Pertenço a uma terra ancestral da qual não tenho memórias de infância. É possível amar uma terra em que nunca se viveu, através do amor dos nossos pais? Crescer rodeada desse amor, aprender todos os dias os costumes e as histórias de uma terra distante que só conhecemos através das memórias do pai e da mãe? Uma terra à beira do mar Mediterrâneo, rodeada por montanhas imponentes que fazem parte do berço da civilização? Como me tornei esta pessoa que é moldada pelo peso dessas histórias e tradições, transmitidas de avós para filhos e netos? Formei uma imagem mental dessa terra, feita das emoções, sonhos e aspirações dos meus pais, irmão e irmã. Foi através deles que comecei a aprender uma parte do que eu sou. E descobri que somos apenas uma gota de água numa vasta história que cruza milénios, e a partir da qual nasceu uma cronologia familiar que ecoa as convulsões do nascimento de uma nação. Pertenço a uma terra ancestral da qual não tenho memórias de infância. É possível amar uma terra em que nunca se viveu, através do amor dos nossos pais? Crescer rodeada desse amor, aprender todos os dias os costumes e as histórias de uma terra distante que só conhecemos através das memórias do pai e da mãe?
Uma terra à beira do mar Mediterrâneo, rodeada por montanhas imponentes que fazem parte do berço da civilização? Como me tornei esta pessoa que é moldada pelo peso dessas histórias e tradições, transmitidas de avós para filhos e netos? Formei uma imagem mental dessa terra, feita das emoções, sonhos e aspirações dos meus pais, irmão e irmã. Foi através deles que comecei a aprender uma parte do que eu sou. E descobri que somos apenas uma gota de água numa vasta história que cruza milénios, e a partir da qual nasceu uma cronologia familiar que ecoa as convulsões do nascimento de uma nação. Para contar a história da minha família, é inevitável que conte a história do país em que nasceram e viveram, e assim partilhar as dores de crescimento, as tiranias do dia a dia, as batalhas sangrentas, as proezas que ficaram gravadas nas memórias dos habitantes e os nomes dos santos e profetas que trilharam os seus montes. Somos parte de uma faixa de terra levantina que era outrora conhecida como a antiga Terra Prometida. Prometida a quem? A Ibrahim, o patriarca que fundou as três grandes religiões monoteístas. Também conhecida como a terra de Canaã, abençoada pelos deuses do paganismo e pelo Deus único, onde os nativos nunca assistiram a um dia de paz. Tudo o que eu comecei a descobrir sobre o Líbano, como filha de imigrantes libaneses, foi-me transmitido pela minha família.
Era a mais nova, a que nunca conhecera a vida entre o nosso extenso clã. Mas através das histórias que me contavam, garantiram que eu passasse a conhecer também o meu avô, a minha avó, as minhas bisavós, os meus tios-avós, os meus tios e tias e toda a sua descendência. Eram tantos que me perdia nos nomes, levando-me a tentar traçar os primeiros esboços de uma árvore genealógica. Todos eles habitavam em espírito ao nosso lado, na nossa casa libanesa em Portugal, e eram como espectros a se sentarem connosco à mesa, enquanto evocávamos diariamente as suas presenças, à medida que ia aprendendo a língua árabe.Tantas dessas histórias de família vieram connosco do Líbano para Portugal, no ano de 1985. Seguiram todo o caminho connosco, desde a enseada levantina do Mediterrâneo até ao estuário do Tejo, a pedirem para ser partilhadas, de uma forma ou outra. Contam a resiliência de um país que viu muitos dos seus filhos e filhas dispersos pelos quatro cantos do mundo, numa diáspora sempre em expansão, uma diáspora que nos quebra, inevitavelmente, o coração em dois.Para um imigrante, a memória da sua terra natal fica cristalizada e não sofre com a passagem do tempo. E quanto mais os anos passam, mais fica preservada essa memória, pela distância e pela ausência. Até que, por fim, um dia o imigrante regressa, descobre que a sua vila pequena cresceu, o rio que passa pela comunidade já secou, e não pode deixar de sentir um aperto agridoce no coração. Tem de construir uma nova imagem na sua mente e aceitar uma mudança da qual não fez parte.Ao partirmos do Líbano, deixámos de fazer parte do seu crescimento, e fomos lançados para uma nova realidade, tão alienígena à nossa e ao mesmo tempo tão semelhante. O meu pai escolhera Portugal, em parte por acreditar também que havia semelhanças inegáveis entre ambos os países, e talvez tenha razão. Talvez tivesse intuído esses ecos árabes de língua, costume e tradição, a reverberar pelos séculos fora, desde a presença dos mouros em Portugal.Mais tarde, aprendi que sermos libaneses, ou seja, naturais do país chamado Líbano, era apenas o começo. Havia muito mais por desvendar, outros mundos aos quais pertencíamos. Partilhávamos outras identidades que tinham uma especial importância para os meus pais. Éramos de etnia árabe e éramos drusos. Nacionalidade. Etnia. Religião. Nenhuma história individual ou coletiva no Médio Oriente pode ser contada sem esses três elementos em conjunto. Somos libaneses, somos árabes e somos drusos. Somos todas estas identidades contidas num único território, a faixa litoral a meio caminho entre as montanhas Taurus a norte e a península do Sinai a sul. É a ligação profunda ao território que define a nossa comunidade. Das baías de Beirute avista-se uma cordilheira montanhosa com picos de neve, florestas de pinheiros e cedros e vales que terão inspirado as descrições do Éden nas mentes dos Hakawati, os contadores de histórias tradicionais. Esta era, afinal, a terra mencionada na Bíblia inúmeras vezes. No Antigo Testamento, o profeta Jeremias questiona se alguma vez as neves irão abandonar os picos montanhosos do Líbano.
A zona era chamada “labn”, que em semítico significava “branco”, precisamente por causa da neve que cobre a cordilheira.E no topo das montanhas existiam imensos cedros, árvores milenares que foram cortadas em tempos míticos por ordens do rei Salomão e permitiram erguer as paredes do seu primeiro templo em Jerusalém, mais tarde destruído no cerco liderado pelo rei babilónio Nabucodonosor II. Foi também a madeira aromática e resistente dos cedros que foi usada para construir os primeiros navios mercantes fenícios. Cada pedaço de terra em toda aquela extensão litoral tem uma importância especial para os diferentes povos que convivem entre si. Para os drusos é o Monte Líbano, que se tornou a sua terra de refúgio e exílio, e que os protegeu da perseguição que lhes foi movida pelos Fatímidas no Egito, no século XI. Partilharei mais à frente as origens desta religião misteriosa e que, durante séculos, manteve a sua filosofia e sabedoria resguardada de olhos estranhos à comunidade.O Líbano é uma terra irresistível dominada pelo mar e as montanhas, sempre bela, mas de uma beleza manchada por devastação, por cicatrizes profundas e traumas coletivos que ainda estão por resolver. Sermos libaneses é sermos lembrados que somos parte de uma história trágica, e que continua a fazer o seu percurso, sem mostrar sinais de abrandar na crueldade. Nascemos almas velhas nesta terra.Ao contar a história desta família libanesa, como tantas outras, vejo como é singular. A realidade sectária desafia a compreensão de muitos ocidentais que ficam perplexos perante o imenso mosaico de etnias e religiões que forma a base do sistema político confessional libanês. E, por isso, este livro nasce também de uma tentativa de lançar mais luz sobre o Líbano e o Médio Oriente. Pois é impossível falar do Líbano sem falar da Síria, Palestina, Jordânia, Turquia, Egito ou mesmo Israel. Os laços históricos e políticos que unem e fraturam as vidas daqueles que habitam esses países são demasiado intrincados.Mas em vez de ser a História a revelar-nos os destinos de um povo e uma nação, serão conduzidos através da história de uma família ao longo das décadas. Não é nenhuma família heroica ou que figure nos manuais de escola, nem precisa de ser. É uma extensa família que passou por várias provações em tempos de grande instabilidade e mudança. O século XX será contado através das suas atribulações e das escolhas que foi forçada a tomar.
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