O sector da segurança privada está já a recuperar da crise pandémica, mas os problemas continuam a ser os mesmos, especialmente o incumprimento da lei, numa situação em que o Estado surge como parte interessada, porque beneficia dos preços baixos, por ser o maior cliente. Este é o retrato feito pela secretária-geral da Associação das Empresas de Segurança (AES), Ana Reis Mota.
Que avaliação faz do momento atual do sector da segurança privada em Portugal?
A crise ocasionada pelo surto pandémico de Covid-19 teve e continua a ter impacto no sector da segurança privada. Houve uma redução e supressão da atividade laboral e empresarial, a qual, por sua vez, tem consequências, não só nos próprios trabalhadores de cada uma das empresas afetadas, mas também, de forma imediata, em todas aquelas que lhes prestam serviços como fornecedores.
Estamos numa fase de adaptação ao novo normal. Esperamos que isso signifique a estabilização do sector e que tal traga a necessária paz social.
Qual foi a resposta das empresas de segurança privada à pandemia?
Este sector foi muitíssimo importante no combate à pandemia. Houve, sem dúvida, uma enorme conjugação de esforços no seu combate. Neste sentido, as autoridades com competência nestas matérias tomaram as decisões administrativas adequadas e necessárias de molde a prevenir e quebrar as cadeias de contágio, na resposta à imposição de afastamento e na promoção de condições para garantia de cumprimento das medidas saúde pública que se impunham.
Foi autorizado que os profissionais da segurança privada desenvolvessem atividades que extravasam o conteúdo funcional da atividade. Refiro, a título meramente exemplificativo, a medição da temperatura corporal à entrada dos serviços. Esta medida visou controlar os acessos a instalações públicas ou privadas, rastrear eventuais focos de contaminação e minimizar a propagação do contágio.
No cenário de estado de emergência, as deslocações e a atividade dos profissionais de segurança privada foram consideradas essenciais, tendo sido assegurada a participação deste sector na contenção da pandemia.
As empresas de segurança privada cumpriram a sua importante função e mitigaram os danos provados pela pandemia, tanto ao nível da manutenção dos postos de trabalho e continuação e continuação da atividade económica como acautelar a saúde pública cumprindo escrupulosamente as condições sanitárias quer dos profissionais de segurança privada quer do público em geral.
Quais são os principais constrangimentos ao desenvolvimento do sector?
A falta de cumprimento da Lei é o maior obstáculo ao desenvolvimento do sector.
A Lei nº 46/2019, de 8 de julho contempla alterações significativas e que consubstanciam um antídoto eficaz no combate eficaz às más práticas, em especial, o trabalho não declarado e a venda com prejuízo. Todavia, a aplicação do antídoto é condição sine qua non para a sua eficácia.
O recente caso do cidadão ucraniano morto quando à guarda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) relança o tema da segurança privada versus segurança pública. Como deveria ser a cooperação entre a vigilância e as autoridades policiais e que papel deveria assumir a segurança privada nesse objetivo?
Como expressão da crescente importância das atividades do sector, a segurança privada tem função complementar à atividade das forças e serviços de segurança do Estado, conforme previsto no artigo 1, nº 3 da Lei 34/2013, de 16 de maio. A prestação desta atividade está indissociavelmente ligada à prossecução do interesse público e que tem neste um papel fundamental.
Esta função complementar não lhe retira importância. Não se trata de uma hierarquização propriamente dita entre segurança pública e privada, mas sim de distribuição de meios, finalidades e prerrogativas. Tanto o privado como o público têm como tarefa essencial e comum a da garantia da segurança.
É absolutamente inegável que a atividade de segurança privada assume elevada importância em Portugal, quer na proteção de pessoas e bens quer na prevenção e dissuasão de atos ilícitos. Além de se tratar de uma atividade importante, é necessária. Como tal, a intervenção da segurança privada não é meramente acessória ou secundária, mas sim verdadeiramente complementar.
A segurança exercida pelas forças públicas é insubstituível e o mesmo se dirá da segurança privada. Com diferentes requisitos, entidades e prerrogativas que a lei concede, a segurança privada desenvolve uma atividade essencial à manutenção da segurança do País.
Neste processo faz sentido envolver os funcionários da empresa de segurança privada quando estavam sob as ordens do SEF?
Faz sentido envolver todas as pessoas e/ou entidades visadas pela investigação em curso e apurar a responsabilidade.
A Lei de Segurança Privada precisa de ser mexida tendo em conta o impacto deste caso?
Não propriamente, porquanto este caso não reflete, de todo, o sector da segurança privada em Portugal. Contudo, seria útil e desejável o cabal cumprimento da Lei da Segurança Privada.
As mudanças introduzidas pela Lei 46/2019, de 8 de julho, são de extrema importância, designadamente, a responsabilidade solidária, as inspeções multidisciplinares e a proibição da venda com prejuízo. Carecem, todavia, de regulamentação e implementação para combater, de forma eficaz, as más práticas no sector.
A fiscalização eficiente da atividade de segurança privada, assegurada pela PSP em articulação com a Autoridade para as Condições do Trabalho e a Autoridade Tributária e Aduaneira, sem prejuízo das competências das demais forças e serviços de segurança e da Inspeção-Geral da Administração Interna, é absolutamente crucial.
A nível de gestão deste sector de atividade o tema da transmissão de estabelecimento na segurança privada está resolvido e ultrapassado?
Infelizmente estamos longe dessa realidade.
O CCT [contrato coletivo de trabalho] negociado entre a AES e a Plataforma Sindical – composta pelos cinco sindicatos mais representativos do sector – estatui o princípio e mecanismo da sucessão do posto de trabalho, semelhante ao estatuído no artigo 285 do Código do Trabalho relativo à matéria da transmissão de estabelecimento. Este CCT foi alvo de portaria de extensão, estando em vigor e em aplicação.
No corrente ano, a Lei n.º 18/2021, de 8 de abril, veio estender o regime jurídico aplicável à transmissão de empresa ou estabelecimento às situações de transmissão por adjudicação de fornecimento de serviços que se concretize por concurso público, ajuste direto ou qualquer outro meio.
Pese embora sejam passos inequívocos no sentido da resolução dos problemas ocasionados pela transmissão de estabelecimento, subsistem empresas que reiteradamente não respeitam os direitos dos trabalhadores que se encontram nesta situação de incumprimento.
O cliente Estado está a contratar abaixo do preço?
Essa factualidade é facilmente verificável através do portal BASE. Basta fazer as contas.
O Estado e as entidades públicas são quem mais adquire serviços de segurança privada a empresas que não respeitam os valores mínimos legais, advindos das obrigações laborais, ficais e contributivas, com fuga ao fisco e à segurança social. Isto promove o dumping social e a concorrência desleal.
As autoridades reguladoras e inspetivas – AT, ACT e PSP – estão a trabalhar em conjunto ou separadamente?
A Lei da Segurança Privada prevê a colaboração conjunta entre essas entidades no âmbito das inspeções multidisciplinares, devendo, para o efeito, as autoridades designar oficiais de ligação que agilizem a respetiva constituição das equipas, de forma a assegurar o regular funcionamento do sector e o cumprimento das obrigações da legislação laboral.
Com a pandemia quais os sectores de atividade que cresceram em contratações de pessoas e quais os que caíram a nível de segurança privada?
A pandemia teve reflexos expectáveis na economia. O mercado da segurança privada não foi exceção. Houve uma manifesta diminuição do volume de serviços prestados em todos os sectores de atividade e um significativo decréscimo nos sectores da aviação e do turismo. Esperamos que o regresso à normalidade conduza a uma estabilização e posterior aumento da prestação de serviços.
As empresas de segurança privada necessitam de apoios
no âmbito do impacto da Covid?
Sem dúvida. As empresas de segurança privada foram fortemente afetadas pela pandemia, seja na diminuição do volume de faturação, seja no aumento do número de trabalhadores inativos, em virtude da aplicação dos mecanismos de lay-off ou extinção do posto de trabalho.
Uma das atividades neste sector é o transporte de dinheiro e valores. Com a desmaterialização de muitas atividades este será um subsector a desaparecer ou a modificar-se entrando na era da robótica?
A atividade de transporte de valores é muitíssimo importante no apoio da economia dos países. As cadeias de abastecimento de numerário são essenciais, desde os bancos centrais ao pequeno comércio, bem como o tratamento e monitorização do cash. Esse fluxo só é possível através de uma atividade especializada.
Em face deste cenário, o dinheiro terá sempre o seu espaço. O seu desaparecimento seria uma péssima notícia para todos. Havendo espaço para o numerário, a atividade de transporte de valores será imperativamente assegurada pelas empresas qualificadas para o efeito.
Quais são os principais desafios do sector no futuro?
O foco, no curto prazo, deverá ser a regulamentação e o cumprimento da Lei. A Lei nº 46/2019, de 8 de julho, passou a proibir claramente a “contratação com prejuízo”. Esta norma constitui, sem margem para dúvidas, um utilíssimo instrumento no combate às más práticas.
Contudo, a sua implementação tem sido desafiante porquanto não existe regulamentação.
A AES tem defendido que a forma mais azada de implementar este normativo é, na verdade, bastante simples: as entidades contratantes, clientes da segurança, deviam pedir contas às empresas de segurança que contratam, quando estas apresentam preços que, por serem inferiores àqueles custos, pressagiam o incumprimento. É que, na verdade, é sempre possível fazer as contas e daqui retirar ilações, sobre se sim ou não existe venda com prejuízo.
A médio prazo seria profícuo a existência de um CCT único e legal, que sirva os direitos e interesses de todos os seus outorgantes, de forma a haver pacificação social.
No longo prazo, o maior desafio é alcançar a paz social do sector, com respeito dos princípios de deontologia, ética profissional e o respeito pela legislação aplicável à atividade, de molde que ela se desenvolva de forma sã e leal.
A nível associativo, faz sentido uma fusão AES/AESIRF?
O espírito associativo funda-se em determinados valores, princípios e missão. Se esses valores, princípios e missão forem semelhantes, a união só poderia beneficiar o sector.
Todavia, havendo matérias cujo entendimento é díspar entre associações, como é o caso da transmissão de estabelecimento, essa união não traria vantagens ao sector.
O que espera para 2022?
A estabilização e retoma em força do sector, bem como a tão esperada regulamentação da Lei.
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