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Primeiro-ministro de Cabo Verde: “Aquilo que defendemos não é um cheque em branco”

Diversificação da economia é a aposta do governo cabo-verdiano para fazer a recuperação pós-Covid, com perdão da dívida e parcerias com privados.
4 Abril 2021, 17h00

Empenhado em continuar a governar o país após as legislativas de 18 de abril, o primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, líder do Movimento para a Democracia (MpD), vê na crise provocada pela pandemia de Covid-19 a oportunidade para conduzir uma série de transformações estruturais na economia do país, mantendo a aposta na atração de investimento estrangeiro seguida nos últimos anos.

 

Na intervenção que gravou para a assembleia geral das Nações Unidas, em setembro de 2020, enumerou prioridades para Cabo Verde sair da crise provocada pela Covid-19 com uma economia muito mais diversificada. Como é que o investimento estrangeiro pode ajudar esse objetivo?
Pode e deve. Desde o início da governação definimos o investimento estrangeiro como fator importante para acelerar o crescimento, criar emprego e dinamizar a economia – concomitantemente com a criação de condições para o fomento empresarial nacional. Em termos de vontade política, de mecanismos e incentivos, temos todas as condições criadas e temos estado a desenvolver investidas para atrair investimento direto estrangeiro. Por exemplo, no sector do turismo, o mais marcante da economia cabo-verdiana, temos diversificado em termos de destinos. São Vicente é hoje uma ilha que consegue atrair investimentos, nomeadamente, a construção do hotel Sheraton com capital americano. Mas temos outras intenções de investimento que já se estão a concretizar, por exemplo, no setor da aquacultura, através de uma empresa norueguesa, a Nortuna, já está em fase de instalação.

 

A transformação digital, a transição energética e a estratégia da água para a agricultura, associada a energias renováveis, são oportunidades para parcerias público-privadas do Estado com grupos privados estrangeiros e nacionais?
Constituem e tem sido feito não só um pacote de incentivos para essas áreas como a atração de investidores. Falamos de sectores ligados a transformações estruturantes para o país. Na transição energética temos a ambição de atingir 50% até 2030 de penetração das energias renováveis. Lançamos editais de forma regular e já temos compromissos de empreendedores e investidores nesse sector. Na economia digital, onde Cabo Verde tem um potencial grande, investimos no ensino desde o primeiro contacto das crianças e adolescentes com a computação e a robótica até às universidades, empresas e toda a envolvente de um ecossistema que queremos que seja muito pujante. Tem havido muito dinamismo nesta área. Em terceiro lugar, a agricultura. Cabo Verde tem pouca terra arável e por isso definimos que a agricultura tem que ser inteligente, com capacidade de aproveitar o máximo do potencial e as capacidades que temos, que são reduzidas. Isto pressupõe uma estratégia de água, concomitantemente com aquilo de que precisamos para estar menos dependentes das chuvas. Por isso é que o investimento nas energias renováveis associadas à dessalinização das águas está em curso. Temos um pacote muito vasto e é uma área onde o investimento privado pode entrar em força. Outro sector é a economia azul, onde o potencial é enorme. Somos um país arquipelágico, com mais mar do que terra, e por isso temos condições para aproveitar bem todas as áreas da fileira identificadas como economia azul.

 

E o aproveitamento da energia das ondas? Há oportunidades de negócio nesse sector?
Sem dúvida. Estamos também a trabalhar em investigação e desenvolvimento, onde o papel do Estado é ter boas parcerias, nomeadamente através da Universidade Técnica do Atlântico, que foi constituída há pouco tempo. Todos os sectores e as áreas que possam contribuir para aumentar de forma significativa e acelerar a transição energética para Cabo Verde são prioritários, por razões óbvias. Somos um país que importa praticamente tudo o que consome em termos de energia e combustíveis fósseis, que têm flutuações de preços e acabam por penalizar fortemente a balança de pagamentos e também a própria fatura energética. Reduzir é essencial. A nossa meta não é só chegar a 2030 aos 50% de penetração; é chegar, também, a 2040 aos 100%. Isto pressupõe um leque de ofertas, desde a solar e eólica, à energia das ondas do mar e outras, incluindo a mobilidade elétrica, onde a meta é chegar a 2040 com 100%. Já temos algumas iniciativas na área, incluindo investimentos privados para introduzir mais cabos elétricos e reduzir na gasolina e gasóleo.

 

No índice de liberdade económica da Fundação Heritage, relativo a 2021, Cabo Verde está na 77.ª posição, liderando entre os países africanos e ficando só atrás de Portugal, que foi o 55.º, entre os lusófonos. Acredita que esse bom cartão de visita para o investimento externo sairá intocado da crise pandémica?
Já passámos um teste importante. Realizámos eleições autárquicas em pandemia e funcionaram bem. A democracia não foi confinada. Os cabo-verdianos e os poderes públicos têm uma consciência muito grande de que a democracia é o nosso petróleo e o nosso diamante. Devemos cuidar, aprimorar e proteger para que esteja sempre pujante, pois o país depende muito da confiança das suas relações com parceiros e investidores, depende da estabilidade e da segurança. E o ambiente de democracia e liberdade garante, pelo menos, parte daquilo que pensamos ser as condições para o desenvolvimento. É algo transversal e consensual em Cabo Verde e há que proteger e aprimorar cada vez mais.

O apelo que tem feito ao perdão da dívida externa não irá beliscar a imagem de Cabo Verde junto dos principais parceiros económicos?
A pandemia da Covid-19 impôs custos excecionais e extraordinários a todo o mundo. As economias não estavam e não estão preparadas para suportar esses custos. De tal forma que a União Europeia teve de avançar com uma bazuca financeira, de mais de 700 mil milhões de euros. Países como Cabo Verde, e praticamente todos os estados insulares, são fortemente penalizados, como o resto dos países africanos, que não têm poupanças suficientes, nem orçamentais nem financeiras, para fazer face ao desafio. E como podem fazem face aos custos excecionais? Têm de aumentar o endividamento externo. E esse não pode ser um estrangulador do processo de retoma, nomeadamente do desenvolvimento sustentável. Com estes argumentos, Cabo Verde defende um perdão da dívida externa ligado ao uso dos recursos que serão libertos para o financiamento das áreas de transformação estrutural. Em vez de estarmos a liquidar o serviço da dívida, usar esses montantes, acordados, para financiar a transição energética, o aumento da economia azul, a estratégia da água, o desenvolvimento do capital humano – um conjunto de transformações estruturais que tornam o país mais resiliente. É a nossa perspetiva, não só em Cabo Verde, mas também aquilo que defendemos para o resto do continente africano. Não é um cheque em branco, mas sim um investimento para obtermos um retorno muito mais forte e sustentável.

 

As previsões de crescimento económico de 4,5% em 2021 estão dependentes do controlo da pandemia em Cabo Verde e dos níveis de confinamento noutros países. Sendo difícil controlar essas variáveis, a maior prioridade tem mesmo de passar por diversificar a atividade económica e desenvolver capital humano?
A diversificação é um processo por vezes moroso porque não depende apenas dos governos e dos incentivos, mas também das empresas e dos investimentos, e por isso estamos a criar oportunidades. Estamos muito empenhados na economia azul, e já temos a resposta da Nortuna e outros estão a ver o sector do mar como uma grande oportunidade. Outro fator de diversificação é o próprio turismo. Queremos um turismo não só de sol, praia e mar, mas de natureza, de experiência e de aventura que as ilhas podem oferecer. Incluo também a economia digital, que tem um potencial de desenvolvimento muito forte. É nessas áreas em que podemos contar com forte investimento privado e a prazo dar uma viragem para uma economia menos dependente do turismo.

 

Tal como Portugal, Cabo Verde depende muito do turismo como acelerador económico. Olhando para o sector, que até chegou a uma redução da taxa turística de 97,4% em janeiro, face a 2020, para 21 mil euros, pela quase nula presença de estrangeiros, como pretende o Governo reverter a situação nos anos que se seguem? Vai manter a estratégia adotada no período pré-pandemia?
Estamos a posicionar Cabo Verde como destino turístico seguro do ponto de vista sanitário. É a nossa primeira prioridade. A retoma vai depender muito dos níveis de confiança daqueles que nos visitam. Todos os aeroportos internacionais já estão classificados com certificação internacional de segurança sanitária. Sal e Boa Vista, que são as grandes ilhas turísticas, têm estado a investir na qualificação dos recursos humanos e centros de saúde. Temos em compromisso a construção de um hospital de referência na Cidade da Praia com equipamento tecnologicamente avançado, pois esse é um fator fundamental: a confiança. Em segundo lugar, criámos todas as condições para que a retoma se dê de uma forma que possa fazer com que os turistas possam regressar progressivamente. Tivemos alguns da Polónia e da República Checa, mas são pequenos impulsos. A retoma vai depender muito do que está a acontecer na Europa, que é o principal centro emissor de turistas para Cabo Verde. E o pós-pandemia vai exigir uma diversificação de destinos internos de turismo para podermos aproveitar todas as potencialidades, nomeadamente mais virado para a natureza e que não provoque tanto ajuntamento. Lançámos uma iniciativa de turismo nas aldeias rurais para criar condições de comunidade, de funcionalidade, para que todas as ilhas possam receber um turismo diferenciado.

 

Como classifica o combate de Cabo Verde à Covid-19? Teria alterado alguma coisa no plano estratégico? Que erros houve?
Todos fomos postos à prova. Não havia experiência anterior e isto é válido tanto para Cabo Verde como para todos os países do mundo. Foi um choque intenso, que em pouco tempo desestruturou muitas coisas. É evidente que erros de processo existiram e existirão sempre até haver um domínio total deste vírus. Mas Cabo Verde fez um bom combate. Encerrámos as fronteiras internacionais muito cedo, a começar com Itália, de onde vem uma parte importante de turistas. Em fevereiro, antes da declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial de Saúde, Cabo Verde já tinha tomado algumas medidas. Fomos contendo, internamente, a circulação entre as ilhas. O sector da saúde funcionou bem e tem dado boa resposta em termos de tratamento, condições preventivas e realização de testes. Somos o país africano que mais testes realiza. Em termos de proteção dos rendimentos e do emprego colocámos de pé apoios que envolvem milhões em termos de financiamento, e temos estado a evitar uma escalada descontrolada de desemprego e situações de pobreza extrema. Tem sido muito exigente, não só na parte sanitária e saúde, mas também na parte económica e social.

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