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“Ao retirar a legitimidade do voto, o presidente está a brincar com o fogo”

Os efeitos do estranho espetáculo a que o mundo assiste diretamente dos Estados Unidos tem raízes profundas e vai demorar a cauterizar. Mas o investigador Larry Diamond alerta principalmente para o risco crescente de violência.
6 Novembro 2020, 17h50

“Independentemente de quem ganhe as eleições presidenciais de 2020, a saúde da democracia norte-americana não recuperará tão cedo. Na última década, e principalmente nos últimos quatro anos, os estudiosos acompanharam um declínio gradual na qualidade da democracia nos Estados Unidos. Esse declínio, enraizado em parte no aprofundamento da polarização partidária e racial, começou bem antes da eleição de Donald Trump como presidente em 2016”. É assim, de forma desabrida e sem excesso de medição das palavras, que Larry Diamond, investigador da Hoover Institution e do Freeman Spogli Institute for International Studies da Stanford University, inicia um extenso artigo publicado na influente revista Foreign Affaires.

Não sendo um exclusivo de Donald Trump, diz Diamond, a metralha do atual presidente sobre o sistema – uma promessa eleitoral de há quatro anos, convém não esquecer – está acima “de qualquer um dos seus 44 antecessores”. “Este presidente danificou severamente as normas e, em certa medida, as instituições da democracia norte-americana. As suas constantes mentiras e desinformação; os seus ataques implacáveis ​​aos media, aos tribunais, ao serviço público e à oposição política; os seus esforços para politizar e exigir lealdade pessoal aos militares e ao aparelho de inteligência; o seu mau uso do poder presidencial para obter vantagens políticas e financeiras; e os seus gestos de simpatia e apoio a grupos racistas extremistas de direita, não têm paralelo nos anais da presidência norte-americana”.

Para Larry Diamond, “o comportamento de Trump durante a campanha foi especialmente prejudicial para a democracia norte-americana, em particular as suas tentativas pré-eleitorais de supressão de eleitores e as suas alegações infundadas de fraude na emissão de boletins de voto pelo correio. Por mais previsível que fosse, o presidente atingiu um novo nível na noite das eleições, quando repetiu a sua falsa afirmação da ecistência de ‘uma grande fraude na nossa nação’”. E alerta: “ao tentar retirar legitimidade ao voto, o presidente está a brincar com o fogo.

Por outro lado, Larry Diamond refere que “uma vitória de Biden por si só não curará as feridas profundas que a democracia norte-americana sofreu nos últimos anos. Num sistema bipartidário, são necessários dois partidos para reduzir a polarização política e recuperar as normas democráticas”.

E finalmente o investigador encontra já espalhadas pelo mundo as primeiras metástases ‘exportadas’ pelo seu país: “É difícil fazer analogias com o declínio de outras democracias porque nenhuma outra democracia liberal madura e rica sofreu um colapso institucional semelhante. Mas os sinais gerais de decadência política são familiares – e alarmantes: a crescente polarização, desconfiança e intolerância entre os partidários dos principais partidos; a tendência crescente de ver as ligações partidárias como uma espécie de identidade tribal; o entrelaçamento de filiações partidárias com identidades raciais, étnicas ou religiosas; e a incapacidade de estabelecer compromissos políticos entre divisões partidárias”.

E alerta: “O problema é agravado pelos maus ventos que sopraram contra a democracia em todo o mundo: a influência perniciosa das redes sociais, que valorizam a indignação e o envolvimento emocional e, portanto, têm uma afinidade natural com a desinformação; as múltiplas perturbações tecnológicas, económicas e ambientais que ameaçam a identidade e segurança das pessoas; a ascensão da China e o ressurgimento da Rússia como potências autoritárias que veem a degradação e desestabilização da democracia como um imperativo existencial; e o recuo da responsabilidade global do país que nas décadas anteriores foi o principal defensor das democracias em guerra – os Estados Unidos”.

“Em janeiro, a democracia norte-americana ainda terá sérios problemas. E só o povo norte-americano a pode consertar”, conclui o estudioso.

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