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Coreia do Norte: amor e cinema no ‘Reino de Kim’

Um realizador e uma atriz sul-coreanos passaram quase uma década na Coreia do Norte a fazer filmes de propaganda ao regime. Em 1986, conseguiram fugir e contar o que viveram.
3 Dezembro 2017, 17h00

Normalmente, as pessoas não abandonam a Coreia do Sul em direcção aos vizinhos do Norte. Normalmente, as poucas que o conseguem fazem o caminho inverso. Choi Eun-hee foi uma das excepções.

Choi não o fez voluntariamente, no entanto. Em 1977, com a sua carreira de atriz em crise, Choi recebeu uma proposta para viajar para Hong Kong e discutir um papel lucrativo num filme local. Uma vez na cidade então sobre administração britânica, o carro que a transportava parou em Repulse Bay, onde um grupo de homens a aguardava. Com a ajuda do homem que supostamente a convidara, agarraram-na, sedaram-na e puseram-na num barco. Horas depois, Choi chegava ao porto de Nampo na Coreia do Norte, onde Kim Jong-il, filho do ditador então ainda no poder Kim Il-sung, a aguardava, juntamente com um fotógrafo, que eternizou o momento.

O seu ex-marido, o realizador Shin Sang-ok, alarmado com o seu súbito desaparecimento, viajou para Hong Kong à sua procura. “De repente, alguém pôs um saco sobre a minha cabeça e eu não conseguia ver nada nem respirar normalmente”, recordar-se-ia mais tarde. Shin cedo se terá apercebido de que estava a sofrer o mesmo destino da sua ex-mulher: fora raptado por agentes secretos da Coreia do Norte e levado para Pyongyang.

Na realidade, era Shin e não Choi quem Kim Jong-il realmente queria, sendo o rapto da atriz a forma que os seus agentes encontraram para atrair Shin para a sua armadilha. Kim, um devoto do cinema, dono de uma colecção de milhares de filmes de todo o mundo em muitos casos contrabandeados para o seu país através sabe-se lá de que métodos, estava desapontado com a qualidade (ou falta dela) da produção cinematográfica do seu país, e chegou à conclusão de que a única forma de a melhorar seria trazer o prestigiado realizador do rival sul-coreano e fazê-lo filmar para si.

Shin, no entanto, não estava disposto a colaborar. Por várias vezes, tentou fugir, sendo então colocado na Prisão nº 6, onde passou quatro anos a comer relva, sal e arroz e a ser sujeito a doses maciças de propaganda. “Experimentei os limites dos seres humanos”, escreveria mais tarde nas suas memórias sobre a experiência, “Reino de Kim“. “Sempre a sentir o sabor a bílis”. Choi, por sua vez, vivia numa vivenda, rodeada de guardas e arame farpado, é certo, mas sem as agruras da prisão onde, sem ela saber, o seu ex-marido estava. “Las Vegas encontra Vladivostok”, diria mais tarde da sua residência.

Quatro anos depois, numa festa para as altas figuras do regime, Choi, arrastada como sempre para o evento, começou a ouvir uma efusiva ronda de aplausos, mas pensando que se tratava de mais uma das regulares manifestações de lisonja ao Líder, não lhe deu grande importância. Desta vez, no entanto, as palmas eram para Shin, que acabara de ser trazido para as festividades. Segundo conta Paul Fischer no seu livro sobre o casal, A Kim Jong-il Production, ela não o reconheceu. Os anos na prisão não haviam sido meigos com as feições de Shin. Mas alguém lhe disse quem ele era, Shin viu-a, e finalmente, cerca de 5 anos depois, os dois voltaram a encontrar-se.

Nessa noite, depois de levados para a vivenda de Choi, ambos perguntaram ao outro o que lhes tinha acontecido. Ambos, contou Fischer numa entrevista a Nancy Updike para o programa de rádio This American Life, responderam “muito, depois conto-te tudo”. Shin perguntou a Choi se ela tinha sido objecto de lavagem ao cérebro, pois tinha ficado com a impressão de que ela se mostrava sempre feliz e sorridente. “Já nem reconheces uma pessoa a desempenhar um papel”, terá respondido Choi. “Ambos”, diz Fischer, “poderam finalmente ser genuínos com alguém”. Sob pressão de Kim, voltaram a casar.

Choi e Shin planearam então fugir, mas ao contrário do que ele fizera anteriormente, iriam esperar pela oportunidade certa em vez de se preicpitaram em tentativas desesperadas. Entretanto, utilizariam um gravador que Choi conseguira comprar nas lojas destinadas às grandes figuras do regime para gravar as conversas com Kim, de forma a que se não escapassem vivos da Coreia da Norte, talvez a cassete pudesse ser contrabandeada para o Sul, e assim os seus familiares e amigos pudessem saber o que lhes tinha acontecido.

“Eu destestava o comunismo, mas tive de fingir que era seu devoto, para escapar àquela estéril ilha”, diria Shin mais tarde. Mas os filmes, a razão pela qual Shin e Choi haviam sido trazidos para a Coreia do Norte, seriam também o instrumento que permitiria a sua fuga. Durante anos, Shin e Choi produziriam, realizariam e atuariam num total de sete filmes sob as ordens de Kim. Foi seu o primeiro filme romântico da Coreia do Norte, “a primeira vez que as pessoas puderam ir ao cinema e ver algo que era sobre duas pessoas a apaixonarem-se” diz Fischer. Rodaram um filme nas ruas de Haia e Praga, o primeiro a mostrar aos norte-coreanos o progresso material do mundo livre. Shin realizou o que diria ser o melhor filme da sua carreira, sobre uma família coreana em fuga dos japoneses na Manchúria nos anos 20. E realizou também Pulgasari, um filme sobre uma espéice de Godzilla socialista feito de arroz e do sangue da filha do homem que lhe deu forma, que se alia aos camponeses de uma aldeia para derrotar um pérfido imperador que os aterroriza.

Kim achou Pulgasari uma obra-prima. Shin tentou então convencê-lo a fazer uma grande produção sobre Genghis Khan, inspirada no filme The Conqueror com John Wayne, e para isso a deixá-lo ir com Choi a Viena para propôr a uma distribuidora austríaca comercializá-lo no Ocidente. Kim acedeu. Então, com a ajuda de um crítico japonês seu amigo, conseguiram entrar num táxi e ir até à embaixada americana na capital austríaca, onde pediram e receberam asilo. Kim Jong-il baniu depois todos os filmes de Shin e Choi, incluindo Pulgasari.

Quando Shin foi raptado, a sua carreira cinematográfica encontrava-se numa encruzilhada. Em 1978, o seu estúdio fora fechado pelo ditador sul-corano, o general Park Chung Hee. A estadia no Norte, embora forçada, ofereceu-lhe a oportunidade de fazer aquilo que mais gostava. Como diz Fischer contou a Updike, a Coreia do Norte foi o sítio que lhe deu a liberdade criativa que desejava, ao mesmo tempo que lhe rejeitava todas as outras. Se queria um modelo de um comboio para o fazer explodir, “davam-lhe um comboio real”. Se “pedia uma máquina de vento, davam-lhe helicópteros. Se queria neve artificial, voavam toda a gente para uma montanha.”

Para Choi, a experiência fora menos ambivalente. “Quando falei com ela”, conta Fischer,era evidente que “se ela pudesse ter fugido dali três anos antes e não ter feito nenhum daqueles filmes, que ela teria ficado muito feliz com isso”. “E ele não tanto”, sugeriu Updike. “Ele não tanto”, respondeu Fischer.

Como Updike acabou por dizer, “nem mesmo um grande amor consegue proteger-nos de a outra pessoa querer o que quer”.

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