses, desde logo entre muitos que ocupam cargos políticos que aplicam consciente ou intuitivamente o “sistema” de Salazar. Não há verdadeiro progresso (as chamadas “reformas”) para evitar o “caos” e a “anarquia”, leia-se, que ponha em causa o poder das sinecuras ou das corporações.

Os excelentes livros de Bernardo Futscher Pereira sobre a história diplomática de Salazar (D. Quixote, 2012, 2017, 2022) são pródigos em exemplos da diplomacia canhestra, lenta, penalizadora de Salazar e fatalmente destinada ao fracasso depois de milhares de mortes. Aconteceu em abril de 1974.

Em “A Diplomacia de Salazar 1932-1949”, o autor conta a atribulada relação de Portugal com os EUA e com o Reino Unido durante a Segunda Guerra. Depois de falhada a paciente sedução diplomática dos Aliados, foi sempre sob pressão ou ameaça mais ou menos velada de sanções ou até de invasão das ilhas que Salazar tomou decisões, sempre no último minuto, favoráveis à pretensões Aliadas nos dois temas em que Portugal detinha soberania – volfrâmio e Açores. O protelamento nenhuma vantagem trouxe para Portugal.

Com teimosia narcísica Salazar negava amiúde opinião diferente, em geral bem informada, fundamentada, atual e visionária de seus colaboradores mais próximos, como o embaixador em Londres Armindo Monteiro, um “progressivo” anglófilo, ou até mesmo o presidente Carmona.

Adiou por anos decisão sobre o pedido premente do nosso mais antigo aliado e dos americanos – que Salazar detestava – para construção e utilização de aeroportos em Santa Maria e Lages. E continuou a vender volfrâmio a Hitler, embora em quantidade reduzida, até ao último momento.

Com a eclosão da guerra colonial, o mesmo espírito se manifestou, persistiu e informou a teimosia em não reconhecer e atuar sobre o “vento da mudança” anunciado no discurso de Harold MacMillan (1960), um ano antes dos massacres em Angola, sobre a independência das colónias europeias em África. Nem a proposta de um instituto universitário para Angola e muito menos a introdução de um imposto sobre as empresas (atual IRC), como por exemplo a Diamang, feita pelo “progressivo” general Venâncio Deslandes, Governador Geral de Angola, foi aceite e levou à sua precoce demissão.

Esta mentalidade atrasada, que Salazar justificava com a afirmação serôdia de que a sua política servia para afirmar a independência nacional e a suposta neutralidade, custou muitas vidas Aliadas e bens perdidos no Atlântico. Mesmo quando a derrota dos Nazis era já evidente persistia na visão de um império condenado pela história.

No fim da guerra, quando os americanos pediram para utilizar também Lisboa para escala dos seus aviões, Salazar demorou tanto tempo a dar resposta positiva que outros aeroportos europeus passaram a ser utilizados. O mesmo pedido foi ao mesmo tempo feito a Franco, um admirador de Hitler, que autorizou de imediato, no dia seguinte.

Quando foi conhecida a morte de Hitler, por quem Salazar não nutria simpatia, fez, todavia, a afronta internacional de mandar colocar a bandeira nacional a meia-haste. Mesquinha arrogância contra o mundo livre.

Hoje, quem nos empurra para fora da modorra são os nossos aliados, a bendita União Europeia, e BCE, OCDE, NATO. Mas não bastam. É preciso que os portugueses entendam o mundo onde estamos metidos e sejam exigentes nas suas escolhas políticas: qualidade, transparência, responsabilidade, audácia.