Os ponteiros dos relógios voltaram a rodar. As manufaturas voltaram a produzir relógios, mecânicos, de quartzo ou conectados. Aos milhões. Com a pandemia mais ou menos controlada, as lojas voltaram a vender e a vida parece ter voltado ao normal no mundo da relojoaria global. Mas algumas coisas mudaram. Os centros de gravidade alteraram-se. Hong Kong já não é a capital mundial das vendas relojoeiras. Os Estados Unidos, a China continental, a Europa ou o Dubai, onde se realizou no final de novembro a Dubai Watch Week, dividem as atenções da indústria. O mundo não pára.
As margens do lago Genebra são outro dos centros de gravidade do mundo relojoeiro. Não apenas porque muitas das mais conhecidas marcas relojoeiras têm ali as suas sedes e lojas emblemáticas, mas porque recebe as duas mais importantes feiras, os Geneva Watch Days, dedicada sobretudo à criatividade das marcas independentes, e o salão Watches & Wonders, aberto ao público, a partir de finais de Março do próximo ano. Com o adeus da Baselworld, que já não se realizará em 2022, é em Genebra que marcas como a Patek Philippe, a Rolex, a Chopard ou a Chanel, entre tantas outras, mostram as suas novidades. Já no outro grande país do tempo, o Japão, marcas como a Seiko ou a Citizen, escolhem outras alturas para o fazer.
O mundo da relojoaria está habituado às crises. Foi, de resto, num mundo em crise que se forjou a indústria suíça. Talvez por isso, ao longo de séculos, esta sempre foi encontrando formas para as combater e superar. Refúgio de protestantes perseguidos pelos católicos em França, Genebra acolheu, na época, a elite dos relojoeiros. Os huguenotes trouxeram para a Suíça as aptidões e os segredos daquela que era a manufactura de relógios mais avançada da Europa. No século XVII, Genebra passou a ser o laboratório dos relógios mais elegantes e complicados do velho continente, algo que se alargou no século seguinte, ao Jura e a Neuchâtel. A crise religiosa francesa não trouxe apenas artesãos mas novos olhares sobre o mundo e o comércio.
Séculos depois, na década de 1970, a Suíça confrontou-se com outra crise. Desta vez no coração da indústria. Chamaram-lhe a “crise do quartzo”. Era uma revolução tecnológica mas, também de conceitos. As marcas japonesas Seiko e Citizen iam solidificando as suas vendas, ano após ano, e mesmo o clássico James Bond deixou de usar um relógio suíço para colocar no pulso um Pulsar ou um Seiko. Os números digitais estavam na moda e os ponteiros tinham deixado de estar. Era um rude golpe para a indústria suíça, sentada confortavelmente no seu património de relógios mecânicos e analógicos. Tudo isto estava a ser devastado pelo preço e a acessibilidade dos novos quartzo. No início da década de 1980, sem esperança no horizonte, e com os japoneses a ameaçar comprar as marcas tradicionais para as modernizar, um grupo de bancos suíços designados pelo Governo, contratou Nicolas George Hayek para avaliar a situação e criar um plano para o futuro da indústria relojoeira suíça. Hayek transformou a crise numa oportunidade. E as crises financeiras das últimas décadas também foram dribladas, até porque, para juntar aos grandes mercados existentes, surgiu um outro: a China. Num mundo que ainda não se conseguiu recompor da pandemia, mas que voltou a funcionar, que perspetivas se abrem à indústria relojoeira? Para já os números trazem optimismo. Segundo os dados oficiais da la Fédération de l’industrie horlogère suisse (FH) referentes a Outubro de 2021 (os últimos disponíveis), houve uma ligeira aceleração no crescimento de exportações suíças de relógios (+4,8% face a 2019 e +12,5% face a Outubro de 2020). Atingiu-se também o nível mensal mais alto de vendas dos últimos sete anos, com 2,1 mil milhões de francos.
Em termos médios esta evolução fez com que se voltassem aos níveis antes da crise, embora existam disparidades segundo os segmentos. Os maiores aumentos do mês situaram-se nos relógios com metais preciosos. Os relógios em aço caíram e a baixa foi forte nos relógios com custo abaixo dos três mil francos, uma tendência há muito visível. Relativamente aos mercados os Estados Unidos (o líder em termos das exportações suíças) cresceram 35,6% face a 2019, e a China (segundo mais importante mercado) cresceu 23%. Hong Kong (ainda assim o terceiro mais importante mercado) continua a ter valores negativos (-9,7%). O Japão subiu ligeiramente (+1,3%) e Singapura, com um forte aumento (+11,6%) confirmou o seu regresso a valores anteriores à crise. A situação na Europa (-6,2%) continua negativa. Portugal, que chegou a sair durante alguns meses dos 30 principais mercados mundiais, recuperou e está agora no 28º lugar, ainda que perdendo 6,7% relativamente ao ano passado. Em consonância com o que se passa nos mercados europeus. Segundo o presidente da FH, Jean-Daniel Pasche, “ainda é difícil avaliar a amplitude da recuperação”. Mas claro que os Estados Unidos e a China são as duas locomotivas da recuperação, ainda que com um desempenho que continua importante do mercado de Hong Kong (que é contabilizado independentemente do da China). Seja como for, o conflito comercial entre Beijing e Washington, tal como o crescimento do protecionismo, ameaça fortemente algumas análises estratégicas.
Mudanças vistas de Portugal
E como é que, em Portugal, se olha para o mercado actual e para as novas tendências. Marta Torres, administradora da Watchers, diz-nos: “para a relojoaria o mercado está a evoluir muito, principalmente desde há dois anos. Se por um lado a pandemia fez com que as pequenas marcas enfrentassem dificuldades, forçando-as a repensar a estratégia, por outro as marcas grandes enfrentam o desafio digital: como criar relações à distância? E neste espaço criado entre o consumidor e as marcas inatingíveis surge a redescoberta da segunda mão e o regresso pelo interesse da magia relojoeira – a mecânica.
Graças à quantidade de informação disponível e a este regresso às origens observamos o interesse pela relojoaria a crescer. Numa época em que o relógio é um acessório decorativo não deixa de ser curioso ver que quem usa relógio fá-lo com orgulho! O relógio é valorizado não só pela sua aparência, metais preciosos, materiais exclusivos, cravação de pedras, mostradores esmaltados, mas pelo seu movimento – complexidade da construção, decoração da platina e rodagem, características técnicas não visíveis aos outros, mas que contam uma história.”.
Marta Torres acrescenta: “não posso deixar de referir o interesse crescente por investidores que leva a que peças históricas atinjam valores incríveis em leilões internacionais, o que vem reforçar este movimento que beneficia não só marcas consagradas mas também pequenas marcas independentes.”
Já David Kolinski, administrador do Grupo Boutique dos Relógios, considera que: “em Portugal, o mercado de relojoaria e joalharia, sobretudo no segmento luxo, vivia na pré-pandemia uma fase muito boa. Assistíamos a um momento de excepcional crescimento no turismo de luxo que se refletia positivamente. A crise pandémica teve como consequência direta o quase estrangular do turismo, o que impactou naturalmente este segmento. Durante esta fase mais crítica, foi absolutamente decisiva a clientela nacional que sempre confiou na chancela Boutique dos Relógios. Falamos de aficionados que nos motivaram e ajudaram a ultrapassar um período difícil. Com a vacinação e a reabertura do turismo, estamos a assistir a uma recuperação algo conservadora e não totalmente isenta de riscos e desafios. O mundo pós-pandémico, neste sector, terá obrigatoriamente de ser alvo de uma reflexão e de alguns ajustes. Esta indústria terá de ser capaz de atrair e de saber falar com novos e antigos públicos.”.
David Kolinski tem uma certeza: “Uma tendência que veio para ficar, acredito, foi a mudança no perfil de eventos do mercado de relojoaria de luxo no pós-pandemia. Para clientes, passámos a organizar experiências mais exclusivas e personalizadas. Outra tendência de diversas marcas relojoeiras, que ainda hoje se mantém, foi a apresentação, via plataformas de videoconferências, de novos lançamentos e coleções junto dos jornalistas do sector. No atual contexto, as prioridades vão continuar a assentar em tendências que conheceram uma aceleração com a pandemia: a otimização dos nossos canais de venda, o desenvolvimento acelerado do e-commerce e canais digitais e, sobretudo, no robustecimento da nossa estratégica omnicanal. A visão omnicanal, a ligação entre loja online e lojas físicas, tem hoje um papel fulcral. Atualmente, o cliente já não distingue estes dois conceitos. Tanto pode ver no site e ir depois à loja comprar, como ao contrário.” Para David Kolinski, as mudanças não ficam por aí: “Outra tendência a destacar é o lançamento de diversas coleções especiais, colaboração com artistas ou designers ou até mesmo outras marcas. Fora do segmento luxo, faria neste ponto notar a atividade da marca Swatch, pródiga em lançamentos originais, na linha do seu ADN irreverente e ousado.”
Por seu lado, Miguel Rodrigues, Director Comercial da Certora – Medição do Tempo (que distribui a Seiko), considera que: “relativamente ao mercado da relojoaria, acredito que os consumidores tendem a valorizar uma relação mais direta, quer seja multifuncional ou mesmo puramente emocional, com os relógios. O aparecimento e o grande desenvolvimento comercial dos smartwatches vem no sentido de adicionar inúmeras funções aos instrumentos de medição do tempo, tornando-os objectos multifacetados que contribuem de diferentes maneiras para a satisfação das nossas necessidades em termos de informação, não apenas do tempo em si, mas de outras métricas, nomeadamente fisiológicas. Por outro lado, estamos a assistir em paralelo a um aumento da procura pelos relógios mais tradicionais, nomeadamente com calibres mecânicos. Com estes últimos, o consumidor procura também uma interacção com a relojoaria mas mais ao nível emocional.”
Opiniões que mostram os desafios que se colocam a marcas e distribuidores em todo o mundo e não apenas em Portugal. Porque há, claramente algumas alterações, seja na forma como as marcas estão a posicionar-se neste novo contexto onde o digital ganhou corpo, nas alterações dos mercados mais importantes, no apelo aos consumidores mais jovens que se sentem tentados pelos relógios conectados, pelo crescimento muito forte do mercado secundário, ou mesmo pelas propostas apresentados. Um caso exemplar de mutação tem a ver com a velha divisão entre relógios para homens e para mulheres. Agora, com as mudanças na sociedade, algumas marcas estão a repensar a aproximação tradicional a estes públicos. Mas, ao mesmo tempo, nem todos estão unidos perante um género unisexo. Assim o debate ainda está em cima da mesa. Até agora acreditava-se que os relógios para homem eram dominantes em termos de mercado. Mas um relatório publicado em Maio pela Allied Market Research referia que os relógios para mulheres já têm um valor superior ao dos homens. E que, em 2019, entre os relógios acima de 1200 dólares, 54,5% do mercado total era de relógios femininos. Talvez por isso há vozes a referirem que a velha distinção tem os dias contados. Mas será mesmo assim? Tendo sido uma indústria criada por homens (desde os artesãos aos consumidores), hoje o público é mais vasto: há mulheres que são pilotos, mergulhadores, executivas. Com poder de compra próprio. Que decidem por si. Compram relógios com diâmetros maiores (curiosamente começa a haver uma tendência para a apresentação de modelos com diâmetros intermédios, entre o que eram os para homem e mulher). Não há muito tempo Catherine Rénier da Jaeger-LeCoultre dizia ao “Financial Times” que um dos ícones da marca, o Reverso, vendia cerca de 50% a homens e outros 50% a mulheres. E acrescentava: “Se se tentar demasiado ser para homem ou para mulher, não se é natural. Primeiro temos de ser relojoeiros e especialistas na arte artesanal”. Já Edouard Meylan, da independente H. Moser & Cie, referia que: “se nos tornarmos unisexo, isso vai criar restrições à criatividade e vai contra a diversidade. Acabaria por uma muito alta homegeneização dos relógios. Essa ideia é mais lançada pelos media do que pelas modas – sempre existiram senhoras a usar relógios masculinos”. O CEO da Panerai, Jean-Marc Pontroué, era claro: “O unisexo é algo que não temos em cima da mesa. Levámos tempo a ser uma das maiores marcas do mundo. Não precisamos de mudar”.
Há outras coisas que efectivamente estão a mudar. Para a consultora Deloitte os riscos relacionados com o emprego qualificado e a indisponibilidade de alguns componentes e matérias-primas também serão um desafio. A consultora considera, no último relatório sobre esta indústria, que “a pandemia trouxe muitos novos desafios, mas o seu maior impacto a longo prazo para a indústria relojoeira foi a aceleração da digitalização e isto representa uma oportunidade”.
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