Acho que nunca me senti tão ansioso para que um ano chegasse ao fim. Não sendo minimamente supersticioso, não escapo, ainda assim, à carga simbólica que tem a divisão do tempo; no nosso caso, o calendário gregoriano. As coisas acontecem no espaço e no tempo, é, portanto, natural que as liguemos a estas dimensões. Acontece-nos, por isso, não gostar de voltar a sítios onde fomos de alguma maneira infelizes, ou maldizer um ano que nos recorde algum tipo de infortúnio. É da vida, precisamos de arrumar e encaixar os acontecimentos da nossa história.

Os nossos avós e os nossos pais passaram por coisas que nem gostamos de imaginar. A travessia do século XX, o mais extraordinário dos séculos, teve momentos de enorme sofrimento coletivo. Várias epidemias mortíferas, duas guerras mundiais, muita fome, racionamentos, ditaduras e opressão prolongadas, fascismo, comunismo, nazismo, terrorismo, múltiplas guerras regionais, catástrofes naturais, segregação racial, crises financeiras épicas, tudo isto marcou indelevelmente as gerações que nos precederam, tanta gente que nos contou, e conta, na primeira pessoa as cicatrizes de feridas do século XX. Ao mesmo tempo, foi o século em que mais rapidamente se desenvolveu e democratizou a medicina curativa e preventiva, em que chegou a televisão e a web, em que o computador se popularizou, em que nasceu a ONU e mais se investiu na paz, em que a diversidade e qualidade alimentar chegaram a mais pessoas em todo o mundo, em que os direitos civis acabaram por se afirmar, em que o apartheid acabou, em que o muro caiu, em que o homem pisou solo lunar, em que as mulheres se emanciparam e tantas outras coisas extraordinárias. Não comparo a privação do presente, à guerra, à fome, ao terror, à opressão que flagelou tantos e tantos no passado recente, mas, apesar de menos violenta e chocante na forma, esta passagem da nossa vida deixará as suas marcas e será uma chaga na nossa memória pessoal e coletiva.

O que impressiona em 2020, é a quase completa subjugação deste tempo a uma pandemia. Se nos perguntarmos quais o melhor e o pior acontecimentos de 2020, seguramente diremos a Covid-19 e a descoberta da vacina para a Covid-19. Tudo girou em torno da Covid, que dominou por completo a história da humanidade neste ano. Tudo o que foi bom, foi por surgir em oposição, ou em consequência da fonte do mal, o vírus. Trump foi corrido da Casa Branca, não pela indignidade que contaminou cada dia do seu mandato, mas pelo fracasso no combate à pandemia. A Europa está mais coesa, não por regresso aos princípios fundadores, mas pela ameaça da doença. A China está mais condicionada e vigiada, não por ser uma ditadura opaca e de interesses imperscrutáveis, mas porque o vírus resulta aparentemente da absoluta falta de segurança e higiene alimentar do país. Há mais solidariedade, mas não resulta de mais atenção ao próximo, apenas do bombardeamento mediático da desgraça alheia, da fatalidade às mãos do Corona. Fala-se mais na protecção dos interesses do terceiro mundo, mas apenas como forma de nos precavermos no quadro de pandemia globalizada. Estamos mais tempo em casa, próximos da família, mas por medo à doença. Todas as nossas acções relevantes, as melhores e as piores, foram de algum modo fruto da pandemia.

Dizer que 2020 foi um ano de tirania, não é exagero. A subjugação racional à ameaça da doença, é das formas mais insidiosas de tirania, aquela em que a insurreição tem sempre um custo desproporcional em face da liberdade exercida. A celebração natural da vida é incompatível com o número avassalador de mortes que tocou muitos de nós neste período; a quase ininterruptabilidade do luto deixou-nos na sombra da existência. O corte abrupto da mobilidade, do cosmopolitismo global onde nos movíamos, reforça a ideia de exílio involuntário. A ausência dos amigos, a interrupção da vida social, a impossibilidade do abraço, deixa-nos isolados, desasados. As ruas da cidade tornaram-se uma corrente de gente de rosto tapado que se evita mutuamente. Os velhos estão mais sós que nunca, a pretexto de estarem mais seguros. A liberdade é limitada, ironicamente, na maior parte das vezes, para nosso bem. Não, para além da companhia permanente e reconfortante da minha mulher e da minha filha, não levo nada de bom de 2020. Ou melhor, o que houve de bom não é digno de relevo em face de tudo o que nos tolheu.

Estas mudanças de ano, regadas com o espumante que ilustra sempre uma ideia feliz de mudança, permitem-nos, pelo menos a esperança e os votos. A esperança na reconquista da liberdade perdida, do fim da saúde ameaçada, do reencontro com a família e os amigos, da normalização das nossas ruas e dos sítios que frequentamos, enfim, do que nos habituámos a ter como normal e adquirido. A fortuna e os grandes feitos ficarão para outros anos, a alegria de uma vida normal bastará perfeitamente em 2021.