A União Europeia (UE) atravessa uma crise existencial?
Talvez não seja exagerado dizê-lo. Um dos principais pressupostos em que assentava a sua estabilidade, a solidariedade transatlântica e o papel dissuasor da NATO, está a ser crescentemente posta em causa. Quando a principal potência militar mundial e maior aliado dos Estados-membros da UE passa a tratá-la com desconfiança, há sérios motivos para preocupação. A UE ganhou o prémio Nobel da Paz em 2012 pelo seu contributo para a paz e reconciliação do continente europeu, mas sem a NATO esta dificilmente teria sido capaz de resistir ao comunismo soviético no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, nem teria tido a capacidade agregadora e de atração suficientes para a estruturação de um projeto e de um modelo económico, social e político tão ambicioso como o que hoje temos. Diria que a crise, para usar o seu termo, tem a ver com sentirmo-nos hoje um pouco mais sós no mundo. Mas não lhe chamaria existencial. 74% dos europeus acreditam que o seu país beneficia da pertença europeia.
Comecemos pela guerra na Ucrânia: os EUA são a chave da solução, a UE, por mais que se esforce diplomaticamente, está nas mãos da intervenção militar americana… E esta dependência levará talvez mais de uma década a mudar.
Os EUA, para serem a chave da solução, não podem ser parte do problema. É manifesto que o voluntarismo de Donald Trump não tem sido apto a resolver o conflito e que o Kremlin não parece impressionado com os prazos e as condições que a Casa Branca lhe impõe. Enquanto os EUA se confrontam com os limites das próprias ameaças e provam, a cada dia que passa, que ceder a ditadores expansionistas não trava o seu impulso, a UE deve continuar a apoiar a Ucrânia com tudo o que puder. Desde o início da guerra, a União já contribuiu com cerca de 198 mil milhões de dólares em apoio humanitário, militar e financeiro.
Perante a ameaça de cortes no apoio americano, não ficámos de braços cruzados, criámos o Fundo de Segurança para a Europa (SAFE). Em maio de 2025, os ministros da UE aprovaram a criação de um fundo de 150 mil milhões de euros para reforçar as capacidades de defesa europeias, permitindo empréstimos conjuntos para projetos de defesa colaborativos. Apresentámos o Readiness 2030: uma iniciativa estratégica proposta pela Presidente da Comissão Europeia que visa mobilizar até 800 mil milhões de euros para fortalecer as infraestruturas de defesa da Europa em resposta a ameaças geopolíticas. Propusemos ainda utilizar os Ativos Russos Imobilizados: ativos do banco central russo congelados, principalmente na Europa, para apoiar a Ucrânia, especialmente diante da incerteza do apoio dos EUA.
Espanha recusa-se a subir a despesa militar até aos 5pc do PIB. Como resolver estas diferenças entre os parceiros europeus?
Os membros da NATO têm posições diferentes e alguns mantêm entre si verdadeiros conflitos – veja-se a Grécia e a Turquia –, mas todos estão cientes dos riscos que correm, ainda que os geograficamente mais próximos da Rússia o compreendam melhor e o sintam mais diretamente. Mas a guerra de hoje também é travada atrás de computadores e a sua natureza híbrida torna a geografia apenas um dos aspetos a ter em conta.
Compreendo que os gastos com a defesa implicarão a retração de outros investimentos públicos muito importantes. Espero que da Cimeira da NATO resulte uma solução realista, exigente, mas nos limites da razoabilidade, que permita aos Estados o equilíbrio possível e o amparo das populações, sobretudo das mais carenciadas. Recordo que o PSOE foi inicialmente contrário à presença de Espanha na NATO e que Felipe González acabou por inverter o rumo, compreender a sua importância e convocar o referendo de 1986 que conduziu à permanência espanhola na organização, tendo ameaçado que se demitiria se o “Não” ganhasse. Seria profundamente injusto comparar González com Pedro Sánchez, mas Espanha fará o esforço que tiver de fazer, como todos.
O objetivo de Trump não passará também por acelerar a possível fractura do projeto europeu?
Trump não se tem assumido como parceiro e os seus avanços e recuos não recomendam que as suas palavras sejam vistas como estando escritas na pedra.
A UE não deve desistir da relação transatlântica, mas deve compreender o modo como esta administração a vê e responder-lhe proporcionalmente sempre que tal se justificar. Os cortes na ajuda humanitária e na ajuda externa deixam a sensação de que Donald Trump quer criar esse caos. Um caos que sabe que ficará para a União Europeia. Os países dos Balcãs, por exemplo, beneficiavam dessa ajuda americana. A suspensão do financiamento da USAid teve um impacto significativo nos meios de comunicação independentes na Bósnia e na Sérvia, por exemplo. Na Macedónia do Norte, os cortes puseram em causa projetos conjuntos que iam desde o apoio à sociedade civil à reforma judicial. São todos países candidatos à adesão… Estávamos acostumados a que a Rússia fosse contra o alargamento da UE. Agora os EUA também são. Noutro ponto do globo, o desfinanciamento da ajuda externa americana em África acarreta o risco de crises migratórias e sanitárias em simultâneo. O continente europeu viveria um ambiente de policrise. É esse o maior risco deste tempo.
A guerra das tarifas está para durar. Trump voltou a adiar a concretização das ameaças até ao fim de julho. Na sexta-feira passada, Giorgia Meloni telefonou, in extremis, ao presidente americano para tentar evitar a rutura das negociações. Meloni é um ativo para a União ou é fator interno de pressão na UE, uma espécie de longa mão americana?
Meloni é a primeira-ministra de um Estado-membro da UE cada vez mais relevante à escala internacional e europeia. Ao contrário de outros na direita italiana, Meloni condenou a agressão russa e tem procurado agir como ponte entre Bruxelas e Washington. São tão poucos os interlocutores com essa capacidade que seria temerário dispensá-la. Recorde-se que a primeira capital europeia visitada por António Costa, depois de ter sido eleito para a presidência do Conselho Europeu, foi Roma, apesar de Meloni ter anunciado que não o apoiava.
Qual o resultado a que pensa será possível chegar nestas negociações?
Qualquer resposta será um mero palpite. Há abertura europeia para negociar, mas não há receio de ripostar se necessário. A Europa precisa de saber negociar com um Presidente que vê menos segundo uma grande angular, mas mais caso a caso – de forma uni ou bilateral.
De que forma é que o Parlamento Europeu (PE) acompanha e condiciona as negociações com os EUA?
O Parlamento Europeu acompanha de muito perto as negociações e, mais do que condicionar as negociações, procura abrir canais de diálogo, debater com os americanos e contribuir para uma estabilização das relações EUA-UE, nomeadamente nos planos comercial e de segurança e defesa. Os EUA precisam de aliados e irão dar-se conta cada vez mais disso mesmo à medida que o seu soft power se for esfumando e outras potências surjam procurando disputá-lo.
É uma das caras novas do PE. Qual a sua opinião sobre o trabalho que é feito? A ligação aos eleitorados nacionais parece frágil.
Há muito trabalho a fazer, sobretudo para explicar aos cidadãos como funciona a UE e para que serve o seu voto e a atuação dos portugueses à escala europeia. Procuro fazer esse trabalho de esclarecimento junto das escolas e associações que vou visitando pelo país. Reconheço que, tantos anos passados depois de 1986, já deveríamos ter sido mais capazes de integrar coletivamente essa pertença e esse nível de participação política. Ao não o fazermos, perdemos todos.
A Comissão Europeia deveria ser eleita por sufrágio direto? Sê-lo-á algum dia?
Uma medida desse tipo concentraria demasiado poder numa única instituição e tenderia a secundarizar os Estados-membros e os seus líderes. Introduziria um profundo desequilíbrio na arquitetura institucional desenhada nos Tratados. Considero-a não só errada, como até perigosa e passível de criação de crises auto-induzidas que a UE dispensa. Teríamos sempre o problema de países grandes vs. países pequenos. Países maiores, com maior população e meios de comunicação mais dominantes (como Alemanha, França e Itália), teriam muito mais influência no resultado do que, por exemplo, Portugal. No limite, eleitores de países pequenos ou com menos visibilidade sentir-se-iam ainda mais distantes das decisões da UE.
Von der Leyen está a tomar as decisões mais adequadas neste novo mandato?
Da guerra na Ucrânia (com a apresentação do Livro Branco para a Defesa e o ReArm Europe), à transição verde e competitiva (com a apresentação do Pacto da IndustriaLimpa), à simplificação regulatória e à atenção redobrada às crises sociais (e aqui destacaria a criação de um Comissário para a Habitação): Von der Leyen parece-me ter as prioridades alinhadas com a realidade europeia e global. O que vemos é uma estratégia mais dinâmica, menos perene no que toca a parcerias, mas ao mesmo tempo uma Europa mais convicta do que tem a fazer; do que tem a fazer na economia, na defesa, no ambiente. As crises demonstram a capacidade das lideranças. Acredito que temos três bons Presidentes nas Instituições Europeias.
António Costa: o Conselho Europeu ainda parece mais distante das pessoas. Tem utilidade política, mas não tem existência política junto das pessoas…
Não foi isso que foi sentido aquando da pandemia, em que o Conselho Europeu assumiu um papel liderante na formação da resposta europeia por via do NextGeneration EU. Ao contrário dos mais federalistas que procuram ver na Comissão Europeia o executivo único da UE, o Conselho Europeu tem-se afirmado como principal órgão do rumo e das opções políticas da UE, em particular a nível geopolítico. Não convém desvalorizar o que resulta das reuniões em que os Chefes de Estado e de Governo estão sentados à mesma mesa. E seria um absurdo tornar o Conselho Europeu num mero notário da escolha do Presidente da Comissão Europeia.
Trump estará na cimeira da NATO, marcada para 24 de junho. O que podemos esperar desse encontro?
Podemos esperar o inesperado e que, apesar dele, prevaleça um módico de bom senso.
A UE tem graves problemas de competitividade, tem regras e regulamentos a mais… que se agravam com o chamado ‘gold plating’. Essa limpeza de regras a mais vai ser conseguida?
A limpeza [dos regulamentos], como lhe chama, está em curso. Os colegisladores concordaram em adiar a aplicação de exigências contidas em instrumentos legislativos mais polémicos, como a CSDDD e a CSRD, visando facilitar a vida administrativa das empresas, e vêm apresentando, a um ritmo muito significativo, outras propostas com o mesmo intuito simplificador dirigidas às small mid caps, às empresas agrícolas. Esta semana, por exemplo, foi apresentada a estratégia para Start-ups e Scale-ups.
A imigração é um assunto que preocupa a maior parte das sociedades europeias, mesmo quando não há problema algum. Qual a sua opinião?
Existe um problema muito concreto e sério que carece de solução. A ideia de que se trata de meros caprichos dos eleitorados não colhe face aos problemas humanitários e de segurança com que as sociedades europeias se confrontam. É fácil dizer que não existem quando vivemos longe deles. Sabia que 14 dos 27 estados-membro da UE pediram a suspensão do espaço Schengen no último ano? Não são certamente todos de extrema-direita.
É terrível e absurdo o que está a acontecer em Gaza. A pressão da UE sobre o governo de Israel só se intensificou esta semana. Até a Alemanha acordou. Já é tarde demais?
Nunca é tarde de mais. E a pressão europeia sobre Israel não é de agora. Se há zona do globo em que o terrível e o absurdo andam de mãos dados é aquela. Achar que o Hamas se transformou numa organização humanitária e que o Estado de Israel é nazi são caricaturas que temos de repudiar com veemência. Mas ninguém de boa-fé pode caucionar o que se passa em Gaza. Ninguém. Ser amigo de Israel e profundo respeitador da sua história e da sua democracia e do seu direito a defender-se não significa subscrever todos os atos do seu governo. Não confundo um e o outro. E a brutalidade ultrapassa largamente o que se pode considerar legítima defesa. O que se está a passar em Gaza também se tornará um risco de segurança para os israelitas e europeus.
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