Moscovo acordou sábado pronta para uma guerra civil, mas os rebeldes da milícia Wagner deram meia-volta a 200 quilómetros da capital russa, evitando um “banho de sangue”, como o seu líder descreveu. Um episódio impensável até há três dias e que, embora com poucas consequências práticas evidentes no imediato, marcará um antes e um depois para o reinado do todo-poderoso Vladimir Putin, expondo as tensões internas russas. Em Kiev, o entusiasmo das primeiras horas do dia acabou frustrado e, apesar da oportunidade de curto-prazo que se abriu, as opções devem ser exploradas com cautela.
Depois de semanas de retórica a subir, o líder da Wagner, Yevgeny Prigozhin, passou das ameaças aos atos e entrou em território russo, juntamente com 25 mil dos seus homens. Num ápice, a milícia que celebrava ganhos diários de centenas de metros na batalha por Bakhmut, na Ucrânia, tomou Rostov, cidade do sul chave na operação logística da invasão. Dali foram algumas horas para percorrer 800 quilómetros na direção de Moscovo, tomando mais localidades e encontrando pouca resistência das forças convencionais no solo.
Quando o mundo se preparava já para a formalização da guerra civil (expressão usada pelo próprio Prigozhin) no maior país do mundo, a coluna militar da Wagner parou e, de forma tão inesperada como havia invadido território russo na noite anterior, inverteu caminho. Com a mediação do presidente bielorrusso, Aleksandr Lukashenko, Putin e Prigozhin chegaram a um entendimento que verá o líder dos mercenários encaminhar-se para a Bielorrússia, os rebeldes Wagner amnistiados e uma aparente retoma da normalidade interna e na frente de batalha ucraniana.
No entanto, os especialistas ouvidos pelo Jornal Económico afirmam que nada voltará ao normal na Rússia de Putin. O líder autocrático, visto até agora como incontestável internamente, sofreu uma humilhação às mãos de um antigo aliado, num quase-golpe que deixou Prigozhin, o Kremlin e as forças armadas russas mal vistos.
“A Rússia esteve muito perto de uma guerra civil”, começa por afirmar José Milhazes, jornalista e antigo correspondente em Moscovo. “Isso vai ter consequências na situação interna na Rússia nos próximos tempos e talvez mesmo a médio e longo prazo, porque mostrou muitas das fragilidades do regime de Putin.”
A primeira, explica, foi o facto de ter ficado evidente que “não pode contar com pelo menos parte significativa das forças armadas, que se recusaram a disparar contra as tropas de Prigozhin”. Na realidade, a pouca resistência feita pelas forças regulares russas à incursão da Wagner veio da Força Aérea, que chegou a bombardear a coluna militar; em troca, as forças de Prigozhin abateram vários helicópteros e pelo menos um avião de comunicações, de acordo com os media russos.
Para o embaixador Francisco Seixas da Costa, aqui residiu a principal falha de cálculo de Prigozhin: “ao criar esta marcha, denunciando as capacidades do exército e sublinhando a sua capacidade e a dos seus homens, e dado que goza de uma grande popularidade na Rússia”, o líder da Wagner assumiu que “alguns sectores intermédios do comando se juntariam” à rebelião.
Comando militar com destino incerto
A verdade é que a coluna acabaria por inverter a marcha, abandonando os planos de chegar a Moscovo que exigir uma mudança na liderança das forças armadas. Assim, aquilo que parecia o início inegável de uma guerra civil que levou o Ocidente a temer a desintegração violenta e desordenada de uma potência nuclear redundou num acordo inesperado e do qual ainda se conhecem poucos detalhes.
Com a mediação do presidente Lukashenko, Putin e Prigozhin acertaram a retirada da coluna, com o Kremlin a garantir que nenhum dos homens que a compunha seria acusado, depois de terem sido acusados de traição. Quanto ao líder da Wagner, irá para a Bielorrússia, embora pouco mais se saiba.
Já o resto do corpo de mercenários deve regressar às suas bases na Ucrânia, devendo dar seguimento ao decreto de lei recente do Ministério da Defesa russo a obrigar à integração das forças não-regulares no exército. Este terá sido um dos motivos, de acordo com os especialistas ouvidos pelo JE, para a tentativa de rebelião de Prigozhin.
Com a incorporação da Wagner no exército regular, o antigo ‘chef’ do Kremlin, como é conhecido, tornar-se-ia operacionalmente irrelevante, o que pode ajudar a explicar os ataques contínuos ao ministro Shoigu e ao chefe do Estado-Maior Gerasimov. Diana Soller, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais, relembra o objetivo de Prigozhin de afastar estes líderes militares, algo que não está fora da equação, até pelas palavras do porta-voz do Kremlin, Dimitri Peskov.
“Estes assuntos são da exclusiva competência do Comandante Supremo [Putin], de acordo com a Constituição russa. Portanto, é improvável que algum desses tópicos tenha sido discutido” com Prigozhin, afirmou Peskov, não afastando a possibilidade. Esta segunda-feira haverá reuniões ao mais alto nível no Kremlin, onde o futuro dos generais de Moscovo pode estar em jogo. Até porque “ninguém sai bem” da insurreição, acrescenta Francisco Seixas da Costa.
Kiev vai do regozijo à frustração
Para a Ucrânia, aquilo que parecia uma oportunidade de ouro para ver o seu invasor autoflagelar-se pode transformar-se numa aceleração da agressão, de forma a acalmar o descontentamento interno russo. Se um real confronto civil beneficiaria claramente a defesa ucraniana, este compromisso de curto-prazo ameaça levar Putin a fazer algumas cedências aos ultranacionalistas que pretendem ver a Ucrânia subjugada.
Dado o apoio mais junto da extrema-direita russa que Prigozhin reúne, a sobrevivência do Kremlin pode agora ter de passar por uma vitória rápida na Ucrânia ou, no mínimo, por um aumento da intensidade na frente de batalha, projeta Diana Soller.
“Não entremos em euforias, a Rússia é um país muito grande, com muita gente e armamento”, recorda José Milhazes. E, “sem esperar milagres”, o antigo correspondente em Moscovo teme que o impacto na linha da frente possa ser reduzido em termos operacionais, mas “vai haver quebra de moral, isso é evidente”.
“Outra questão é como as forças Wagner vão ser absorvidas no exército regular e para onde vão”, acrescenta.
Kiev regozijou, através de várias contas nas redes sociais de oficiais ucranianos, nas primeiras horas da marcha da coluna Wagner, mas Zelenskyy parecia visivelmente desiludido no final da noite de sábado. Ainda assim, já no domingo o assessor presidencial Mikhailo Podoliak classificou o dia como “uma humilhação” para Moscovo, mostrando as fissuras no regime autocrático e oligárquico de Putin.
Rublo em queda inunda a economia
No plano económico, que alguns analistas também apontam como um motor da tentativa de rebelião, o rublo voltou a colapsar à medida que os mais ricos de Moscovo e S. Petersburgo abandonaram o país em debandada.
A moeda russa tem sofrido nos últimos meses, pressionada pelos recuos das matérias-primas, sobretudo o petróleo e o gás natural, após ter resistido surpreendentemente bem à fase inicial das sanções ocidentais. No entanto, sexta-feira à noite, quando arrancou a rebelião e os medos de uma guerra civil se exacerbaram, a divisa estava já em clara tendência de queda, agravando a trajetória das duas semanas anteriores e fechando em 84,7 face ao dólar.
Para segunda-feira, teme-se que a pressão se agrave sobre a moeda russa, com os mercados a temerem a incerteza que rodeia a situação política do país.
Por outro lado, há relatos recentes de vários meios de comunicação internacionais que os pagamentos às famílias dos combatentes Wagner mortos na Ucrânia estariam a pressionar o sistema financeiro russo, ao inundar a economia com dinheiro. Cada combatente morto significa 5 milhões de rublos (54.828,52 euros) de compensação à sua famílias, quantia paga em dinheiro corrente.
A confirmarem-se os 20 mil homens mortos na Ucrânia, a Bloomberg contabiliza mais de mil milhões de euros a inundarem a economia russa, com dados do banco central a confirmarem a tendência crescente de uso de dinheiro vivo. Esta economia paralela também reduz as receitas de Moscovo, um resultado particularmente preocupante numa altura em que o esforço de guerra obriga a um orçamento robusto na defesa.
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