[weglot_switcher]

A “padeira de Aljubarrota”, filha do amor entre Deus e o Diabo

Fomos ao Teatro Maria Vitória, no lisboeta Parque Mayer, a convite de Adelaide Ferreira. Numa vitalidade que contrasta com os edifícios ao seu redor, alguns abandonados há anos, a cantora e atriz hasteia a bandeira da intervenção num género de teatro onde se estreou aos 57 anos. Mais do que tudo, assume-se como “vendedora de sonhos” e procura fazer as pazes com o público, com quem esteve quase a “meter os papéis do divórcio”.
27 Fevereiro 2017, 14h10

O palco está naturalmente vazio. Ainda faltam algumas horas para o espetáculo Parque à Vista, no Teatro Maria Vitória. O retângulo preto é iluminado pelas luzes que se acenderam para fotografarmos Adelaide Ferreira. A atriz está animada, com muita energia a cada movimento e pose que faz; a cada palavra que entoa. Pedimos que nos cite o início de uma das personagens que interpreta. Adelaide para.

A atriz e cantora revela que tem de se concentrar e encarnar a personagem primeiro. É sobre uma mãe que mentiu ao filho, que afinal tem de emigrar. Continua parada. Olha para baixo. O tempo parece parar. Adelaide Ferreira deixa a seriedade e rigidez tomarem conta do corpo e declara: “O meu pai falava de uma vida de privações. Não de privatizações, até porque naquela altura não se falava em milhões”.

“Geralmente não o faço nos olhos de alguém, como fiz agora”, diz, enquanto se despe da personagem. “Normalmente não vejo nada; está tudo cheio de luz. E só o palco interessa.” Afastamo-nos dele para o ver melhor, passando entre cadeiras também vazias, à espera de que alguém viva a vida através das histórias contadas por Adelaide Ferreira. Histórias que são sonhos contados pela expressão corporal, explica. “É através do meu corpo que veiculo sentimentos, emoções… é isso que eu sou – uma vendedora de sonhos. Sou muito feliz neste palco”.

O Teatro Maria Vitória tem plateia, camarotes e frisas; num patamar acima é a tribuna, mais afastada e também mais alta. Escolhemos os dois lugares mais centrais. “Nunca me sentei aqui”, comenta Adelaide, que encara de frente o palco vazio, no sítio do espetador. O que sente quando olha para aquela área finita, confinada ao espaço, mas ao mesmo tempo sem limites? “Prazer, empenho, engagement – alguém empenhado em passar algo às pessoas; uma mensagem de força, de intervenção, e um bocadinho de revolução também”.

O que faz é paralelismo do que é: “Uma mulher de intervenção, política, e que se preocupa com o próximo. Trata-se de um teatro ligeiro, leve, um momento de comunhão e de lágrimas entre o público e eu. Sinto na pele as coisas que aqui se dizem. O ridículo da nossa existência”, diz. É a primeira vez, aos 57 anos, que Adelaide ingressa neste género de espetáculo. “Venho do teatro ‘sério’. Este é diferente, muito em cima do momento. Fala sobre as ansiedades do povo, dos sonhos, do que os faz rir – a política, maioritariamente. Teatro é a vanguarda do pensamento – a arte em geral é-o, mas o teatro em particular, porque está sempre a atualizar-se. E a revista mais do que nunca”.

A aceitação do desafio de se estrear noutro género teatral explica-se pela atitude que sempre teve perante a vida. “Sou uma entusiasta, não faço nada por menos, nem que seja lavar uma peça de roupa ou um prato. Não consigo conceber a vida ao estar num projeto que não seja estar por inteiro”. Adelaide Ferreira recupera um trecho de Variações para explicar o que não quer sentir: “Esse tipo de maneira de viver, ao contrário, faz-me lembrar o António Variações, que não está bem onde está e só está bem onde não está. Esperneio e refilo, mas hei-de estar bem”.

A forma de ser contestatária que Adelaide orgulhosamente assume é a vitória da sua vida. “Essa postura encantou as pessoas – chegar a um palco e levar tudo à frente. E também as assustava”. Provavelmente pela coragem e predisposição para dar o corpo às balas. “Sinto-me a padeira de Aljubarrota, às vezes. Se for preciso morrer pela pátria morro, ou pelos meus filhos, ou por uma causa. Não gosto de me vergar. Incomoda-me imenso que existam poderosos. Sou uma mulher revoltada. Louca por ser fora-da-caixa. Sou filha do amor que há entre Deus e o Diabo”. Adelaide interrompe o discurso. Parece ter um diálogo instantâneo com os seus pensamentos. “Isto é de um poema de José Régio. Um dia hei-de dizê-lo”.

As ideias fluem com a conversa. Também um último álbum, de despedida, com música de intervenção, é cogitado pela cantora. Não há datas nem prazos.

É, então, através do teatro que Adelaide canaliza a revolta, não por se exprimir por si só, mas por poder fazê-lo para alguém. “Tenho amor às pessoas, sejam elas público ou não. Até mais a desconhecidos do que a conhecidos. Sinto que estamos condicionados, numa liberdade condicionada; falta de dinheiro, saúde, trabalho, e caminhamos para a escravatura. Por isso, tenho um amor às pessoas que estão à minha frente. Revejo-me no sofrimento. O meu único vício é o amor pelas filhas, pessoas, teatro. O que vai ficar de mim é o amor”.

Contudo, o que Adelaide agora procura dar às pessoas esteve escondido durante alguns anos. Em 2013, a cantora “quis pedir o divórcio” com o público, mas não chegou “a meter os papéis”. “Fiquei triste com o público, que desconfiou de mim, mas eu não deixei de ser quem sou”, diz. A autora de Dava Tudo sentiu-se mal-amada pelo público, achou que “não tinha mais a dizer” e fez um retiro sabático: “Durante três anos ninguém soube de mim. Também nunca fui muito mediática, e se o fui era por ser um bocado maluqinha”, resume. Em causa estão “notícias falaciosas veiculadas pela comunicação social em que o público mais acrítico acreditou. Não tinha de duvidar da minha essência, podia mas não devia. [O público] tinha o dever de saber quem eu era”, afirma Adelaide Ferreira, que não meteu os papéis para o divórcio mas pegou num livro, em branco, e começou a escrevê-lo. “Estou a escrever um livro, nunca o vou acabar”. Quem vai ler um livro inacabado? “Ninguém”, diz à primeira. A filha, a mais velha, é a resposta certa. Pelo menos por enquanto. O livro começou a ser escrito em 2013 e passados quatro anos conta com dois capítulos, confessa Adelaide, rindo-se sem pejo: “Sou muito preguiçosa, indolente”. É um sentimento de quem não tem de se afirmar, de quem não tem de mostrar nada a ninguém. “Eu não tenho de ser famosa, o meu ego já não está a esse nível”.

É preciso recuar aos tempos de temas como Papel Principal para ver uma Adelaide distinta, cujo contraste com o discurso atual é evidente. “Andei um bocadinho feita estúpida a viver o ego. Mas a ‘euzinha’ estava lá dentro e tinha de emergir. Estava asfixiada. Nessa altura não sentia as amarguras da vida. Achava que a vida era linda; mas foi efémero – a vida não é aquilo, nem eu me sentia lá bem. Eu sei como é viver no mundo luxuoso, já lá andei. Se calhar não sei tudo, só sei uma parte. A vida é paradisíaca, rapidamente esquecemos o que deixámos. É uma amnésia. Esquecemo-nos da dor do outro. Como é possível tantos tios Patinhas com tanta gente com fome? Essa é a minha loucura”.

As desigualdades e injustiças estão presentes no regresso à cena, que também serve para fazer “as pazes com o público”. “O teatro só está cheio às sextas, sábados e domingos”, portanto ainda vai demorar um tempo a chegar a todos. “Queria que a sala estivesse cheia todos os dias”, diz. No palco, Adelaide canta e interpreta. Entre as duas profissões, é indiferente com qual as pessoas a identificam mais frequentemente: “Não estou cá para brilhar, não quero saber se acham mais isto ou aquilo; quero é saber o que é que eu faço sentir às pessoas”.

Com o avançar dos ponteiros do relógio, parte da produção do espetáculo começa a chegar. “Como está a voz, Adelaide?” perguntam. “Já está melhor”, responde a atriz, que recupera de uma gripe. Os técnicos ultimam as funcionalidades do palco para dar início ao teste de som. O espaço começa a ficar preenchido, a normalidade de dia de espetáculo retorna ao palco.

Adelaide Ferreira acompanha-nos até à porta e despede-se. Sem companhia, volta para dentro do Teatro Maria Vitória. Esta noite volta a mostrar tudo o que é. Tal como o poema de José Régio, ama “os abismos, as torrentes, os desertos…”. Os outros têm “regras, e tratados, e filósofos, e sábios…”, Adelaide tem a sua loucura; levanta-a, como um facho, a arder na noite escura; e sente “a espuma, e sangue, e cânticos nos lábios.”

OBSERVAÇÃO No próprio dia em que recebeu O Jornal Económico no palco do Maria Vitória, Adelaide Ferreira deixou o elenco do espectáculo. Foram seis meses em cena como protagonista de Parque à Vista. O seu lugar é agora ocupado pelo ator Miguel Dias.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.