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Se o BCE parasse, o custo que os países teriam de pagar seria certamente maior

António Nogueira Leite detetou sinais preocupantes quanto à inflação ainda no ano passado, mas considera que a política do BCE envia sinais positivos aos agentes europeus. Em Portugal, há almofada financeira para acomodar incerteza de 2023, mas investimento tem de recuperar.
16 Dezembro 2022, 00h01

Num contexto altamente incerto marcado por uma guerra na Europa e inflação em níveis não vistos este século, António Nogueira Leite defende a intervenção do Banco Central Europeu, isto apesar de ter defendido uma subida de juros bastante antes da instituição ter seguido por essa via, e projeta um exercício orçamental difícil, mas sem grandes sobressaltos em 2023.

O Banco Central Europeu (BCE) subiu os juros pela primeira vez agora em 11 anos e a tendência é de mais aumentos. Que avaliação faz do papel do banco?
Para mim é claro que é uma inflação despoletada por um choque de oferta, mas estava latente num conjunto de problemas do lado da procura que foram muito amplificados – e Portugal aqui foi muito parcimonioso – com um estímulo enorme da procura através de programas generalizados que serviram para resolver os problemas das pessoas mais desprotegidas, mas que também beneficiaram as pessoas que não necessitavam deles. E os choques do lado da oferta ocorrem num ambiente que já é propício a que qualquer ignição gere um processo inflacionista. De facto, temos um problema que carece de utilização da política monetária, sob pena de gerarmos um problema maior, que implique uma política monetária mais dura, durante mais tempo, com uma política fiscal em consonância – o que significa um custo, em termos de produto e de desemprego, maior do que atuando num momento que pode não ser o ideal, mas que ainda é bastante razoável, do meu ponto de vista. É certo que os técnicos, honestamente e com modelos bastante sofisticados, não chegavam a estas conclusões; portanto, acho que há uma decalagem em relação aos Estados Unidos, mas eles atuaram um bocadinho tarde e a Europa também, mas não tão tarde que gere um problema significativamente maior do que ele teria de ser se atuasse quando fosse razoável avançar. Acho que o BCE percebeu que havia um problema e criaram as condições para atuar no verão. Fizeram-no de uma forma prudente, fundamentada e, portanto, são bons sinais.

Os países do Sul têm pedido alguma contenção no processo.
É evidente que os países muito endividados beneficiaram muito da política acomodatícia anterior e agora vão ter uma situação em que ter grandes dívidas é claramente um problema maior do ponto de vista do serviço da dívida; mas, por outro lado, têm um fator que os ajuda, a inflação. Percebo, no plano político, estas pressões que são feitas. Também um pouco para que as opiniões públicas, quando os efeitos da política de estabilização tiverem custos reais, não se virarem contra os governos nacionais. Mas eu acho que se, efetivamente, fossem ouvidos e o BCE parasse, o custo que os países viriam a pagar seria certamente maior.

Em termos de política orçamental, que espaço há para os governos nacionais atuarem?
Há algum espaço, porque os governos beneficiaram do impacto inicial, que foi muito significativo, da inflação sobre as receitas. Portanto, Portugal tem aqui uma almofada muito grande e, como no próximo ano ainda vamos ter inflação relevante, certamente continuamos a ter todos os ingredientes para uma evolução muito favorável, do ponto de vista do Ministério das Finanças, da receita fiscal. Por outro lado, há muitos anos que há uma parcimónia imensa com o investimento público, até excessiva. Portanto, acho que o Governo vai continuar a estar muito comprometido com uma política de rigor financeiro. Eu não estou a dizer que é a melhor política fiscal possível, porque depois no detalhe há muitas coisas que, do meu ponto de vista, podiam ser feitas de outra maneira. Agora, do ponto de vista global, há, claramente, uma postura de muito cuidado, que é positiva. Nesse aspeto, acho que o Governo tem uma atitude que é claramente diferente de outras no passado, com outros protagonistas, e nós beneficiamos globalmente.

Teme algum impacto para a economia, sobretudo para a banca, da subida de juros e das prestações dos créditos das famílias?
Vejo mais risco, ou seja, mais dor nas famílias do que eventualmente nas finanças públicas ou na banca. Portugal tem um problema único na Europa, um valor incomparavelmente mais elevado que a generalidade dos países de hipotecas com taxa variável. Por outro lado, há muito mais supervisão e aparentemente os créditos terão sido dados de acordo com as regras do BCE, o que significa que há determinadas ideias quanto à diferença entre o crédito que é cedido e o valor dos ativos, e o valor dos ativos não tem diminuído – até, nalguns casos, os bancos estarão mais confortáveis. Ao mesmo tempo, fizeram testes de stress, mas é preciso ver se eram os testes de stress que interessava, porque estou a ver demasiada fragilidade de muitos agentes, nomeadamente devedores, num período ainda muito precoce da subida da taxa de juros. A gestão da banca e a tomada de risco é muito melhor agora que foi em algum período qualquer do passado, os bancos são muito mais bem geridos, e o processo de tomada de risco é feito de uma forma muito mais adequada, com instrumentos muito mais sofisticados e com uma análise muito mais criteriosa. O Governo neste momento esteve bem, até porque há um segundo efeito: as pessoas têm de sofrer as consequências das suas decisões, e o que estamos a viver neste momento não é uma situação anormalmente complicada que não podiam antever.

Parece-lhe que as medidas de apoio apresentadas pelo Governo são suficientes?
A OCDE lembrou recentemente que os apoios têm sido pouco dirigidos para quem efetivamente precisa, portanto, muitas pessoas sem necessidade têm beneficiado de apoio e se calhar não estamos a apoiar o suficiente as pessoas que efetivamente precisam. Admito perfeitamente que as famílias numa situação mais frágil ou as empresas em sectores muito específicos, pela razão do sector energético, têm sido apoiados e possam ainda ser um pouco mais apoiados; mas temos de ter cuidado em termos da conjugação com a política monetária, não ter uma política orçamental expansionista. É muito importante fazer um targeting das políticas de apoio a quem precisa.

O Governo tem uma previsão de crescimento que muitas instituições e analistas têm classificado como otimista. Que avaliação faz das previsões de crescimento do Executivo?
Eu sou um bocadinho mais pessimista do Governo em termos da evolução do produto, mas, dada a tradição orçamental dos últimos anos que começou com o professor Centeno, este é um orçamento que me parece expectável. E esperamos que na parte do investimento seja efetivamente executado, porque o Estado tem o seu stock capital bastante depauperado e isso depois reflete-se sobre todos nós. Um aspeto onde acho que o OE continua a ser bastante cauteloso é a despesa operacional, que se mantém baixa e até tem vindo a cair. Ora, não conseguimos fazer omeletes sem ovo, não conseguimos prestar bons serviços sem investir neles e, porque, a certa altura, quando não há meios, pura e simplesmente não se pode ter serviço. Não é só atirar dinheiro aos problemas; por exemplo, podia-se aproveitar a transformação digital como pretexto para começar a fazer uma verdadeira reforma dos processos da Administração Pública.

Isto reforça um pouco a importância dos orçamentos plurianuais…
Em termos gerais, era bom que houvesse compromissos plurianuais, obviamente corrigíveis. Também seria importante cortar o mais possível o caráter histórico do processo orçamental: fazemos tudo depender do ano anterior, criamos uma rigidez (porque nunca foi alterada) que faz com que o orçamento, se calhar, tenha rubricas onde paralelamente faltam meios e outros onde estamos a alocar meios que não devíamos estar alocados, porque já não há procura para o resultado dos meios que estamos a afetar. Era muito importante fazer esse exercício, uma perspetiva plurianual. A reestruturação do Estado não é vender, não é passar para o sector privado; é gerir o público de uma forma ligada àquilo que se espera do Estado hoje, e que o Estado está a realizar hoje, não é o que o Estado está a realizar há 20 anos.

OPRR deveria ter algum impacto nesta dimensão, mas os atrasos têm dificultado a sua operacionalização. Como olha para esta situação?
Há o risco claro de a UE e o Conselho [Europeu] não alinharem num adiamento, que, aliás, o Governo espanhol já começou a falar. Acho que vai ser difícil, primeiro, porque há países que vão executar; depois, também temos o Portugal 2030; finalmente, será muito difícil, já que a Covid-19 passou há tantos anos, justificar um programa que tinha de ser feito em tempo para resolver um problema causado pela pandemia. Mais uma vez, temos aqui um conjunto de fatores: primeiro, o quadro da contratação pública é muito difícil de executar e já há alguns atrasos; depois, a inflação leva alguns dos projetos de investimento a necessitar de alterações. Temos que, por um lado, acelerar com os mecanismos que temos, mas que sabemos que são difíceis, porque partimos com um processo em que estamos um bocadinho maniatados. Construímos todo um edifício em que é muito difícil responsabilizar a posteriori as pessoas, e, portanto, criamos imensos controles a priori. Mas estou convencido que outros partidos no Governo estariam neste momento a ser atacados pelos atrasos na execução do PRR.

Qual será o principal desafio para a economia nacional em 2023?
Primeiro, não utilizar paliativos para certos problemas que não só não os resolvem, como os vão deteriorar. Por exemplo, esta ideia, havendo uma enorme e acumulada falta de oferta de habitação em Portugal, em que a nova oferta passou a ser irrelevante em relação ao que era a nova oferta no passado, de penalizar ainda mais a oferta com limitações de preços – isso simplesmente vai matar o sistema. Vai agradar os populistas, mas vai prejudicar as gerações atuais e aqueles que vão precisar de casa nos próximos anos. O principal desafio é não ceder aos populismos nas medidas que se vão tomando e pensar que as medidas têm que resolver os problemas agora sem onerar o futuro. No resto, acho que desbloquear os problemas que nos permitam aproveitar os fundos, mas estou mais preocupado em não fazer disparates, porque a aflição muitas vezes leva as pessoas a fazer disparates, quer na sua vida pessoal, quer quando estão a mexer com a vida da coletividade.

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