Transição energética, sim, mas respeitando o ritmo de cada país. É esta uma das mensagens transmitidas pela Associação Lusófona de Energias Renováveis (ALER) antes da II Conferência de Energia da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) que vai ter lugar na próxima semana no Estoril.
Em conversa com o Jornal Económico, Isabel Cancela de Abreu, diretora-executiva da ALER, faz um ponto de situação da transição energética nos países da CPLP, destacando as oportunidades e os desafios.
A responsável deixa também elogios ao acordo de conversão de dívida entre Portugal e Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
O financiamento dos projetos de energias renováveis nos países da CLPP é um tema importante…
O financiamento é uma questão, é um tema comum: como é que se tem acesso ao financiamento? Obviamente que as necessidades são muitas e é importante os países conseguirem mobilizar e destacar para conseguirem aceder e canalizar o financiamento para o seu país e projetos.
Ainda assim, os vários países da CPLP têm feito esse caminho e aqui acho que era importante destacar uma iniciativa global liderada pelo Banco Mundial e pelo Banco Africano, que foi recentemente apresentada durante a Cimeira Africana de Energia: a Missão 300 que já conseguiu angariar cerca de 50 mil milhões de euros para garantir o acesso à energia a 300 milhões de africanos.
Quatro países da CPLP – Moçambique, Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe – já foram referenciados e indicados como países prioritários para tirar partido desta iniciativa e elaborar os compactos de energia, um documento que identifica as necessidades de financiamento, para o conseguir mobilizar e impulsionar progressos.
Existe o acordo de conversão da dívida entre Portugal e PALOP. É um bom acordo?
O acordo da conversão da dívida entre Portugal e Cabo Verde para a criação de um fundo climático e ambiental que apoie projetos na área da energia, do ambiente e energia, em particular neste caso de energias renováveis, é um exemplo importante.
Já foram lançados vários concursos públicos em Cabo Verde para projetos no âmbito deste fundo, é um exemplo também muito concreto de como criar parcerias para mobilizar este financiamento.
Portugal e São Tomé também já assinaram um acordo semelhante. Ainda não está tão avançado o processo, mas obviamente que se pretende que o exemplo de Cabo Verde sirva para acelerar o mesmo processo em São Tomé e Príncipe.
Este acordo poderia ser alargado a mais países?
Sim. Mas Portugal não pretende ser o único contribuidor para este fundo climático e ambiental. Portugal deu o primeiro passo para a criação deste fundo. Agora, pretende-se que seja um verdadeiro fundo e que receba as receitas também de outras, de outros doadores ou de outras origens.
É um objetivo comum de outros países de criarem estes fundos climáticos e ambientais. Angola também pretende criar um fundo próprio. Moçambique tem o Fundo Nacional de Energia, que também já mobiliza financiamento, mais na área do acesso à energia.
Porque também é importante termos noção que os desafios em cada um destes países são diferentes e por isso falamos de um conceito não de transição energética, mas de transições energéticas. Cada país tem os seus recursos; cada país tem as suas características: andam ao seu próprio ritmo. Obviamente que há soluções comuns, há desafios comuns e é isso também que queremos promover, mas adaptados a cada situação.
O setor português de energias renováveis está numa posição privilegiada para investir nestes países na promoção das energias renováveis?
Sem dúvida. Já vimos isso nos concursos que têm vindo a ser lançados, em particular em Moçambique e em Cabo Verde, mas também um dos grandes projetos de eletrificação rural em Angola, implementada pelo grupo português MCA.
Por exemplo, o acordo de conversão da dívida que criou o Fundo Climático e Ambiental em Cabo Verde, prevê que os investimentos têm sempre que ser feitos em consórcio com empresas portuguesas.
O acesso à energia é um desafio em muitos países ainda. Como é que tem avançado a taxa de eletrificação?
O acesso à energia é um grande desafio que felizmente já não se encontra em Portugal, mas que ainda se encontra muito nestes países. Moçambique, por exemplo, é um país que tem acelerado muito a sua taxa de acesso à energia. Neste momento já vai nos 60% e tem a meta de 100% até 2030, que não falta muito tempo.
Mas, por exemplo, a Guiné-Bissau ainda ainda tem apenas uma taxa de eletrificação de 37%.
Angola também está em cerca de 50%, um bocadinho abaixo e, portanto, ainda há aqui um caminho a percorrer.
Depois também há a incorporação de renováveis na matriz energética. E aí, mais uma vez, ver os recursos de cada país. Neste momento, Angola já tem mais de 90%. Brasil 90%. Portugal cerca de 80%. Moçambique também.
Com a ajuda das barragens…
Graças à grande hídrica. Cabo Verde não tem esse recurso, mas já tem desde há muito tempo uma incorporação de 20% só de eólica e agora um pouco solar. Já é uma referência a nível internacional: quando se falava muito na Dinamarca que tem muita eólica, Cabo Verde tem valores semelhantes.
São Tomé e Príncipe também tem estado na liderança de outra forma, na incorporação de tecnologias inovadoras em projetos pilotos. Por exemplo, assinou um acordo de um projeto de energia das ondas. É muito interessante funcionar um pouco como um tubo de ensaio, porque tem muita representatividade e diversidade.
Portanto, temos países de grande dimensão. Temos outros países, pequenas ilhas, estamos espalhados em quatro continentes, Temos países que produzem e que possuem recursos fósseis e outros que não. E, portanto, é um pouco dessa dessa diversidade que queremos espelhar. E é esse o potencial da CPLP de se apresentar como uma referência dos seus países como referência para potenciar estas soluções sustentáveis.
Quando se reúne com responsáveis de países que apostam mais em combustíveis fósseis e fala sobre energias renováveis, já veem potencial ou ainda torcem o nariz?
Não. Todos os países, sem exceção, reconhecem potencial e importância das energias renováveis e querem promovê-las. Mas, mais uma vez, a cada um a seu ritmo e tendo em conta a utilizando da melhor forma os recursos endógenos que têm. E também referir a questão dos combustíveis fósseis, não é obrigatório que os países que os possuem é que os produzam, os consumam internamente, também podem exportar e muitas vezes é isso, é isso que fazem.
Timor-Leste tinha um objetivo depois da independência: garantir o acesso a toda a população e, neste momento, Timor-Leste tem 100% da taxa de acesso e fê-lo baseado em combustíveis fósseis com termoelétricas. Mas agora que a rede já está construída e que isso está garantido, pode fazer uma conversão gradual para energias renováveis. Não há um caminho único, são transições energéticas.
Mas obviamente que a utilização de energias renováveis já é reconhecida como uma necessidade em todos os países e todos eles estão estão a incorporá-las na sua matriz energética.
A barragem de Cahora Bassa em Moçambique exporta eletricidade para a África do Sul.
Esse acordo também está quase a terminar e, portanto, eles querem reverter parte para consumo interno. A produção fica livre para exportar não só para a África do Sul, mas para outros países ali da região. E vão também construir agora Cahora Bassa Norte e há outro projeto estruturante que é Mphanda Nkuwa.
No contexto africano, as interligações também são vitais para se poder exportar a energia renovável. Por exemplo, Moçambique e Angola têm referido variadíssimas vezes que querem ser um hub de energia na África Austral e estão a investir em projetos estratégicos hídricos, mas também complementados para solar. Estão a desenvolver não só a sua rede interna, mas também as interligações para poder exportar para o restante, para a região da SADC, os restantes países da África Austral, para aproveitaremos dividendos económicos da venda dessa desse excedente de energia.
Há algum país onde identifique nos próximos anos que venha aqui a ter maior investimento de energias renováveis?
Temos aqui ver a questão da escala. Dificilmente países como Cabo Verde e São Tomé vão competir em escala com Angola, com Moçambique. Angola já tem vários compromissos com grandes parceiros internacionais para a implementação de energias renováveis, em particular solar, com compromissos de cerca de dois gigawatts. Moçambique também tem vários projetos em pipeline, já para não falar dos hídricos, mas também outros solares e eólicos.
Por outro lado, São Tomé e Príncipe, numa menor dimensão, também tem projetos hídricos. Um dos grandes objetivos de São Tomé é poder recuperar toda a capacidade hídrica que existia na ilha, mas também instalar centrais solares e já instalou uma central solar em Santo Amaro. E existe um projeto para instalar outra central solar.
A mesma coisa na Guiné-Bissau que também prevê, mas obviamente aqui com uma menor dimensão e obviamente, Brasil e Portugal, que continuam a bater recordes anuais de instalação de de energias renováveis.
E Timor, que primeiro apostou numa produção termoelétrica e agora, lentamente, fará a sua reconversão para para energias renováveis.
Depois, também acho que é interessante recorrer a novas tecnologias. Portanto, tanto em Moçambique como Cabo Verde, tem agora bancos de baterias ou centrais de baterias para apoiar também na gestão da rede e permitir maior integração de energias renováveis. Já para não falar depois da de outros projetos como a mobilidade elétrica, que o Cabo Verde já está bastante bastante avançado.
Como sabe, um dos maiores desafios em Portugal é o licenciamento de projetos. Nos países em África, quais é que são os maiores desafios para os promotores?
Eu diria que os maiores desafios é o enquadramento regulatório, mas que tem vindo a ser desenvolvido. Outros são os mecanismos de concessão, mas também o lançamento de concursos públicos que sejam transparentes, que sejam competitivos, que cumpram com os standards internacionais. Mas isso tem um custo também muito grande para para o próprio Estado.
No caso de Angola também tem sido dado preferência por um ajuste direto, os privados a serem subcontratados pelo Estado para construírem as suas centrais, gerirem as centrais durante uns tempos e que depois convertem para o Estado. Angola tem privilegiado esse modelo.
Ao passo que Moçambique tem privilegiado um modelo de produtores independentes de energia, o que se chama os IPP, com os privadores a terem a concessão, mas em vez de terem acesso à concessão através de um concurso, fazem a proposta diretamente ao Governo de Moçambique e à EDM. Depois são negociações diretas.
Os concursos públicos são o vosso modelo preferido?
O concurso público é sempre o ideal.
Há aqui algum país que enfrente um maior desafio e onde seja preciso acelerar um pouco mais a transição energética?
Todos os países têm os seus desafios e todos os países já estão têm melhores práticas que podem, que podem partilhar.
Talvez a Guiné-Bissau seja aquele que tem o maior desafio, pois é o que tem a taxa de eletrificação mais baixa.
Mas isso também permitiu, por exemplo, criarem soluções inovadoras de mini redes espalhadas ao longo do território, muitas vezes geridas pelas próprias comunidades.
Um dos parentes pobres da transição energética são as redes elétricas. Há uma necessidade de apostar nas redes, estas infraestruturas tão vitais para transportar eletricidade entre o ponto de produção e o ponto de consumo?
A rede não chega a todos os cidadãos. É o tal desafio do acesso à energia. Esse é o primeiro ponto. Temos que fazer chegar a rede a todo o lado e enquanto não chega, temos que dar soluções locais, como as tais mini redes ou sistemas solares caseiros. E nisso países como a Guiné-Bissau, Moçambique ou mesmo Angola têm excelentes exemplos.
Qual a mensagem que espera que saia desta conferência?
Em primeiro, promover uma maior colaboração entre os países e as empresas da CPLP em matéria de energia, que a conferência seja uma oportunidade de partilha de informação, de projetos, de melhores práticas, mas que depois essa colaboração continue ao longo do tempo e, portanto, que se crie aqui uma verdadeira comunidade de energia ao nível dos países da CPLP.
Depois, destacar aquilo que é o potencial para os países da CPLP serem uma referência a nível a nível mundial de soluções sustentáveis e de novas tecnologias para promover e implementar esta transição energética.
E também que a CPLP se apresente com uma voz coesa, unida, com uma narrativa comum, para conseguir mobilizar o financiamento necessário para concretizar estes projetos. A situação atual demonstra que temos de passar das palavras às ações. Os países da CPLP já identificaram esta necessidade, já desenvolveram as suas estratégias e agora o importante é mobilizar o financiamento para transformar estes compromissos em projetos.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com