A ETA chega hoje ao fim por decisão própria, numa altura em que já não era mais que um anacronismo remanescente dos anos de brasa das décadas de 70 e 80 do século passado – quando não só a Espanha mas também o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Itália e Portugal tiveram que se haver com fenómenos semelhantes: o da luta armada no seio das suas próprias cidades.
Responsável pela segunda mais sangrenta guerra no território espanhol no período contemporâneo, a chamada Guerra do Norte deixou um rasto de mais de 800 mortes e uma ferida social que ainda não suturou. Os analistas afirmam que a ETA fecha de vez as portas, mas, tal como a vontade de independência do País Basco não nasceu com a ETA, também não vai desaparecer com a sua insolvência.
No dia 16 de Agosto de 1893, em Guernica, País Basco – a cidade que Picasso imortalizaria em 1937 – os separatistas arriaram uma bandeira espanhola do mastro de uma sociedade recreativa local e incendiaram-na, enquanto gritavam “morra Espanha”. Era a voz da mais antiga vontade independentista de Espanha (mais antiga que a do reino da Catalunha ou a de condado portucalense) a voltar a fazer-se ouvir, daquela vez mais alto que o costume, mas ainda não tão alto como em Janeiro de 1959 (e não em 31 de julho, dia do santo padroeiro dos bascos, Santo Inácio de Loyola, como a historiografia mais confessional pretende), quando foi criada a ETA.
O projeto é desde a primeira hora militar, mas haveria de correr quase uma década e muitas cisões internas até produzir a sua primeira morte, completamente fortuita: a 7 de junho de 1968, em Tolosa, a Guardia Civil montava uma operação stop, coisa corriqueira, quando, num acaso, mandou parar um carro (roubado) onde seguiam dois membros da ETA. Seguiu-se uma troca de tiros em que o etarra Txabi Etxebarrieta (empunhando uma pistola da marca Astra que fazia parte de um lote oferecido ao grupo militar pela Checoslováquia mas era de fabrico espanhol) matou o guarda civil José Pardiñes Arcay. Etxebarrieta foi dominado e aparentemente executado no local. Em poucos minutos, a ETA fazia o seu primeiro morto e angariava o seu primeiro mártir.
A primeira operação
A primeira operação militar da ETA digna desse nome ocorreria pouco depois, quando a 2 de agosto de 1968, executou, à entrada da sua casa em San Sebastian, Melitón Manzanas, inspetor-chefe da Brigada Político Social da cidade e costumeiro participante nas sessões de tortura aos presos nacionalistas.
A Justiça espanhola levaria 16 suspeitos da morte de Manzanas ao Tribunal Militar de Burgos em dezembro de 1970 – numa altura em que a doença das dissidências fazia com que houvesse duas ETA mais ou menos concorrentes uma da outra, a ETA V e a ETA Sexta (com direções e operacionais diferentes) – pedindo um total de seis penas de morte (para quatro dos arguidos, portanto dois deles seriam duplamente sentenciados) e um acumulado de 700 anos de penas de prisão.
Dificilmente as coisas poderiam ter corrido pior ao ditador Francisco Franco – que dava as primeiras impressões de estar a perder o pé em Espanha: centenas de ações de protestos foram levadas a cabo em 37 cidades espalhadas por todo o mundo; onze governos pediram a comutação das penas de morte; o Papa Paulo VI pediu clemência; e 300 intelectuais de todo o mundo assinaram, com o pintor Juan Miró (um catalão), uma carta em defesa do direito do País Basco à autodeterminação. As penas de morte foram comutadas em prisão perpétua.
Estava claro que, fora de Espanha, a ETA era assumida como a mais forte arma contra o regime ditatorial de Franco e, nesse quadro, era apoiada em muitas geografias políticas. ‘Cavalgando’ essa onda, o grupo armado basco cria laços em todas as direções: datam de 1972 ligações com a Frente Popular de Libertação da Palestina, com o IRA Provisório e com grupos independentistas na Bretanha, Quebec, Eritreia, Somália, Bangladesh e Catalunha.
Entretanto, Franco deixa a presidência do governo em 9 de junho de 1973, permitindo o reforço da influência dos ultras e dos militares na estrutura do poder – o almirante Luis Carrero Blanco substitui o caudilho – ao mesmo tempo que os tecnocratas do Opus Dei, que se tinham apoderado de alguns ministérios, desistiram de esperar pela abertura do regime à Europa e abandonam Madrid. Contra todas as normas de segurança, o novo chefe do governo vai ao mesmo dia da semana, à mesma hora, pelo mesmo trajeto, à missa – e a ETA encontra aí a oportunidade de que estava à espera.
Nem todos apoiaram a iniciativa, mas o topo da organização não vacila: sequestrarão Carrero Blanco e trocá-lo-ão pelos presos políticos da ETA que abundantemente preenchiam as prisões do regime. Mas o novo chefe do governo, alertado para a inacreditável falta de segurança do seu dia-a-dia, aceitou o reforço do número de guarda-costas que o acompanhavam. Sem o saber, assinava assim a sua morte: o sequestro passou a ser impraticável, e a ETA evoluiu para um plano B: a execução. Aconteceu a 20 de dezembro de 1973, às 9h36.
Entre muitas outras consequências, o atentado – para além de ter criado uma das frases políticas mais célebres do século passado, ‘arriba Franco mais alto que Carrero Blanco’ (porque no atentado o carro onde o chefe de Estado seguia foi atirado para um terraço 20 metros acima do solo) – demonstrou a iminente falência do governo. Tão iminente, que Franco acabaria por regressar ao poder, como se não pudesse confiar em mais ninguém dentro do regime.
O atentado no Café Rolando
O passo seguinte haveria de ser ainda mais decisivo: a bomba de grande potência colocada no Café Rolando, em plena cidade de Madrid, que provocou 13 mortos e 70 feridos – muitos deles não tendo nada a ver com o objetivo de atingir a estrutura político-militar do regime. As consequências avolumar-se-ão rapidamente. Desde logo porque, pela primeira vez (e talvez única) na sua história, a ETA não assume a autoria do atentado. Numa troca de acusações inaudita, coloca a circular que a responsabilidade é do Partido Comunista Espanhol, de Santiago Carrilho, que por sua vez desvia essa autoria para um pretenso e nunca visto grupo militar de extrema-direita. Internamente, a discussão azeda-se: alguns consideram que a opção militar é a partir daí irredutível, outros acham que a tentação da violência acabará por desviar a estrutura da defesa do separatismo.
Neste quadro, em novembro de 1974 dá-se nova cisão: surge a ETA Militar, que assumirá a ‘despesa’ das intervenções armadas, enquanto a ETA PoliMili avançará (sem deixar de todo as armas) na criação de estruturas partidárias de massas (várias, todas eles razoavelmente efémeras), na tentativa de interferir no desenvolvimento das lutas operárias que, todos o sabiam, eram já supra-regionais e estavam sob o controlo do PCE.
Entretanto, o regime promove mais um julgamento de envergadura: dois operacionais do Café Rolando são condenados à morte. Os apelos internacionais regressam, mas desta vez o regime não vacila. Entre outras consequências, foram estas mortes que estiveram por trás do assalto à Embaixada de Espanha em Lisboa (27 de setembro de 1975, menos de dois meses antes da morte de Franco, a 22 de novembro).
Muitas coisas mudam a partir daí. O herdeiro do franquismo, escolhido por Franco, o rei Juan Carlos, assume uma atitude de moderação para com o separatismo violento: a vontade de entrar na CEE impunha que o país conseguisse apresentar uma face ‘limpa’ e não a de uma sociedade que andava aos tiros em plena rua. Neste ponto, as ETA’s voltam a divergir: a Militar não dá qualquer benefício da dúvida ao novo regime, enquanto a PoliMili considera a hipótese de baixar as armas e apostar no diálogo que a renovada monarquia lhe oferecia.
Por essa altura, um oficial da marinha, Pedro Martinez, recrutará os primeiros operacionais para a luta antiterrorismo ETA (ATE), que iria produzir ataques armados contra elementos da ETA – algo que, anos mais tarde, voltaria ao primeiro plano político, quando um governo socialista liderado por Filipe Gonzáles criou os GAL (com Amedo Fouce, polícia de Bilbau).
Em junho de 1976, Juan Carlos dá novo sinal: depois de uma viagem aos Estados Unidos, convida Adolfo Suarez (um conservador moderado a quem os franquistas desprezavam, ou pouco menos) para liderar um governo e assume a legalização do PSOE (os socialistas) e do PNV – o Partido Nacionalista Basco, que tinha fraca implantação no terreno e uma espécie de governo no exílio, razoavelmente desprezado pela ETA. O PCE de Carrilho teria de esperar.
No seio do grupo armado, as diferenças ampliam-se: enquanto a ETA Militar aprofunda o ataque a elementos da estrutura militar do Estado, a ETA PoliMili enceta pela primeira vez negociações com o governo de Suarez: o plano Udaberri pretendia trocar uma trégua por um indulto real. Não deu em nada, ou deu em pouco, conforme conta quem lá esteve. De qualquer modo, a 21 de janeiro de 1977, tem lugar um Conselho de Ministros para tratar do problema do País Basco.
Esse será ano de eleições. No País Basco – onde o PNV e o PSOE disputarão a vitória ombro a ombro – os partidos separatistas não podem concorrer, o que faz com que a ETA PoliMili reveja em baixa as expectativas relativas ao novo regime. Neste ponto, as opiniões divergem: a ETA considera que Madrid não aproveitou a trégua da ETA PoliMili (a ETA Militar também estava em trégua) e o problema acabou por não ficar resolvido. Para Madrid, a questão da independência do País Basco era apenas uma das muitas que Suarez tinha em mãos. Mas as negociações entre a ETA e o governo (que decorriam no sítio do costume, Genebra, na Suíça) continuam, com o representante da monarquia a convidar o ramo militar para estar presente, juntamente com o ramo político-militar. O que acabaria por acontecer.
No meio de mal-entendidos, de pressões externas e de visões que não encaixam, a ETA Militar afasta-se das negociações. Por esses dias, em 3 de abril de 1977, é publicamente apresentado – em Gallarta, terra natal de Dolores Ibarruri, La Pasionaria – o EIA, partido independentista basco, que se coliga com maoistas e trotskistas no Euskadiko Ezkerra (Esquerda Basca). Ao mesmo tempo, o PNV conluia-se ‘clandestinamente’ com o PSOE (na altura defensor da autodeterminação, da basca e de qualquer outra), enquanto, nas ruas, os bascos sofrem represálias em todas as frentes (a final de uma taça do Rei entre o Atlético de Bilbau e o Betis acabaria nesse ano com 45 feridos e a vitória da equipa de Sevilha nas grandes penalidades). A 4 de junho de 1977, a ETA Militar coloca sete explosivos em Madrid (um terço da cidade fica sem eletricidade): as tréguas tinham acabado.
O Herri Batasuna
É por esta altura (até ao final do ano) que a ETA Militar cria um novo partido de massas, o Partido Socialista Revolucionário Popular (HASI), que em pouco tempo dará lugar a nova coligação, o Herri Batasuna (Unidade Popular).
Entretanto, a partir de janeiro de 1978, Madrid prepara o texto da nova Constituição. O PBV e o Euskadiko Ezkerra são deixados do lado de fora da sala onde os restantes partidos ‘cozinham’ o texto, e nem as negociações paralelas entre os partidos independentistas, o PSOE e a UCD (de Suarez) deram em nada: a unidade do território espanhol seria, a partir daí, inviolável.
Nos anos seguintes, três estruturas militares estariam ativas no terreno: a ETA Militar, a ETA PoliMili (que também abandonara a trégua) e o KAA (Comando Autónomo Anticapitalista, um grupo anarquista a que se juntaram ex-etarras dissidentes). Do lado ‘legal’, o Herri Batasuna consegue 13% dos votos nas legislativas de 1 de março de 1979, mas os seus deputados, em protesto, não tomarão o seu lugar no Parlamento). Suarez, por seu turno, consegue o apoio de Paris na luta contra a ETA – que, pelo seu lado, consegue uma importante vitória (juntamente com o lado ‘legal’): a central nuclear de Lemoniz nunca será construída – os ecologistas davam entrada na cena política europeia.
Entretanto, a 29 de julho, a ETA PoliMili coloca três engenhos em terminais de transporte de Madrid; morrem seis civis e no dia seguinte a estrutura militar faz uma conferência de imprensa em que afirma ter dado a conhecer antecipadamente o atentado, sem que a polícia se tenha dado ao trabalho de retirar as bombas.
Pouco depois, o Estatuto da Autonomia é confirmado – com votos pelo ‘sim’ de 53,1% dos bascos. Mas nada muda: a ETA PoliMili rapta Javier Ruperez, dirigente da UCD; o estrangeiro protesta e o caso só é resolvido (depois de o governo ter colocado a hipótese de ripostar com o rapto de Juan Maria Bandrés, deputado do Euskadiko Ezkerra) com a intervenção do ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Roland Dumas. Mas o País Basco passa a ser uma zona de catástrofe, como alguém lhe chamou.
E é então que se dá a tentativa de golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981, quando o coronel Tejero Molina sequestrou o Parlamento espanhol por várias horas. A partir daí, o separatismo passa a contar com ‘tolerância zero’: a 23 de março, o exército (e não a Giuarda Civil) é enviado para o País Basco. Esse novo tempo que é inaugurado como reação à tentativa de golpe surge quase como uma refundação da ‘espanholidade’ – que, entre outras coisas, conseguirá impor a ideia de que a ETA, ou qualquer intervenção militar do género, já não faz qualquer sentido.
O socialista Filipe Gonzáles ganhou as eleições de janeiro de 1982 e pouco depois, sob as diretivas de Andrés Casinello Pérez (perito em ações antiterroristas do tempo de Franco e que o juiz Baltazar Garzón haveria de chamar a tribunal), lança o Plano Zona Especial Norte (Plano ZEN), que, entre outras coisas, previa a chamada ‘guerra suja’ dos GAL. E previa também uma intensa ação no exterior, para cortar de vez com os vasos comunicantes entre a ETA e os grupos de esquerda europeus – na tentativa de os rotular em definitivo como terroristas, em alternativa a separatistas ou independentistas.
O sucesso do Plano ZEN acabaria por mantê-lo no ativo quando o PSOE foi finalmente vencido pelo Partido Popular de José Maria Aznar. E só uma estranha distração de Aznar proporcionou à ETA a sua última retumbante vitória: a 11 de março de 2004, um atentado jihadista matou 193 pessoas e feriu mais de 2.000 em Madrid. Com eleições marcadas para daí a 3 dias, o primeiro-ministro Aznar colocou de imediato a hipótese de ser mais uma manobra da ETA. Não era, e os espanhóis não lhe perdoaram a precipitação.
A história da ETA não acabou nessa época, mas já na altura se percebia que o resto do que viria a fazer já não seria mais que uma nota de rodapé nos livros de história.
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