O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais Carlos Gaspar defende que estamos a viver uma era marcada pelo regresso dos demagogos às dinâmicas políticas. Em entrevista ao Jornal Económico, a propósito do novo livro “Raymond Aron e a Guerra Fria”, publicado pela Alêtheia Editores, explica que “o tempo dos demagogos não foi inventado no nosso tempo, é recorrente, é um ciclo e é um ciclo que é particularmente perigoso e danoso nas democracias ocidentais que são regimes abertos, pluralistas, onde a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão são indispensáveis e estruturais na definição do regime”.
O que é que poderá explicar a permeabilidade às ideias demagogas que considera que estão de regresso?
De certa maneira, sempre foi assim. É muito difícil numa sociedade moderna, em que se trata de integrar, enquadrar milhões de pessoas com tipos de formação muito diferentes, é quase um milagre quando as elites conseguem ter a credibilidade indispensável para definir políticas racionais do domínio internacional, da política interna. Quando as elites se dividem e elas próprias são incapazes de ter um discurso coerente e racional, as coisas muito facilmente resvalam. As notícias falsas são facilmente propagáveis, numa sociedade de massas, ainda mais em períodos de crise onde as pessoas estão mais sensíveis e mais dispostas a receber as teorias mais extraordinárias não apenas hoje, mas também noutros tempos do passado que não são assim tão distantes, como é o caso da Guerra Fria.
Raymond Aron não distingue a política dos interesses e das paixões. De que forma é que esta matriz nos ajuda a compreender o sistema internacional dos dias de hoje?
É um dos traços fortes de Raymond Aron, é que ele não é um realista clássico. Um realista clássico preocupa-se com o Estado, os interesses nacionais, os interesses permanentes de cada Estado. A partir daí é possível projectar uma política nacional racional. O Raymond Aron classificou o século XX, como o século das guerras totais, das revoluções totalitárias e umas e outras são menos dominadas pelos interesses do que pelas paixões. É mais uma vez uma posição muito clássica. Tucídides dizia que em Atenas as motivações principais eram o medo, a glória e o interesse. Mas o interesse vinha no fim e o medo, que nós diríamos a segurança, a glória, ou a honra, aparecem numa posição mais destacada. Continua a ser verdade hoje em dia, por vezes de uma maneira particularmente bárbara. Aron viveu a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto marcou a sua existência – que é o exemplo do que é uma política irracional e do que é a fúria, as paixões irracionais e descontroladas. Hoje em dia assistimos ao regresso das paixões políticas na polarização cada vez mais intensa que existe. Em primeiro lugar na política dos EUA, mas também na Europa Ocidental, na divisão entre os partidários e os opositores do Brexit e é difícil definir as posições dos que querem em Inglaterra da União Europeia em termos de estrita racionalidade. Há um elemento de paixão, de paixão nacionalista que marca essas posições. Tal como há um elemento de paixão nacionalista que marca as posições na Hungria, de Viktor Orban, para rejeitar a entrada de refugiados, sobretudo islâmicos.
Esse regresso é o que marcará a tendência futura das relações internacionais?
É o nosso tempo. Se não compreendemos que entrámos no tempo da demagogia, da polarização, das paixões, temos mais dificuldade em prever como é que as coisas se vão passar nos próximos cinco anos, nos próximos dez anos. Esperemos que não seja um ciclo muito longo. Já começou em 2008, estamos a meio desse ciclo, mas é um ciclo que se vai intensificar, essa polarização política. O regresso das paixões, o regresso dos demagogos, o regresso da polarização política é aquilo que marca o nosso tempo. Tal como marcou a Guerra Fria. A divisão entre os partidários e os opositores na União Soviética, os comunistas e os anti-comunistas na Eruopa Ocidental dominou a política da Europa durante a Guerra Fria.
De que forma é que esses novos tempos terão impacto na estabilidade do sistema?
Estamos numa situação excepcional em Portugal. Em Portugal não se passa nada, mas no resto da Europa e no conjunto da sociedade ocidental, essa polarização significa instabilidade e ingovernabilidade de uma maneira crescente. E não apenas nas periferias, mas nos países mais importantes para a União Europeia e para a Aliança Atlântica, que são cruciais para a política externa de Portugal. A eleição do presidente Macron significou uma ruptura do sistema de partidos em França: o Partido Socialista deixou de existir, o Partido Gaullista está reduzido a 20% e há um novo partido surgido do nada que tem a maioria na Assembleia Nacional. A mesma coisa em Itália. Há uma instabilidade do sistema permanente e hoje em dia temos uma coligação entre a Liga e o partido 5 Estrelas, que ninguém sabe exactamente o que é que é, mas estão no Governo. Formam uma maioria governamental, num dos países fundadores da União Europeia. Mesmo na Alemanha, que muitos gostam de apontar como o símbolo da estabilidade europeia, constatamos que o que antes era a excepção – uma coligação entre Democratas Cristãs e Sociais-Democratas – passou a ser a regra. Na Grã-Bretanha, os partidos continuam a ser os mesmos, mas mudaram radicalmente de política. Os conservadores deixaram de ser um partido europeísta e passaram a ser nacionalista, os Trabalhistas têm um dirigente que quer retirar a Grã-Bretanha da NATO, quer pôr fim à capacidade nuclear do país. Há uma mudança programática e dos equilíbrios internos, sempre no sentido da polarização. A polarização desfaz o centro político – o consenso liberal, europeísta, ocidental, que garantiu a estabilidade europeia desde o fim da Segunda Guerra Mundial até hoje. Foi este consenso que criou a Europa como a conhecemos. Esse consenso está posto em causa e irreversivelmente.
Significa isso que o projecto europeu está em perigo?
O consenso que sustentou o projecto europeu e a integração ocidental estão a perder a sua sustentação política dentro do sistema de partidos, nos dos principais países europeus, para não falar das periferias. Nem tudo são sinais negativos, mas em vários países há sinais inquietantes.
O futuro do sistema internacional passará pelo ressurgimento das soberanias dos Estados?
Não sei se será um regresso, no sentido em que talvez ela nunca tenha deixado de existir. Raymond Aron era um europeísta, mas reconhecia que, depois da Segunda Guerra Mundial, a economia europeia só se poderia reconstruir à escala da Europa. Ao mesmo tempo considera que a reconstrução da Europa tem que ser feita a partir dos Estados. Ele dizia que as pátrias não se dissolvem por decreto. Sendo um europeísta esteve em todos os combates a favor da integração europeia, tinha uma certa distancia em relação à retórica federalista. As Comunidades Europeias, a Aliança Atlântica eram necessárias à estabilidade europeia, mas não eram verdadeiramente uma alternativa aos Estados Nacionais. Essa retórica de integração federalista aumentou de uma maneira exponencial a seguir à Guerra Fria. Uma concepção moderada, temperada do que é a soberania dos Estados pode existir na Eruopa Ocidental, enquanto as democracias forem fortes e o consenso europeísta se mantiver. Mas mesmo na Europa Ocidental, polacos, húngaros, italianos e mesmo espahóis, já para não falar dos britânicos, querem ser primeiro britânicos e depois europeus na melhor das hipóteses. E na pior das hipóteses – que se está a tornar cada vez mais frequente – querem ser primeiro polacos, depois polacos e finalmente polacos. E com certeza que o fazem não apenas em nome da identidade nacional, da identidade histórica, mas também na defesa de interesses soberanos dos Estados. Fora da Europa, a soberania é uma regra quase absoluta. O presidente Donald Trump todos os dias nos diz que defende uma doutrina do patriotismo, que para as pessoas que não percebem diz que é nacionalista, ninguém tem duvidas que o presidente Putin no mínimo é nacionalista e ninguém tem duvidas que o presidente Xi Jinping além de comunista é nacionalista. Mas mesmo nesta ilha kantiana admirável, que é a Europa Ocidental, aqueles que pensavam na existência de Estados pós-nacionais ou Estados pós-soberanos vão ter que voltar a rever as suas posições. E estão a rever as suas posições, por vezes caindo no extremo oposto do pessimismo absoluto sobre o projecto europeu, que eu não partilho. Do ponto de vista político é importante seguir o exemplo de Aron e procurar uma via média. Estamos convencidos que podemos ser portugueses com P grande, europeus com E grande e ocidentais com O grande e que não há necessariamente contradição entre essas coisas. Foi assim que construímos a democracia portuguesa e a política externa portuguesa da democracia portuguesa e essa é uma boa linha para responder ao tempo dos demagogos. Querer inverter a ordem dos factores é mais complicado, sobretudo no caso das velhas Nações e dos velhos Estados.
O sistema internacional tem assistido a uma alteração nas dinâmicas de poder entre as principais potências. Qual será o futuro da relação entre a Europa e os Estados Unidos?
Estamos a viver uma nova configuração diplomática dentro do mesmo sistema internacional. A nova configuração que se foi construindo e que foi agora anunciada pelo presidente dos Estados Unidos é uma configuração tripolar: os Estados Unidos, a China e a Rússia são as três grandes potências que determinam a balança central no mesmo sistema internacional. Isso tem consequências muito graves para a Europa, porque na configuração anterior, os Estados Unidos e a comunidade ocidental de que a Europa faz parte, eram o centro do sistema internacional. Isso já não é verdade, o centro do sistema internacional é uma balança entre três grandes potências, nenhuma das quais é uma potência europeia. As relações entre os Estados Unidos e a Europa são relações excepcionais. Aron dizia, em 1950 que se os europeus tivessem que escolher entre a integração europeia e a Aliança Atlântica, deveriam escolher a Aliança Atlântica.
Os Estados Unidos foram aliás um dos grandes apoiantes da integração europeia.
A Aliança Atlântica era para Aron a melhor alternativa, ou a menos má, para o futuro da Europa. Reconhecia que os EUA tinham a força, que ainda têm e que vieram a revelar ao longo da Guerra Fria e da disputa soviética, de garantir, ao longo das várias crises transatlânticas, uma posição constante de apoio à integração europeia e à defesa da Europa Ocidental na NATO. Foram frequentemente melhores defensores da integração europeia, quer dos responsáveis políticos europeus. Estamos numa situação em que há cada vez mais do lado do partido europeísta uma posição anti-americana e que do lado dos EUA há um cansaço com a política europeia. O presidente Donald Trump é o primeiro presidente que não é partidário da integração europeia. Todos os seus antecessores desde 1945 foram partidários e militantes da integração europeia. Donald Trump considera que é um instrumento para a Alemanha dominar a Europa Central. Mas temos também sinais do lado da esquerda do Partido Democrata que também a comunidade transatlântica não são uma prioridade para a política dos EUA. Por efeito dessa polarização quer do lado dos EUA, quer do lado da Europa Ocidental, há uma divergência crescente na Aliança Atlântica. De certa forma está tapada pela necessidade de conter a Rússia, num momento em que a Rússia voltou a ter uma estratégia assertiva na frente europeia.
Mas a comunidade transatlântica está a atravessar uma fase de transformação?
Há uma divergência cada vez maior que faz com que a que a comunidade transatlântica se esteja a transformar. A comunidade transatlântica era antes uma espécie de aliança permanente das democracias ocidentais. Hoje é uma aliança condicional. Os EUA estão dispostos a defender a Europa se os europeus pagarem a conta, ou a sua parte da conta. O presidente Barack Obama dizia exactamente a mesma coisa, só que dizia uma oitava abaixo e não tweetava. Aparentemente os tweets irritam e irritam-nos muito bem porque não é assim que fazemos política. A relação entre os EUA e a China nesse contexto tripolar, ganhou uma nova centralidade e a China passou a ser reconhecida como a única potência que pode pôr em causa a supremacia internacional dos EUA. As relações entre os EUA e a China são para os dois países a relação bilateral mais importante que existe na política internacional.
O Brexit está num ponto crucial do processo. O que podemos esperar dos próximos meses?
É difícil fazer previsões quando as paixões se sobrepõe à racionalidade política, como é o caso do Brexit e do referendo britânico. David Cameron convocou o referendo para resolver as divisões eternas no Partido Conservador, convencido de que os partidários da continuidade da Grã-Bretanha na União Europeia iriam ganhar. Não ganharam e as divisões do Partido Conservador mantêm-se intactas. Há ali uma divisão profunda e não é nada evidente que do lado do Partido Trabalhista, haja qualquer consenso pró-europeísta, para além da lógica da oposição com o Partido Conservador. Os europeístas também estão em minoria dentro do Partido Trabalhista, embora isso não seja tão notório. Por outro lado, também ninguém na política britânica pensou que os EUA iam evoluir da forma que iam evoluir. Em 2016, o Presidente Barack Obama fez campanha a favor da Grã-Bretanha ficar na União Europeia e Donald Trump fez campanha a favor da saída. E a saída ganhou. Mas o Presidente dos EUA não está particularmente interessado em apoiar as posições da Grã-Bretanha nem na negociação com a União Europeia, nem num quadro bilateral privilegiado. A special relationship entre os EUA e a Grã-Bretanha existe ainda no domínio da segurança e da defesa, mas apenas nesse domínio, o que deixa a Grã-Bretanha isolada de certa forma na sua estratégia perante a União Europeia. No passado foram os EUA que pressionaram a Grã-Bretanha para entrarem nas Comunidades Europeias e nas várias crises que houve, os EUA foram mediadores discretos nessas crises europeias. Isso acabou. Faz parte das transformações da comunidade transatlântica. Os EUA não estão presentes nessa negociação, o que significa que a Grã-Bretanha está isolada e nem sequer pode contar com uma alternativa norte-americana à sua integração europeia. Nesse sentido, está numa posição de grande fragilidade e grande vulnerabilidade onde podem prevalecer as forças que querem uma ruptura, porque elas existem dos dois lados. Isso é dramático para Portugal. A política externa portuguesa assenta historicamente numa dupla aliança: uma aliança continental e uma aliança marítima. Temos que ter as duas e não podemos escolher entre uma e outra. Uma ruptura nas relações entre a Europa continental, a União Europeia e a Grã-Bretanha é um cenário dramático para a política externa portuguesa. Além de ser um desastre para a política de integração europeia.
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