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Marinha Grande: Vidro descarboniza em 2027, 250 anos depois de apoio do Marquês de Pombal

É um investimento de 100 milhões de euros para trocar o gás natural usado nos fornos vidreiros por hidrogénio verde. Há mais de 250 anos, um empresário inglês (que enriqueceu depois do terramoto de Lisboa de 1755) foi convidado por Sebastião José de Carvalho e Melo para salvar a indústria de vidro da Marinha Grande.
Paul Harrison/Creative Commons
27 Agosto 2024, 07h30

Há mais de 250 anos, um empresário britânico foi convidado pelo Marquês de Pombal a salvar a Fábrica de Vidro da Marinha Grande, distrito de Leiria. Guilherme Stephens tinha sofrido na pele com o terramoto/tsunami de Lisboa em 1755, mas viu uma oportunidade de negócio: a produção de cal que viria a ser necessário para reconstruir as casas da capital. Primeiro, ficou falido, depois, enriqueceu. Forjou uma boa relação com Sebastião José de Carvalho e Melo que o convidou para salvar a indústria vidreira nacional.

A escolha da Marinha Grande para esta fábrica deveu-se, em parte, à existência de grandes quantidades de combustível para os fornos vidreiros: a madeira do pinhal do rei D. José I em Leiria. Atualmente, os fornos são alimentados a gás natural, mas a ambição é a descarbonização da indústria, alimentando os fornos com hidrogénio verde, produzido a partir de fontes de energia renovável.

É este o objetivo da Rega Energy, que tem planeada uma central de produção de hidrogénio verde na Marinha Grande para abastecer três grandes empresas produtoras.

“Estamos a desenvolver neste momento dois projectos que estão em fase mais avançada do lado do hidrogénio. Um na Marinha Grande para a indústria de vidro. E outro em Coimbra para a indústria do cimento. O mais avançado é este da Marinha Grande. Contamos, caso consigamos fechar o acordo com estes clientes, que são a Crisal, BA Glass e Vidrala, vir a fornecer o primeiro hidrogénio verde aos clientes, à indústria de vidro” no início de 2027, disse, ao Jornal Económico, João Rosa Santos diretor comercial da Rega Energy. O investimento supera os 100 milhões de euros.

Este é um projeto de autoconsumo coletivo, com fornecimento direto ao cliente final. “É uma unidade de produção de hidrogénio muito próxima dos clientes e depois são cerca de uma dúzia de quilómetros até chegar a cada cliente”.

O gestor explica que o modelo de negócio “assenta na produção, na distribuição, no fornecimento” do hidrogénio verde. “A receita é com base no que nos pagam no recebimento dessa energia. Nós somos o investidor da central e a nossa remuneração é com base na energia que vendemos. São investimentos 100% privados, parte equity e outra parte é dívida, ou seja, investimento, investidores e banca”.

No caso da Marinha Grande, uma única central serve para abastecer várias fábricas. Aqui, a “proximidade” é chave, pois a procura está “relativamente próxima”.
A companhia tem outro projeto de hidrogénio verde para a cimenteira da Cimpor em Souselas, distrito de Coimbra, num investimento a rondar os 50 milhões de euros. No caso de Coimbra, uma cidade “pouco industrializada”, mas a cimenteira da Cimpor “como consome muita quantidade de energia, também precisa de grandes quantidades de hidrogénio”.
Na Marinha Grande, a empresa prevê ter uma capacidade de eletrólise de 40 MW, para produzir 190 GWh por ano. Para Souselas, está previsto um eletrolisador com 25 MW.
A empresa também tem dois projetos de biometano. “Temos dois tipos de projeto de biometano. Um em que aproveitamos o biogás e fazemos a atualização para o biometano, tipicamente cinco milhões de euros. E depois os projetos de aproveitamento de resíduos agrícolas e pecuários, onde aí cada projeto já está na ordem dos 50 milhões de euros, entre 30 a 50 milhões, dependendo da distância, não só dos produtores agrícolas e pecuários para a central de metano, e depois também da central até à ligação à rede de gás natural”.
Em termos de prazos de entrada em operação, a expetativa é que o projeto da Marinha Grande esteja concluído em 2027, com o de Coimbra a estar “numa fase mais prematura das negociações”.

“Somos produtores de energia verde, essa energia para a qual também precisamos de eletricidade para a produzir. A empresa é 100% portuguesa, sediada em Lisboa, com cerca de 40 funcionários, com uma delegação na Maia, já com mais de 15 funcionários e uma pequenina delegação em Coimbra. ainda que os investidores sejam estrangeiros”, disse sobre os franceses da Swen Capital Partners, produtor de bioetanol, e promotor de renováveis.

“Temos esta capilaridade porque os nossos clientes estão na Beira Litoral e necessitamos de estar próximos dos nossos clientes. O consumo centra-se entre o distrito de Leiria e o do Porto”, acrescentou.
Indústria vidreira nacional conta com mais de 300 anos

A história da indústria vidreira da Marinha Grande conta com  quase 280 anos de vida, mas a história da indústria em Portugal começa longe da cidade do distrito de Leiria.

Há mais de 300 anos, foi inaugurada a Real Fábrica de Vidros de Coina, no distrito de Setúbal, a mais de 150km a sul.

Esta iniciativa do rei D. João V tinha como objetivo diversificar a economia do reino, pois então o país não produzia.

Inicialmente, a fábrica pertencia à Fazenda Real, mas em 1731 teve várias administrações privadas. Entre eles, a do irlandês John Beare que transferiu a fábrica para a Marinha Grande, como recorda a Câmara Municipal do Barreiro.

A transferência, que acontece em 1747, nasce de uma aparente disputa sobre o uso de combustível para a produção de vidro: o rei proíbe o uso de madeira dos seus pinhais. Em alternativa, começou-se a importar carvão (hulha) de Inglaterra, mas prejudicou a rentabilidade do projeto.

A Marinha Grande não foi escolhida por acaso: tinha acesso a bastante matéria-prima, como a lenha, sílicas e argilas.

A fábrica entra em decadência e é então que o Marquês de Pombal convida Guilherme Stephens a assumir as rédeas, a mando do rei D. José I.

O empresário inglês já gozava de boas relações com Sebastião José de Carvalho e Melo e o monarca, pois tinham aceitado a sua proposta para uma fábrica de cal no vale de Alcântara em Lisboa, recordou o “Diário de Notícias” em 2019. A amizade entre os dois perdurou, mesmo após o Marquês de Pombal cair em desgraça.

A capital portuguesa tinha sido destruída pelo terramoto de 1755 e existia uma grande necessidade de materiais para reconstruir Lisboa.

Já em 1769, sob a batuta do inglês Guilherme Stephens, a fábrica ganha o estatuto de Real Fábrica de Vidros, elevando o seu prestígio.

“O estabelecimento de uma unidade de fabrico manual de vidros e vidraças no lugar da Marinha Grande deveu-se à necessidade de grandes quantidades de combustível para os fornos vidreiros, solução que passou a ser garantida pela proximidade do pinhal do rei ou de Leiria, cuja dimensão, administração estatal e recursos eram uma segurança para fixação de uma indústria que consumia enormes quantidades de lenha para o seu funcionamento”, recorda Jorge Custódio, no seu relatório final para um Programa de Valorização Cultural, e de Ocupação Funcional, do espaço da Fábrica de Vidros da Marinha Grande.

Guilherme Stephens morre em 1803 e o seu irmão João Diogo Stephens fica a liderar o projeto até 1825, ano da sua morte.

“No final da sua vida, Diogo Stephens deixou a Fábrica de Vidros com todo o seu património e pertences ao «Reino» de Portugal, para «benefício» da «gente e famílias empregadas neste empreendimento», assim como «a prosperidade, a estabilidade, e a permanência acompanhem esta útil e bela fábrica, a benefício da Marinha Grande» (Testamento, 24 de Maio de 1825). Este acontecimento tornou-se simbólico e foi igualmente um momento genesíaco da comunidade vidreira e da história da Marinha Grande”, escreveu Jorge Custódio.

O Estado português “acolheu a herança dos Stephens ao longo de cerca de 180 anos, mantendo a sua responsabilidade pública de herdeiro e detentor da Fábrica de Vidros, assumindo o papel de um proprietário prudente a quem era devido resolver, por um lado, a utilidade industrial da fábrica de vidros e sua rentabilidade económica e social, procurando evitar os efeitos nefastos para a economia e para os orçamentos de Estado e, ao mesmo tempo, perpetuando-a em nome da continuidade da indústria naquele lugar ao serviço dos vidreiros da Marinha Grande, dando cumprimento aos valores sociais determinados no texto dos testamentos dos Stephens, o que, em tempos de crise, também constituía uma garantia de trabalho e assistência aos seus artífices, operários e respectivas famílias, através de subsídios estatais ou soluções de oferta de trabalho no Pinhal de Leiria”, acrescentou.

A FEIS – Fábrica-Escola Irmãos Stephens acabou por fechar em 1992. ““Fábrica Velha” fechou há 30 anos e ainda se faz o luto na Marinha Grande”, escreveu o Jornal de Leiria em novembro de 2022, dando conta que foi o “início do fim da indústria de vidro manual no concelho”. “As indústrias de vidro de embalagem e de cristalaria automatizadas da Marinha Grande prosperam hoje, mas soprar e manusear o vidro de forma artesanal é um ofício que já poucos dominam”.

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