De vez em quando o país tenta ser levado a sério e, por isso, vai tentando fazer disparates dignos de um filme de Monty Python. O fascinante caso da “salada russa” da Câmara de Setúbal é meritório sucessor do sorriso do doutor Fernando Medina quando debateu o OE deste ano. Poderia ter piada, mas é um número mal maquilhado. Este é o Portugal dos pequenitos. Não estamos sozinhos.

A União Europeia, a começar pela Alemanha, mostra que continua a achar que é o sol que ilumina a inteligência mundial e, na realidade, é um espantalho que já não assusta ninguém. A questão da Ucrânia será resolvida pelos Estados Unidos e pela Rússia, quando for oportuno. E a Europa continuará a comprar gás com rublos.

 

 

O debate político nacional é, por norma, um cardápio inalterado de ataques, contra-ataques e iniquidades várias. Fala-se de reforma mas o retrato não é feito a cores. É despejado a preto e branco, para se ver melhor as rugas do país: o poder de compra dos portugueses vai-se esfumando, a inflação ameaça corroer qualquer sonho de Portugal se aproximar dos países mais ricos da Europa, a riqueza esfuma-se após cada carinhoso PRR. O Estado não se reformou, antes se tornou ferrugento. Desertificou-se a nação e afastaram-se os cidadãos do Estado. A saúde está nos mínimos. Restam cinzas.

Criou-se pelo contrário, nestes anos, uma elite que vive da parasitagem do Estado e que tem verdadeiro peso nele. Na generalidade dos casos não têm nada a ver com sectores que criem riqueza: apenas realizam negócios ou facilitam-nos. É certo que algum tecido industrial e agrícola se reformou. Surgiram novos polos mas isso é algo que entra em contradição com o desaparecimento dos serviços do Estado no país. Os portugueses empobreceram e muito, porque o trabalho é apenas visto como um custo dispensável. Todos fazem crer que o trabalho não tem valor. E para serem valorizados os portugueses têm de emigrar.

Esta é uma ideologia muito perigosa. Antero de Quental já temia isso quando escreveu há mais de um século: “Portugal ou se reformará, política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”. É que a crise portuguesa não é financeira. É de coesão social, de criatividade intelectual, de debate sobre o modelo de futuro. E não apenas de fingir querer fazer.

A situação é tão insustentável como pedir a quem não é faquir manter-se um dia em cima de uma cama de facas. O país acredita alegremente que “cresce” economicamente e o Governo faz disso a sua fé. Mas o horizonte dá as respostas: a crise vai chegar e com muita força. Há um Adamastor à nossa espera. E uma convulsão político-partidária no ar.

O fascinante caso de Setúbal é a prova de que o PCP, que ainda acredita que existe a União Soviética, está a implodir e que nas cinzas de muita esquerda descontente vai nascer, a prazo, um outro universo partidário. Ao centro, o PSD ou se reforma ou será uma sardinha assada para a Iniciativa Liberal e para o Chega. E o PS, depois do seu estado de graça, há-de conhecer o seu momento “Sócrates II”.

Até lá, o país, como sempre alimentar-se-á de impostos, aqueles que vão destruindo a classe média, outrora o equilíbrio da sociedade nacional e que distribuía votos por PS e PSD. O ministro das finanças de Luís XIV, Jean-Baptiste Colbert: “A arte da tributação consiste em depenar um ganso para conseguir o maior número de penas com a menor quantidade possível de assobios”. Os gansos, no caso, são os portugueses. Como já eram antes deste OE e como vão continuar a ser depois dele.

A única dúvida é saber como continuar a servir ganso mudo aos investidores internacionais. Os gansos sempre rimaram com tansos. E, pelo caminho que tudo isto leva, vão continuar a rimar. O aumento do imposto continua a ser a única solução conhecida pelos Governos para tapar o sol com a peneira dos seus sucessivos disparates. Em Portugal tudo se resolve pela via do imposto sobre os mesmos de sempre e não através de alterações estruturais que motivem a economia e os próprios portugueses.

Seria Eça de Queiroz que, como se sabe, pouco apreciava esta comovente sinfonia nacional, quem traria para “Os Maias” a pergunta de sempre: o empréstimo faz-se ou não se faz? E Cohen respondia: “absolutamente”. Afinal, “a única ocupação mesmo dos ministérios era esta – ‘cobrar o imposto’ e ‘fazer o empréstimo’. E assim se havia de continuar…”. A questão não era necessitar ou não do empréstimo, mas sim fazê-lo sem parecê-lo. Era uma tradição e isso era uma força superior contra a qual nenhum ministério conseguiria lutar. O doutor Medina parece ser um Cohen dos nossos dias. Mas sem o brilhantismo do seu discurso.

A questão é outra. Desde há séculos que somos incapazes de criar um modelo económico para o país, para que não estejamos sempre a beira do abismo. E isso deriva também da falta de líderes com visão. Porque sempre se gastou o que não se tinha e raramente se soube acumular capital. A partir do século XVIII, enquanto nas principais capitais europeias se iam constituindo centros onde está disponível capital, Portugal foi ficando cada vez mais dependente destes recursos externos. Não nadando em prosperidade económica nem em dinheiro, viveu de subterfúgios e de empréstimos.

Em 1890, Anselmo de Andrade, que seria o último ministro da Fazenda da monarquia, escrevia: “Tem (a dívida) quatro séculos de existência e começou logo com bons juros, dobrando o dinheiro em quatro anos, como se dizia na forte linguagem do tempo. No fim de cada gerência, sai-se sempre empenhado, pagando-se mais tarde, quando se podia. Fechava-se uma série e abria-se outra. Quando a dívida flutuante, que era o recurso de cada dia, não dava para mais, consolidava-se, se alguma paragem de crédito permitia a sua consolidação”. Nunca um povo descobriu tanta riqueza e continuou tão pobre.

O Estado, ocupado desde há séculos por uma clique que se reproduz entre si, nega aos portugueses tudo isso. Somos escravos com a liberdade de pagar impostos a um Estado que lhes dá cada vez menos em troca. Os impostos, aliado à burocracia e à inexistência de justiça torna aquilo que poderia ser um pequeno país paradisíaco num gigantesco purgatório.

 

A nossa cidade

David Simon foi o autor, há uns anos, de uma das melhores sérias de televisão de todos os tempos: “The Wire”. Desde então tem tido carta branca da HBO para ir olhando para a América e para a sua sociedade decadente. Não são visões fugazes: são cruas e letais. É isso que o torna tão especial no contexto criativo televisivo. Agora ele está de regresso à HBOMax, recuperando a sua preferida Baltimore, onde encontra a decadência perfeita da América. “We Own this City” apenas alarga a sua depressão: Baltimore está pior do que nos tempos de “The Wire”. Não é uma visão agradável.

“Quando tens de lutar, tens de ganhar…se perdermos as lutas, perdemos as ruas”, diz o agente Wayne Jenkins a agentes jovens na cena inicial da série. É, de alguma forma, uma maneira de justificar todos o tipo de pecados, incluindo a brutalidade policial, racismo e mesmo o roubo. E isso faz com que todos se sintam do lado certo da luta. A ideia de Simon é ilustrar a ascensão e queda da Gun Trace Task Force de Baltimore, através do retrato de pessoas que que estão no centro do escândalo.

A série é baseada num livro de não-ficção do jornalista Justin Fenton e Simon conta com um nome de peso do policial, George Pelecanos (com quem já tinha trabalhado em “The Wire”). É pois um trabalho de ficção televisiva rigorosa baseada em factos reais. É um tema rude, tratado sem açúcar, e que terminará ao fim de seis episódios com um grupo de “maus rapazes” detrás das grades.

O centro de acção é 2015. Na altura os cidadãos pedem justiça para Freddie Gray, um jovem negro que morreu em circunstâncias suspeitas quando estava detido pela polícia. Há confrontos, no meio do ressurgimento do tráfico de drogas e do crime violento. Numa cidade de 600 mil habitantes houve 342 homicídios apenas num ano.

Pressionados, os comandantes de Baltimore viram-se para o sargento Wayne Jenkins e para a sua unidade de elite, para tirar armas e drogas das ruas. Mas, no meio disso, uma conspiração vai crescendo no departamento da polícia. Em vez de lutar contra a crise, Jenkins decide explorar isso a seu favor, metendo no bolso milhares de dólares que rouba onde pode e ao mesmo tempo coloca evidências falsas para se ilibar. O resultado é mais conflito e a morte de um polícia que iria depor contra a unidade.

Duas décadas depois de “The Wire” o olhar é um pouco diferente: esta série era sobre as conexões entre a polícia, o tráfico de droga, os portos, a polícia e o jornalismo. “We Own this City” examina um grupo específico de polícias corruptos. É um grande desafio, porque Simon e Pelecanos acham que tem de haver uma outra forma de olhar para a polícia: nem todos são corruptos, como por vezes se afirma. É necessário uma outra forma, mais sensata e moral, de descodificar esse território minado onde se movem perdidos, especialmente em cidades problemáticas como Baltimore. Daí a beleza de “We Own this City”.

 

Mil sensações

A Índia é o país das mil cores e das milhares de sensações. É também a pátria de deuses que explicam o caminhar do mundo. Se Brahma é o deus da criação do universo e é considerado um dos principais deuses indianos, Shiva é uma força de restauração capaz de criar e destruir tudo o que está no seu raio de acção.

A ideia do Indra Trio (o pianista Luís Barrigas, o contrabaixista João Custódio e o baterista Jorge Moniz), neste seu novo registo, “Shiva” (CD 2022) não é ser um som de destruição, mas sim de conexões, de rios que se juntam em busca de uma foz tentadora e abrangente. É, claro, o jazz que une estas margens que aqui comprimem as composições e que, ao mesmo tempo, as libertam para que a criatividade se liberte.

Este é um disco de aromas vários no panorama do jazz nacional, fruto também da herança musical que os integrantes carregam. A simplicidade dos temas esconde a sua complexidade descomprometida (oiça-se “Serpente” ou “Shiva”, por exemplo), que acaba por fazer com que o ouvinte descubra sempre algo que escapou a uma primeira abordagem. É nestas texturas coloridas, onde a imensidão das influências indianas são um bom princípio de equilíbrio e descoberta, que se constrói um disco sedutor e que procura reconstruir, de forma benigna, o que conhecemos.

 

A terra dos homens livres

A independência dos Estados Unidos da América foi um assunto delicado. Mesmo depois das hostilidades militares se terem iniciado em 1775, muitos ainda consideravam quase um “pecado” o corte total com a Grã-Bretanha. Isto apesar da resistência às leis tirânicas de Londres e dos impostos injustos.

Mas um panfleto de singelas 47 páginas iria acelerar o sentimento de ruptura: “Senso Comum”, escrito por Thomas Paine, inicialmente publicado em Filadélfia em 1776, era um libelo contra a injustiça do poder definido por um rei. E o autor utilizava o argumento de que os americanos tinham a oportunidade única de mudar o curso da história, crindo um novo tipo de governo no qual os cidadãos eram livres e tinham o poder de se governar a si próprios.

Era uma mudança total de paradigma. Como escreve Bertrand Russell na apresentação deste livrinho: “A influência de Paine no mundo foi dupla. Durante a Revolução Americana inspirou entusiasmo e confiança, muito contribuindo, assim, para facilitar a vitória.”  Como argumentava Paine: “Alguns autores têm explicado assim a constituição inglesa: o rei, dizem, é uma coisa, o povo outra; os pares constituem uma câmara em nome do rei, os Comuns, uma câmara em nome do povo. Mas isso possui todos os sinais de uma Câmara dividida contra si própria, e, embora agradavelmente dispostas, as expressões, uma vez examinadas, afiguram-se inúteis e ambíguas”.

Para Paine, esse era o momento de começar o mundo outra vez. Na altura vendeu 500 mil cópias nas colónias britânicas. Era um murro no estômago de Londres. Ao promover a ideia do excepcionalismo americano e a necessidade de criar uma nova nação para realizar essa promessa, o panfleto de Paine pressionava os líderes da revolta para declarar a independência. E mesmo após a vitória sobre os britânicos as suas ideias persistiram.

Não era uma ideia agradável para muitos, como de resto não seria a sua vida. Como recordou Russell: “Thomas Paine, embora proeminente em duas revoluções e tendo quase sido enforcado por tentar fazer uma terceira, está a tornar-se, nos nossos dias, uma figura um tanto apagada.

Para os nossos bisavós, ele era uma espécie de Satanás terreno, um infiel subversivo, rebelde tanto contra o seu Deus como contra o seu rei. Incorreu na profunda hostilidade de três homens que, em geral, não estavam de acordo: Pitt, Robespierre e Washington. Destes, os dois primeiros procuraram levá-lo à morte, enquanto o terceiro teve o cuidado de se abster de adoptar medidas destinadas a salvar-lhe a vida. Pitt e Washington odiavam-no porque era democrata; Robespierre, porque se opôs à execução do rei e ao Reinado do Terror”. Ou seja, incomodou demasiada gente, em demasiados lugares. Nada mau. Quando chegou à América em 1774 testemunhou as condições propícias para uma revolução.

“Senso Comum” foi o resultado de reflexões antigas e de novos estímulos: encorajou os cidadãos locais a acreditar que não eram britânicos mas sim americanos. Era a queda de um dogma. Afinal o propósito de um Governo era servir o povo e tinha de responder às necessidades deste. Ter um rei era, por isso, uma má ideia. A América poderia ser, por isso, a terra dos homens livres. Algo que não era também muito do agrado de alguns dos rebeldes. Paine foi considerado o “pai escondido” da Revolução americana. E terá sido. Mas foi abandonado por velhos e novos amigos. A sua influência causou demasiados problemas. Mas este panfleto é notável. E uma luz que iluminou a escuridão.

Thomas Paine, “Senso Comum e outros Panfletos”, Book Builders, 110 páginas, 2022

 

O reino do Pim Pam Pum

Houve um tempo em que os jornais diários portugueses davam uma especial atenção à Banda Desenhada e aos “comics” norte-americanos. Com o tempo tudo isso desapareceu, mas o certo é que quando se busca a memória de outros tempos, deparamos com suplementos como o “Pim Pam Pum” do diário “O Século”, que se dedicavam a apresentar muitas novidades a um público mais jovem e que gostava de consumir BD.

Neste caso o herói destacado era “O Fantasma”, conhecido como o “duende” que falava nas selvas africanas e que era uma criação de Lee Falk (argumento) e Sy Barry (desenho), fruto da imensa actividade americana neste sector.