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E tudo a água levou

Ajudar a salvaguardar a sociedade das calamidades potenciais é cuidar do meio ambiente. Não se limita às decisões dos governantes locais.
19 Março 2018, 07h15

A batucada das gotas pluviais dirige o ritmo dos nossos batimentos cardíacos, tal como o nosso fluxo sanguíneo parece ter-se alinhado com a corrente das ribeiras. Reina o sobressalto silencioso, calado e cativo em cada um de nós. Antes do 20 de Fevereiro, despertava a chuva com seu aroma inconfundível e universal, não mais que o sentido do olfato.

Um só dia foi o suficiente para tudo mudar, deixando uma marca indelével. E é o que nos enche a alma que procuramos exteriorizar. Oito anos volvidos, um concerto na Capela do Corpo Santo, orientado pela diretora artística Zélia Ferreira Gomes e seu ensemble juvenil Regina Pacis; constituiu uma homenagem em memória das vítimas da calamidade. Dias depois, um debate aberto, promovido pela Câmara Municipal do Funchal e dirigido por oradores ilustres, visou alertar a sociedade para o perigo latente. A vulnerabilidade geológica da ilha, o relevo montanhoso instigador e propício a resultar em aluviões, a possibilidade de participação em projetos de reflorestação, as dificuldades e limitações sentidas pelos bombeiros em momentos fulcrais e a resiliência da população madeirense foram alguns dos temas abordados.

Podemos entender os mesmos como brados, clamando repercussão. No rescaldo do acontecimento do 20 de Fevereiro, no estado caótico logo após o desastre; o sentimento de solidariedade e entreajuda espontâneas mobilizou  centenas de cidadãos madeirenses: oferta de roupa e alimentos, gestão dos bens oferecidos, limpeza do teatro, limpeza e desimpedimento de caminhos… gerou-se uma sinergia única e produtiva, puramente humana e apartidária. É um sentimento a aliciar para toda a vida. É essa ação conjunta capaz de mover montanhas. Devemos-nos deixar guiar por essa força, de forma constante, em ações anãs com consequências gigantescas.

Ajudar a salvaguardar a sociedade das calamidades potenciais é cuidar do meio ambiente. Não se limita às decisões dos governantes locais. Somos 250.000 mentes dotadas de inteligência com atitudes de impacto. Podemos escolher para que lado se faça pender mais a balança. O aumento da nossa segurança está nas mãos do agricultor, ao reconstruir os muros, sustentando seus poios, limpando o matagal nos seus terrenos, mantendo os mesmos cultivados e limpos; está no voluntário, empenhado na reflorestação das serras; está no arquiteto que recuse um projeto para o leito de uma ribeira, está no cidadão que se manifeste no orçamento participativo, lutando pelas suas convicções mais honestas. Está ainda no indivíduo que não hesite em alertar imediatamente os bombeiros ao constatar um incêndio, está no pai ou na mãe ao transmitir essas ideias aos seus filhos, está em cada um de nós.

Entre 1601 e 2018, ocorreram 42 grandes aluviões na Madeira. A maior calamidade foi a de 9 de outubro 1803, ceifando cerca de 1000 vidas humanas, das quais cerca de 600 no Funchal e 200 na zona histórica de Santa Maria. Continuaremos sempre pequenos perante a força da natureza.  Que possamos ser guiados pela experiência obtida com o que aconteceu no passado, pelo discernimento e pela hombridade.

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