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Catarina Martins: “Acho estranho que alguém de esquerda queira um homem de direita na Presidência”

Bloco de Esquerda mantém a disponibilidade manifestada no início da legislatura para acordos de governação com o PS, mas critica apoio público do primeiro-ministro à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa.
  • catarina_martins_oe_2020
    António Cotrim/Lusa
15 Junho 2020, 08h13

A coordenadora do Bloco de Esquerda considera natural o aparecimento de uma candidatura presidencial na sua área política, apontando a Marcelo Rebelo de Sousa conservadorismo em questões sociais e um “papel discreto de defesa da burguesia ligada ao sistema financeiro português”.

Logo no início da crise pandémica, Rui Rio deixou no ar a hipótese de um governo de salvação nacional, acabando por retrair-se. Para o Bloco de Esquerda (BE), tendo em conta os desafios desta legislatura, esse é um cenário a considerar?

O Bloco propôs um acordo ao PS depois das eleições. Não foi por causa da crise pandémica.

As circunstâncias mudaram.

As circunstâncias mudaram e, porém, só dão mais força àquilo que foram os grandes eixos da proposta que fizemos ao Governo para um acordo de governo: o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a legislação do trabalho e o combate à precariedade. Diria que o BE mantém disponibilidade para estudarmos o que é um Estado Social que defende o país. Julgo que quando Rui Rio está a falar de um governo de salvação nacional está a falar de algo diferente – de um acordo de regime para defender os grandes interesses económicos. É normalmente disso que o centrão fala.

Existe uma espécie de luta pela ‘alma’ deste Governo entre o PSD de Rio e o Bloco de Esquerda?

Não lutamos pela ‘alma’ de nada, nem de ninguém (risos).

Ou pela orientação da governação.

Trata-se de um Governo minoritário que tem que negociar. Pela nossa parte estabelecemos princípios claros dessa negociação, que é aquilo que eu diria ser de esquerda. Ou seja, defender quem vive do seu trabalho, os salários, e defender os serviços públicos, que são salário indireto e condição de democracia. Disputamos a capacidade de ter medidas que vão nesse sentido, seguramente. Disputámos sempre. A única diferença é que eventualmente houve um tempo em que a direita achou que a esquerda não podia disputar nada, mas já percebeu que não é assim.

Qual foi a principal coisa que se perdeu com o fim da “geringonça”?

Perdemos o horizonte de para onde vamos. Em 2015, quando fizemos o acordo, havia horizonte para uma série de matérias. Havia horizonte sobre o que ia acontecer com o IRS e com o salário mínimo nacional, existiam medidas sobre universalidade, como os manuais escolares gratuitos ou os passes para os transportes públicos. Havia um horizonte sobre estas medidas, que agora se perdeu e o Governo parece confortável – e julgo que isso é perigoso – com uma espécie de negociação permanente, que tanto pode ir para um lado como para o outro. E o horizonte é muito importante, porque dá continuidade e segurança à população. Faz falta um horizonte claro e debater publicamente. Isso é democracia. A grande força dos acordos feitos naqueles quatro anos não foram as reuniões de gabinete que existiram para negociar cada medida. Foram o facto de serem horizontes públicos, debatidos por toda a gente. Toda a gente sabia quais eram as convergências, para que caminho é que iam e isso reforça a democracia. Reduzir a política a estar a pensar em que momento é possível estar a negociar uma coisa para alguém para viabilizar seja o que for parece-me pequenino e fragiliza a confiança das pessoas na democracia. Ainda assim, conseguimos algumas coisas de horizonte nesta legislatura. A medida em que nos conseguimos aproximar mais disso foi o reforço do SNS. Conseguimos não só o reforço orçamental para este ano como algum horizonte de reforço orçamental, nomeadamente de contratações, de acesso à saúde e de equipamentos. Conseguimos fazer esse acordo para um ano bastante reforçado, mas também com horizonte para o ano seguinte. Isso permite-nos até no Orçamento Suplementar ter medidas que estavam acordadas para 2021, e que com a pandemia se tornaram a mais urgentes.

No que toca às presidenciais existe uma unanimidade dos principais partidos em torno de Marcelo Rebelo de Sousa. A apresentação ou o apoio de uma candidatura é uma prioridade para o BE?

Posso dizer desde já que o Bloco não apoiará Marcelo Rebelo de Sousa. É um homem de direita, com quem tenho as melhores relações institucionais – não está isso em causa, sabemos bem a diferença entre este Presidente e o anterior Presidente, que achava que a esquerda não podia determinar políticas. Registamos isso, mas Marcelo Rebelo de Sousa é um homem de direita. Acho estranho que alguém de esquerda queira um homem de direita na Presidência da República. É um conservador, do ponto de vista das liberdades individuais esteve contra os grandes avanços emancipatórios das mulheres e das várias minorias em Portugal, dos direitos individuais ao longo do tempo. Não é alguém que possa responder a esse caminho emancipatório, que faz parte do legado da esquerda em Portugal e ainda bem. É um homem que do ponto de vista económico tem tido um papel discreto de defesa da burguesia ligada ao sistema financeiro português, e será sempre o oposto da ideia de uma maior regulação e ainda menos de um controlo público da banca.  É um homem que se opôs a que a Lei de Bases da Saúde pudesse ser taxativa naquilo que António Arnaut tão bem defendia, isto é, de que se um hospital é público tem que ser o Estado a geri-lo. Sempre preferiu a contratualização com privados à decisão do SNS público. Ainda bem que foi possível não lhe fazer a vontade integralmente. Acho estranhíssimo que alguém que se considere de esquerda, ainda que possa ter relações institucionais seguramente boas, veja Marcelo Rebelo de Sousa como um candidato de quem acredita num Estado Social forte.

Depreende-se que haverá uma candidatura à esquerda com apoio do BE.

É natural que assim seja.

Admite que será uma candidatura com poucas hipóteses de vencer?

Defendemos aquilo em que acreditamos. Era o que mais faltava que se desistisse de defender aquilo em que se acredita com base na ideia de que as decisões estão tomadas antes da hora. É preciso defender o projeto para o país que se tem em cada momento e o BE fará sempre esse caminho. Não nos acobardamos.

Também é tacticamente importante que a contestação a Marcelo não fique toda nas mãos de André Ventura?

André Ventura não contesta Marcelo Rebelo de Sousa. Vive muito bem com o sistema financeiro, estava no PSD quando foi a resolução do Banco Espírito Santo (BES), e no seu programa tem a privatização dos hospitais. Homem mais de regime do que André Ventura não existe. O que ele tem é outra coisa. Tem um discurso populista e racista que, com certeza Marcelo Rebelo de Sousa não tem. Não estamos a falar de projetos do ponto de vista da estrutura económica, estamos a falar de outra coisa, que é de uma tentativa de bolsonarização da política portuguesa, que André Ventura representa e Marcelo não, mas o papel da esquerda é ter um projeto para o país mais vasto do que essa denúncia. Isso seria muito pequeno e a esquerda tem que ter a capacidade de dizer como deve ser o caminho para o país, como é que se responde a este momento tão difícil, e isso é um trabalho vasto e importante.

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