O Ministério Público (MP) não deu seguimento à investigação ao caso dos 10.000 milhões de euros de transferências para offshores que não ficaram registados no sistema central da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e que na sua larga maioria correspondem a fluxos enviados a partir do BES. A denúncia é da eurodeputada Ana Gomes, que diz estar “abalada e alarmada” no alerta dirigido, por carta, à procuradora-geral da República (PGR). A PGR confirmou ao Jornal Económico que recebeu a exposição de Ana Gomes, que “encontra-se em análise”, e dá conta que o inquérito ainda não tem arguidos constituídos.
Na carta, a que o Jornal Económico teve acesso, Ana Gomes avisa Lucília Gago de que o inquérito, que está nas mãos do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa e é coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ), está parado há um ano e sete meses, depois de ter sido aberto em agosto de 2017.
“A consulta que fiz ao processo permitiu constatar que desde a abertura do inquérito não se avançou absolutamente nada na investigação a cargo do DIAP”, lê-se na carta da eurodeputada, datada de 20 de março. A eurodeputada salienta mesmo que “o processo consta de sucessivas recusas de investigação por parte da PJ, por priorizar outras investigações, e correspondentes pedidos de prorrogação do inquérito por parte do Ministério Público”.
A direção nacional da PJ garantiu, ao JE que “não há recusas, o que há é pedidos de prorrogação prazos para prosseguir com a investigação”.
Segundo Ana Gomes, “o adiamento sistemático da investigação pode configurar um verdadeiro atentado ao Estado de Direito e, mais tarde, levantar uma suspeita cumplicidade no encobrimento dos crimes em causa e dos seus autores”. E pede à procuradora-geral que “sejam tomadas as medidas necessárias para garantir que a investigação é levada a cabo e com prioridade”.
O JE confrontou a PGR com o teor desta carta, tendo o gabinete de Lucília Gago confirmado que foi recebida. “Confirma-se a receção na PGR de uma exposição da eurodeputada Ana Gomes. A mesma encontra-se em análise”, avançou ao JE fonte oficial, dando conta de que, “relativamente ao inquérito, o mesmo encontra-se em investigação na PJ, não tendo arguidos constituídos” e que “está sujeito a segredo de justiça externo”.
Ana Gomes confirmou ao JE que foi aceite como assistente no processo e o envio da carta. “Confirmo que escrevi à procuradora-geral da República sobre o assunto e que consultei o processo que está em segredo de justiça, pelo que não poderei avançar mais nada”, afirmou.
No caso do “apagão” estão em causa problemas identificados no controlo das transferências de capital realizadas a partir de instituições financeiras com sede em Portugal. Foi no final de outubro e princípios de novembro de 2016 que o Fisco descobriu que os dados de 20 declarações enviadas às Finanças pelos bancos tinham sido processados parcelarmente, deixando de fora da base central linhas de informação relativamente a 10.000 milhões de euros, segundo noticiou o “Público” a 20 de fevereiro de 2017. Ao todo, escaparam ao controlo mais de 21 mil transferências, tendo a larga maioria partido do BES (ver texto na pág.5).
Sabotagem informática
O inquérito foi aberto em agosto de 2017 e sabe-se agora, pela carta de Ana Gomes, que o processo “indica ter como objetivo apurar a existência de crimes de sabotagem informática, de abuso de poderes e de prevaricação”. Para a eurodeputada, outro tipo de suspeitas de crime deveriam também ser investigadas: “Poderia e deveria também incluir a descoberta de crimes de corrupção ativa e passiva, e seus responsáveis, visto estar em causa descobrir que orquestrou a alegada ‘falha informática’ de modo a impedir que a AT e o Banco de Portugal de fazerem o devido controlo de branqueamento de capitais e de evasão fiscal”.
A investigação foi confirmada pelo MP ao JE, a 22 de setembro de 2017, e surgiu após o Governo ter enviado para esta entidade o relatório de auditoria da Inspeção Geral de Finanças às transferências omissas para offshores – que não sustentou a improbabilidade de intervenção de mão humana e lançou mais dúvidas.
Para Ana Gomes, “é simplesmente intolerável que um pedido de investigação feito pelo Governo da República seja, na prática, inviabilizado por magistrados do DIAP e inspectores da PJ alegando ter mais de fazer…”.
Na carta dirigida à PGR, a eurodeputada dá conta que consultou, a 15 de março, o processo relativo ao denominado “apagão fiscal” de um conjunto de transferências realizadas entre 2011 e 2014 comunicadas pelos bancos, mas que não foram alvo de controlo pelo Fisco, pois estavam omissas das estatísticas. Um caso que levou o Governo a determinar uma auditoria à IGF, que concluiu no verão de 2017 por “extremamente improvável” que o problema informático se devesse a “intervenção humana deliberada”.
Segundo Ana Gomes, após a consulta do processo, soaram alarmes: “Vim abalada e alarmada”, salienta na missiva, recordando que a revelação do caso “teve, na altura, enorme impacto mediático” e originado um inquérito da IGF pelo anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, “que por o considerar insuficiente/deficiente remeteu à PGR”.
“Embora não possa discutir o que vi no processo, dado o segredo de justiça que ainda rege o inquérito, posso certamente falar sobre aquilo que não vi. E o que não vi foi qualquer verdadeira tentativa de iniciar uma investigação por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária”, alerta na carta a Lucília Gago.
Sobre esta última acusação, a direção nacional da PJ avançou ao JE_que “não corresponde à verdade, uma vez que foram pedidos exames técnicos e perícias (à IGF e ao Técnico) que permitissem vir a esclarecer alguma suspeita e abrindo caminho à investigação”.
Artigo publicado na edição nº 1983 de 5 de abril do Jornal Económico
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