O incêndio que assolou a zona de Pedrógão Grande consumiu cerca de 46 mil hectares de floresta (sobretudo monocultura de eucalipto e pinheiro-bravo), destacando-se como um dos maiores de sempre (desde que há registos) em Portugal. Mas apesar do elevado grau de devastação, não atingiu a Quinta da Fonte, em Figueiró dos Vinhos, propriedade da empresária holandesa Liedewij Schieving. Em torno da Quinta da Fonte “ardeu praticamente tudo, havia muitos eucaliptos que não resistiram às chamas. A única coisa que não ardeu foram os carvalhos, os castanheiros, oliveiras e sabugueiros”, testemunhou Schieving.
Não foi caso único. Em Troviscais Cimeiros, a cerca de dois quilómetros do local de origem do incêndio, a propriedade de Aires Henriques (antigo inspetor do Ministério da Agricultura) também resistiu incólume, sob a proteção de árvores autóctones e menos inflamáveis, no meio de um cenário dantesco. “Está aqui um exemplo claro. À volta das aldeias não podem deixar crescer mais pinheiros, nem mais eucaliptos, plantações desse género. Têm de definir claramente zonas de tampão, em que não se podem plantar eucaliptos”, apelou Henriques.
Em sentido contrário, Francisco Gomes da Silva, ex-secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural (2013-14), publicou uma “carta aberta ao primeiro-ministro de Portugal” (24/06/2017), instando António Costa a “não estigmatizar nenhuma das espécies florestais, nomeadamente o eucalipto. Usando uma frase de um dos sábios que atrás referi, o que comanda o fogo é a estrutura dos combustíveis e não a espécie dominante”. Em que é que se baseia para garantir que o eucalipto não é mais inflamável e propício a ignição e propagação do fogo, comparativamente a qualquer outra espécie de árvore? “Baseio-me no conhecimento científico e técnico que é disponibilizado pelos estudiosos na matéria, como aliás penso que todos os interessados deveriam fazer antes de emitir opiniões mais ou menos contundentes sobre o que quer que seja,” responde Gomes da Silva, quando questionado pelo Jornal Económico.
Um dos sábios invocados pelo ex-governante é Paulo Fernandes, engenheiro florestal e professor associado da UTAD, que defende que “o eucalipto arde tanto como qualquer outra árvore ou arbusto da nossa geografia”. Confrontado com os exemplos concretos das propriedades de Schieving e Henriques, salvas por árvores menos inflamáveis, Fernandes argumenta que “as manchas florestais ou de matos extensas e densas de espécies mediterrânicas secas estão sujeitas a grandes incêndios. E este é o factor principal que explica a dimensão dos incêndios em Portugal”.
Para Fernandes, “o eucalipto não difere das restantes espécies dominantes em Portugal, ou seja, pinheiro-bravo e sobreiro. E as estatísticas de área ardida comprovam-no. Por exemplo, alguns dos maiores incêndios no Alentejo e Algarve decorreram em paisagens dominadas pelo sobreiro. Os estudos efetuados no país, por equipas de centros de investigação distintos, não detetaram diferenças relevantes na forma como o fogo seleciona as várias espécies florestais. Portanto, aquilo que distingue as espécies na sua propensão para arder é essencialmente a quantidade de combustível que acumulam no sub-coberto e a sua estrutura vertical e horizontal, factores estes mitigáveis através da silvicultura preventiva”. A pergunta era sobre “qualquer outra árvore”, mas Fernandes centrou-se apenas nas “espécies dominantes”.
As referidas estatísticas estão plasmadas no 6º Inventário Florestal Nacional. Entre 1996 e 2014 arderam cerca de 283 mil hectares de pinheiro-bravo e 246 mil hectares de eucalipto, a uma grande distância das restantes espécies, nomeadamente o sobreiro (com 35 mil hectares de área ardida). São essas as três espécies dominantes. De facto, a superfície florestal cuja espécie dominante é o eucalipto representa a maior área do país (812 mil hectares, 26% do total), seguindo-se o sobreiro (737 mil hectares, 23%) e o pinheiro-bravo (714 mil hectares, 23%). Daí pode inferir-se que o sobreiro tem ardido muito menos (proporcionalmente à respetiva área total) do que o eucalipto e o pinheiro-bravo, contrariando a resposta de Fernandes. Outro dado relevante é que as empresas da indústria de celulose gerem diretamente cerca de 150 mil hectares (18,5% da área total) de eucalipto, nos quais aplicam um plano de ordenamento e dispositivos de vigilância e combate ao fogo bastante mais eficazes, pelo que não são comparáveis (no mesmo plano de análise estatística) às demais áreas florestais, onde deflagram mais incêndios.
As “árvores bombeiras”
O próprio Fernandes reconhece a existência de “árvores bombeiras”, mais resistentes ao fogo do que o eucalipto, como as que protegeram as quintas de Schieving e Henriques. Como é que explica esta contradição? “Não há nenhuma contradição. Os povoamentos de espécies mais combustíveis como pinheiros e eucaliptos podem ser tornados mais resistentes ao fogo se geridos convenientemente. Da mesma forma, bosques de ‘árvores bombeiras’ só o serão se não tiverem um estrato arbustivo muito desenvolvido, o que tipicamente só acontece, mas nem sempre, após os 30 a 50 anos de idade,” afirma.
Por seu lado, João Camargo, ambientalista e investigador em alterações climáticas, realça que “o eucalipto tem a capacidade de arder rapidamente, produz uma grande quantidade de biomassa (cascas e folhas altamente inflamáveis) e, através de ventos fortes, projeta material incandescente até quilómetros de distância. A razão pela qual se invoca uma inflamabilidade similar às outras espécies, o que não é comprovado, tem que ver com uma ideia de inevitabilidade do eucalipto, conformar a sociedade à ideia de que não há alternativa a algo que há 50 anos existia em poucas áreas do país. Não me parece que alguém, especialista ou não especialista, tenha a coragem de dizer que o eucalipto arde tanto ou menos que o carvalho roble, o sobreiro, o vidoeiro, o castanheiro, a figueira, a aveleira, a alfarrobeira, a oliveira, entre outras”.
“Não haveria necessidade de destacar ‘árvores bombeiras’ se não houvesse árvores incendiárias”, prossegue Camargo. “Falta mesmo um estudo que explique porque é que Portugal arde mais. Dizer que é por causa de abandono e falta de ordenamento sem associar isso à invasão premeditada de eucaliptal e da cultura do mesmo é perverter a realidade. E falta mesmo um cadastro florestal. E saber como é que o eucaliptal vai sobreviver a mais dois graus centígrados de aumento da temperatura global, cenário simpático no que diz respeito às alterações climáticas”.
Outro argumento utilizado por Fernandes é que “a grande diferença no que respeita à seleção pelo fogo não se encontra entre os vários tipos de floresta mas sim entre floresta e matos, os quais ardem bastante mais em proporção da sua presença no território”. Ao que Camargo contrapõe: “Os matos ardem mais, mas a grande diferença é que nós não estamos a plantar matos. Não é de propósito, não há alguém todos os anos a meter mais matos na floresta. O eucalipto está a aumentar a sua área em Portugal enquanto a floresta está a regredir, o que nos dá ainda mais informação: quando o eucalipto arde queima a concorrência e expande-se (naturalmente, isto é, também é uma planta invasora). Nos últimos 25 anos, Portugal perdeu mais de 254 mil hectares de floresta enquanto ganhou perto de 170 mil hectares de eucalipto. A ideia feita de que o eucalipto arde tanto como outra espécie na nossa floresta é apenas um logro engendrado pela indústria da celulose, porque não responde a nenhuma pergunta essencial e porque é uma mentira”.
Mais, o eucalipto “tem impactos nos solos, nos lençóis freáticos, desequilibra os ciclos vegetais, gera combustível altamente inflamável e sufoca o crescimento de outras espécies. Isso aumenta o risco de incêndio”, alerta Camargo. “Não é a diabolização do eucalipto, é a descrição de algumas das suas características. É por causa delas que a espécie é tão vigorosa. Como é que uma árvore cresceria mais rápido do que todas as outras se não absorvesse com maior intensidade a água e os nutrientes? De onde viriam os materiais componentes da madeira? Se considerarmos que temos a maior área relativa de eucaliptal do mundo, parece-me claro que temos um problema, onde a indústria apenas vê a oferta de 9% do território para seu usufruto”.
Estudos co-promovidos
Especialista em ecologia do fogo, Fernandes foi o investigador responsável do projeto “FireGlobulus”, que visou estudar a viabilidade do uso do fogo controlado em eucaliptal e criar o suporte científico necessário ao seu desenvolvimento tecnológico. Além de ter sido financiado pela UE, o “FireGlobulus” foi co-promovido pela Associação dos Silvicultores do Vale do Ave e pela Associação de Produtores Florestais, ou seja, fornecedores da indústria de celulose.
Este patrocínio não levanta suspeitas quanto à isenção dos seus estudos? “Obviamente que não,“ assegura Fernandes. “A motivação para o projeto foi procurar alternativas às soluções técnicas existentes (uso de meios mecânicos, herbicida, corte motomanual), o que implicitamente reconhece a necessidade de gerir o combustível em eucaliptal para diminuir o risco associado e salvaguardar o investimento dos proprietários florestais. Devo dizer que o projeto não recebeu apoio das empresas associadas à indústria de celulose e os resultados não foram ainda adotados pela indústria, nem sabemos se serão”.
Conflito de interesses?
No exercício do cargo de secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento, Francisco Gomes da Silva interveio diretamente no processo legislativo que resultou no Decreto-Lei nº96/2013, apelidado por vários ambientalistas como “lei do eucalipto livre”, na medida em que revogou uma série de limitações à plantação de eucaliptos. Após ter cessado funções governativas, no final de 2014, Gomes da Silva retomou a atividade profissional na emrpesa Agro.Ges, da quel é sócio fundador e coordenador técnico e científico.
Na lista dos principais clientes da Agro.Ges destacam-se o Grupo Portucel Soporcel e a Federação de Produtores Florestais de Portugal, entre outras ligações à indústria da celulose e produtores de eucaliptos. E na lista dos projetos da mesma empresa sobressai a “proposta de serviços para a fundamentação da importância estratégica futura do eucalipto em Portugal e para a elaboração de um programa de apoios públicos a esta espécie florestal no quadro do PDR 2014-2015”, encomendado pelo Grupo Portucel Soporcel.
Questionado sobre um eventual conflito de interesses, Gomes da Silva defendeu a sua posição: “A Agro.Ges tem entre os seus clientes largas centenas de entidades que cobrem todos os subsetores da agricultura, floresta e respetivas indústrias. Também os tem nas fileiras do pinho, do sobro e do pinheiro-manso. Não há qualquer conflito de interesses. Acha lógico que eu tivesse deixado de trabalhar no setor que conheço e no qual sou competente por ter sido secretário de Estado?”
Artigo publicado na edição digital do Jornal Económico. Assine aqui para ter acesso aos nossos conteúdos em primeira mão.
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