Olhando para Portugal, os meios de comunicação têm transmitido informações perturbadoras de violência doméstica, tanto por indicação de denúncias como de número de homicídios. É ainda sugerido que a situação se agravou nos períodos de confinamento que terão deixado as vítimas mais vulneráveis aos agressores. Essa hipótese merece a nossa reflexão, mas como qualquer questão que atinja a família, tem de ser compreendida de forma sistémica, relacional e no seu devido contexto.

Em primeiro lugar, o aumento do número de denúncias pode ser alarmante à primeira impressão, mas pode eventualmente ser um sinal positivo, quer pelo maior acesso a informação, quer pela maior consciência e coragem das vítimas.

Em segundo lugar, a sensibilização pública costuma focar-se quase exclusivamente nas vítimas do sexo feminino e na violência entre o casal, mas existem factores que espoletam diversos tipos de violência e que podem vitimizar qualquer membro da família.

Se já há décadas nos deparamos com os problemas da solidão e abandono agravados pelas condições da vida pós-moderna e urbana, num ano marcado por confinamentos, distanciamento social, decréscimo de rendimentos e ansiedade, essas situações de solidão ganharam novas proporções. Os idosos sentiram estas condições de forma crua, sobretudo se experimentaram um internamento longo, incerto e solitário. E quantos não terão sido negligenciados pelas próprias famílias, por motivos financeiros ou de carácter? Essa é uma resposta muito mais difícil de verificar e denunciar.

O que nos leva a uma distinção essencial em matéria de violência: a física ou visível, mais denunciada e comprovável; e a violência psicológica ou invisível, que se perpetua discreta e que corrói as relações familiares, deixando danos de longo prazo. A violência física é mais proeminente de homens contra mulheres, até por razões biológicas. Já a violência psicológica é menos linear e tanto pode ser perpetrada pela mulher contra o homem, como, por exemplo, de pais contra filhos, ou de filhos contra pais.

Os contextos social, económico e cultural das nossas sociedades também clarificam a análise deste problema. Destaque-se que a sociedade e a família assentam hoje numa profunda idealização afectiva das relações e no narcisismo individual que tende a instrumentalizar o outro, mesmo que involuntariamente. Desde os primeiros namoros fica evidente o perfil disfuncional de homens e mulheres inseguros, possessivos, egoístas e sem grandes propósitos de altruísmo e cooperação, companheirismo e fidelidade.

Se adoptarmos a lente do cepticismo antropológico, arrepiamos caminho para entender que a extinção absoluta da violência é inatingível, mas que a defesa de princípios e instituições sociais que herdámos do passado e que foram testados por muitas gerações, têm vindo a contribuir, em grande medida, para o equilíbrio, subsistência, paz social e segurança.

A violência doméstica não se explica por um só factor, nem deve ser capturada por campanhas ideológicas que semeiam a luta de todos contra todos dentro da própria família e em sociedade. Em alternativa, importa entender que tanto a fragilização das relações conjugais, como a disfuncionalidade da organização socioeconómica face às necessidades familiares são sementes da espiral de violência física e psicológica que abala a casa de muitas famílias.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.