Joaquim Martins chegou a Caracas há mais de quatro décadas. Ele e um amigo aterraram na capital da Venezuela apenas com a roupa que traziam no corpo. Naturais de uma aldeia do Norte do País, fugiam da pobreza extrema. Joaquim dormiu a primeira noite na varanda de um apartamento de uns amigos. No dia seguinte já estava a trabalhar: construção civil, restauração e hotelaria foram os trabalhos que teve antes de se aventurar por conta própria. Mais tarde comprou um táxi e transportava dezenas de passageiros por mês entre o centro da cidade e o aeroporto de Caracas – devido à elevada taxa de criminalidade e os sequestros-relâmpago, ter um transporte de confiança é fundamental nesta cidade, uma das mais perigosas do mundo. O emigrante português amealhou bom dinheiro até mudar novamente de carreira. Hoje em dia, tem duas lojas, um apartamento na capital da Venezuela e uma casa na praia. Regressar está fora de questão. “Tenho muito para abandonar e Portugal não me vai dar nenhuma casa. Os meus filhos estão a viver em Espanha e bem de vida”, diz ao Jornal Económico.
No entanto, o dia a dia é bastante duro. Os sequestros e os roubos, principalmente para um pequeno comerciante como Joaquim, são a principal fonte de preocupação. “Nos últimos dez anos a insegurança aumentou 100 por cento”, acrescenta. A isto junta-se a falta de alimentos e de medicamentos. “Pão ainda é fácil de encontrar, agora o leite começa a escassear. Os meus filhos enviam-me os medicamentos de Espanha, mas há cada vez mais pessoas a morrer nos hospitais”, acrescenta.
Joaquim é um dos 300 mil portugueses e lusodescendentes a residerem na Venezuela. Cerca de 80% são originários do arquipélago da Madeira. Apesar de ainda haver uma classe privilegiada, são muitos os que vivem na pobreza extrema. Há muitos problemas: dificuldade no acesso a bens básicos, como roupa ou comida, e uma qualidade muito baixa dos cuidados de saúde. Entre os portugueses de primeira geração, o sentimento maioritário é de resistência (preferem ficar na Venezuela). Já os das gerações seguintes estão a sair de forma mais significativa.
A nível económico, a Venezuela tem a gasolina mais barata do mundo. Um litro de super, a mais usada, custa 0,01 dólares por litro (0,009 euros). Para se ter um termo de comparação, os habitantes sabem que um litro de combustível é vinte vezes mais barato do que uma garrafa de água pequena. Os poços mais importantes estão nos estados de Carabobo e de Maracaibo. Diariamente são produzidos 2,2 milhões de barris, o principal produto exportado pelo país, segundo dados de fevereiro de 2017.
A alta produção de petróleo e o baixo preço da gasolina influencia o dia-a-dia dos venezuelanos. A começar pelo tráfego. O trânsito na cidade é caótico e carros de marca Toyota, Chevrolet ou Hyundai têm, no mínimo, 1.900 de cilindrada. Não vale a pena comprar um carro fraco se o preço da gasolina é tão barato.
Às seis da manhã, as filas entopem todos os acessos da capital. Para piorar ainda mais a situação, muitos condutores estacionam os carros na berma da estrada para ir ao banco, à padaria ou até comprar o jornal. A esta hora, o ponteiro que controla a velocidade dos automóveis quase não mexe: 1,2 quilómetros por hora é a velocidade máxima a que se consegue circular na Avenida Francisco de Miranda, uma das principais da capital.
No entanto, o abastecimento de gasolina nem sempre é regular. No final do ano passado, a escassez de combustível, devido a uma sabotagem, segundo palavras do executivo de Nicolás Maduro, rondou os 80% em todo o território. Em agosto do ano passado, o governo venezuelano implementou um pacote de medidas económicas que eliminou cinco zeros ao bolívar forte, dando origem ao bolívar soberano.
Do pacote fez parte o aumento de impostos, a desvalorização da moeda venezuelana em relação ao dólar norte-americano e o anúncio de que a gasolina passaria de ser a mais barata do mundo para ser vendida, no país, a preços internacionais.
Um oásis na cidade
O Centro Português de Caracas é um autêntico refúgio para alguns membros da comunidade portuguesa. Aqui, encontra-se de tudo o que é necessário para se passar um dia em tranquilidade e conforto: piscinas, salas de jogos, equipamentos desportivos, biblioteca, sala de exposições, ‘bowling’, restaurantes e bares. Na semana passada, os portugueses radicados na Venezuela homenagearam o mártir São Sebastião, uma festividade anual que atrai cada vez menos fiéis, devido à crise económica no país e ao aumento da emigração. O local escolhido foi o Salão Nobre do Centro Português de Caracas. “Estávamos acostumados a ter uma festa de 500 a 600 pessoas, mas a situação na Venezuela, hoje, é muito diferente porque implica muito esforço, principalmente económico”, disse à Lusa o presidente da Associação Civil Amigos de Terras de Santa Maria da Feira (AATSMF), Rodrigo Ferreira, a propósito da festividade, que este ano contou com a participação de pouco mais de cem pessoas.
Desde há 20 anos que os portugueses celebram as festas das fogaceiras na Venezuela, uma iniciativa que costumava ter uma parte religiosa e uma recreativa, incluindo a recriação de uma feira medieval, almoços, espetáculos musicais e dança no Salão Nobre do Centro Português de Caracas.
“Mantemos e queremos manter a tradição de realizar a festa das fogaceiras em Caracas”, garantiu Rodrigo Ferreira, que referiu que muitos portugueses saíram entretanto da Venezuela e que mais de metade dos 31 membros da comissão que preparava a festa estão atualmente no estrangeiro, à procura de novas oportunidades. Segundo este responsável, a festa tem origem numa promessa, feita há 514 anos pelos feirenses ao mártir São Sebastião, de distribuir fogaças (espécie de pão doce) pelos pobres e presos de Santa Maria da Feira (distrito de Aveiro), se acabasse com as mortes provocadas pela peste.
“Hoje, pediria a São_Sebastião que pusesse a mão sobre a Venezuela porque tanto imigrantes como o povo venezuelano estão a passar por muitas necessidades, o que não deveria acontecer com os recursos naturais que este país têm”, comentou.
O Governo português reconheceu esta segunda-feira a legitimidade de Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, atribuindo-lhe a responsabilidade de “convocar e organizar” eleições presidenciais livres e justas no país. O ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva assegurou unanimidade dentro da União Europeia sobre a posição tomada e garantiu que a mesma não coloca em risco a comunidade portuguesa na Venezuela. Cenários de conflito interno ou de intervenção externa “não são opções” para Portugal, defendeu.
“Portugal reconhecerá e apoiará a legitimidade do presidente da Assembleia Nacional venezuelana, Juan Guaidó, como presidente interino, nos termos constitucionais venezuelanos, com o encargo de convocar e organizar eleições livres, justas e de acordo com os padrões internacionais”, começou por dizer Santos Silva, numa conferência de imprensa em Lisboa. “Guaidó é o único, à luz da Constituição venezuelana, com legitimidade para convocar eleições presidenciais” e “assegurar uma transição pacífica, inclusiva e democrática”.
Javier Macedo, diretor do império de supermercados Central Madeirense e herdeiro de uma das maiores fortunas da Venezuela, está preparado para tudo. Já foram várias as vezes que o governo mandou encerrar por um dia todos os estabelecimentos da sua cadeia. O fecho das lojas foi levado a cabo pelo Serviço Integrado de Administração Aduaneira e Tributária (SENIAT), a entidade que fiscaliza as contas das empresas. “Nós cumprimos sempre com o fisco e pagamos muitos milhões, mas às vezes estas coisas acontecem”, garante.
Ao contrário de outros homens de negócios, só veste um fato numa ocasião de gala. De resto, gosta de passar despercebido. Veste calças de ganga, anda de camisa e raramente dá entrevistas. Anda acompanhado por vários seguranças e os horários de trabalho são mudados constantemente. Filho de Cândido Macedo e sobrinho de Augusto Macedo (os fundadores da empresa, naturais da Ribeira Brava), Javier é também acionista do Ocean Bank, em Miami.
O Ocean Bank foi criado pelo pai e pelo tio nos EUA, com o objetivo de assegurar o património da família Macedo. Hoje em dia, é um dos maiores bancos privados do estado da Florida. “É muito importante ter algum dinheiro de reserva no caso de a coisa dar para o torto”. E na Venezuela o azar pode estar logo ao virar da esquina.
Artigo publicado na edição nº 1975 de 8 de fevereiro do Jornal Económico
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