A União Europeia acostumou-nos a constar do pódio dos indicadores democráticos a nível global. No entanto, há indícios contrários, tanto através do recrudescimento de fenómenos antigos (populismo, islamofobia e euroceticismo), como de fenómenos emergentes (discriminação contra LGBTQ+ e as restrições e suspensões de direitos humanos essenciais), decorrentes do controlo da pandemia de Covid-19.
No Índice de Democracia 2020 do The Economist Intelligence Unit, os autores invocam os votos de casamento, na parte em que os noivos prometem amar-se e respeitar-se na saúde e na doença, para ilustrarem o contrário, apresentando a democracia a sucumbir à saúde e à doença.
Sem grandes surpresas, no top cinco do ranking constam três países do Norte da Europa: Noruega (classificada em 1° lugar), Islândia (2ª posição) e Suécia (3ª posição). Também sem estranheza, nas posições opostas do ranking constam um conjunto alargado de países do leste europeu, entre os quais: Bulgária (classificada como #52), Polónia (classificada como #50), Hungria (classificada como #55), Croácia (classificada como #59) e Turquia (classificada como #104).
Relativamente aos países lusófonos, nos 4 eixos de análise: o Processo Eleitoral e o Pluralismo, o Funcionamento do Governo, a Participação Política, a Cultura Política e as Liberdades Cíveis, o Índice da Democracia revela que nenhum país de língua portuguesa cumpre os critérios de “democracia plena”.
Portugal, apesar de ser o país lusófono mais bem posicionado no “ranking”, caiu 4 posições, da 22.º para a 26.º, tendo o Funcionamento do Governo, a Participação e a Cultura Política contribuído negativamente para a nota final. No mesmo sentido, Cabo Verde caiu da 30.ª para a 32.ª posição, com uma pontuação global de 7.65 (7.78 em 2019) e Timor-Leste perdeu três lugares, passando do 41.º para 44.º e de uma pontuação de 7.19 para 7.06.
Curiosamente, o Brasil subiu 3 lugares, da 52.ª para a 49.ª posição, evoluindo de 6.86 para 6.92 pontos.
De resto, segundo Diamond (2017), “as condições globais para liberdade e democracia estavam já claramente em tendência decadente”. Com efeito, previamente à pandemia, o autor já demonstrava preocupação com a recessão da democracia no “núcleo das democracias liberais do mundo: Europa e Estados Unidos”. Dois anos antes, em 2015, Diamond referia uma queda da democracia, não devido a crises económicas, mas por causa da “governação corrupta e inepta que viola os direitos individuais e o Estado de Direito”.
Posteriormente, Bárd & Pech (2018) definiram a Hungria como “ditadura branda” ou “pseudo-democracia” e apontavam que o seu estudo seria da maior importância para a União Europeia evitar que futuros Estados-Membros “experienciassem um processo deliberado, semelhante de retrocesso democrático e do Estado de Direito.
No mesmo tom, Kochenov & Bárd (2019) consideram que “a União Europeia e os Estados-Membros pareciam estar a fazer o menos possível contra os retrocessos do Estado de direito em algumas das partes constituintes da União Europeia”. Afirmavam mesmo que “há um desacordo total de todos os atores envolvidos sobre como resolver o impasse atual” e que as instituições da União Europeia criaram “soft law de qualidade questionável” (Kochenov & Bárd, 2019).
Importa referir que o Estado de Direito e as suas instituições são considerados uma parte fundamental das nações e democracias. As constituições contêm a lei fundamental dos Estados, e o Estado de Direito dita a aplicação desses princípios acima de todas as outras leis (Tommasoli, n.d.). Os pensadores do Estado de Direito vêm desde a antiguidade clássica e incluem nomes como Aristóteles (350 aC), Locke (1689), Montesquieu (1748), Dicey (1885), Hayek (1944), Fuller (1964) e Rawls (1971). Não obstante, nada parece estar garantido, ainda para mais em período de franca mutação tecnológica com a redefinição das fronteiras de liberdade e privacidade.
Referências:
Aristotle, The Politics (c. 350 BC), Stephen Everson (trans.), Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
Bárd, P. & Pech, L. (2019). How to build and consolidate a partly free pseudo democracy by constitutional means in three steps: The ‘Hungarian model’. RECONNECT. Working Paper No. 4 — October 2019.
Diamond, L. (2017). When Does Populism Become a Threat to Democracy? FSI Conference on Global Populisms. Stanford University, November 3-4, 2017.
Diamond, L. (2015). In Search of Democracy. Routledge.
Dicey, A.V. (1982) [1885]. Introduction to the Study of the Law of the Constitution, London: McMillan and Co. Page numbers are from the 1982 version based on the 8th edition (1915), Indianapolis: Liberty Classics.
Fuller, L. (1964). The Morality of Law, New Haven: Yale University Press.
Hayek, F.A., 1972 [1944], The Road to Serfdom, Chicago: University Of Chicago Press.
Kochenov, D. & Bárd, P. (2018). Rule of Law Crisis in the New Member States of the EU: The Pitfalls of Overemphasising Enforcement. RECONNECT. Working Paper No. 1 — July 2018.
Locke, J. (1689). Two Treatises of Government, P. Laslett (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
Montesquieu, C. (1748). The Spirit of the Laws, A. Cohler, C. Miller, and H. Stone (eds.), Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
Rawls, J. (1999). A Theory of Justice, Cambridge: Harvard University Press.
[i] The Economist Intelligence Unit: EIU. (2020). Democracy Index 2020: In sickness and in health?. Londres
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