Há um poema de Manuel de Freitas, cujo título é, ironicamente, “A humanidade em agosto”, alusivo ao abandono de animais, num período de “insuportável calor e duvidosa alegria”, onde quatro cães “de diferentes famílias” “atravessavam num sereno susto o alcatrão (…) sem caminho”. Eram, ainda de acordo com o poeta, “as vítimas ocasionais de umas férias mais tranquilas para os (…) que na sua excessiva humanidade, os abandonaram à nenhuma sorte” – o “mais pequeno e farrusco (..) parecia não acreditar ainda que era este o seu destino (…) simplesmente intolerável. (…)/ Doía muito ver-lhe os olhos”. E remata: “Eu sempre achei a humanidade o que de pior havia sobre a terra. Preferia, às vezes, não ter razão.”.
O abandono de animais, mencionado no poema, configura um mau-trato contra os mesmos, e mesmo havendo legislação, esta nem sempre é aplicada na prática, nem tão pouco se tem sensibilizado os cidadãos para a reversão desta condição, que avaliando a sobrelotação dos Centros de Recolha Oficial (CRO) de Animais, está fora de controlo. Há muito por onde investir, seja ao nível político e institucional, mas também ao nível da educação e sensibilização das populações e, no que respeita a sensibilização, este poema não poderia ser mais elucidativo (e pungente…) ante uma condição que expressa o pior de nós, humanidade – o desprezo e a falta de empatia por outrem; o desrespeito pela senciência de outrem, num especismo que se arroga no direito de discriminar, destratar e até de condenar à morte, com o abandono, animais de outra espécie.
Há, na verdade, um ciclo de abandono de animais que é preciso combater – e neste ponto há que esclarecer que a legislação em vigor é adequada a este propósito, mas não tem tido a força dissuasiva capaz de quebrar este ciclo. Por um lado, os responsáveis políticos e tutelares não têm tido a ação necessária para a sua execução, nomeadamente quanto à disponibilização de meios de execução para a reversão deste e de outros maus tratos aos animais, criminalizados desde 2014 em Portugal; por outro lado, o próprio sistema judicial é moroso (quando não injusto…) na avaliação e decisão contra os atentados ao bem-estar animal, por forma a responsabilizar os infratores; e muitos dos cidadãos, lamentavelmente, ainda não estão educados e sensibilizados para esta manifestação de crueldade que configura também um atentado ambiental e de perigosidade para a saúde e segurança públicas. Há que instituir um maior sentido ético na população quanto ao cuidado com os animais, e para tal são fundamentais ações de sensibilização e formação aos cidadãos antes de se tornarem detentores de animais para optimizar o sucesso da adoção, mas também no decorrer da própria adoção de um animal, para contornar eventuais imprevistos que possam comprometer ou mesmo defraudar as expectivas dos tutores nesse processo. Sobretudo, é preciso incutir nos cidadãos que o abandono de animais é crime e que nada, mas mesmo nada, justifica o abandono de um animal – com mais ou menos recursos é possível assegurar-lhe o mínimo de qualidade de vida, até porque são já várias as Associações de Proteção Animal e CROs, em vários municípios, que disponibilizam apoio a famílias com maiores carências financeiras, apoio esse que vai desde a alimentação, vacinação e esterilização, entre outros.
Por fim, neste âmbito, o da importância da educação para o combate e reversão do panorama de abandono de animais na região, e no país, nada será mais bem-sucedido do que a educação e formação dos mais novos – é desde estas idades, escolares, que se tem de atuar para enraizar uma nova mentalidade e um novo comportamento quanto à consolidação do respeito pelos animais. Assim, talvez se aproxime o tal dia, ansiado por Da Vinci já no séc. XV, aquele dia “em que os homens conhecerão o íntimo dos animais, e (em que) um crime contra um animal será considerado um crime contra a humanidade”.
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